VOZ PASSIVA. 88
Uma questão de linhagem
António Carlos Carvalho
Não acredito em raças (entre humanos, só no caso dos animais, e mesmo assim …), mas sei que existem linhagens, que também não são de sangue, mas sim de espírito. Provavelmente, são as linhagens que juntam os amigos, que formam as amizades – essa forma de amor mais duradoura, e mais inexplicável, do que o próprio amor.
Com António Telmo tive uma relação de amizade tão forte que resistiu ao afastamento circunstancial entre nós, durante bastantes anos, eu em Lisboa e ele em Estremoz, eu sempre dependente de quem me levasse até lá, o que não era nada fácil.
Essa nossa amizade foi, do meu lado, igualmente sustentada pela admiração profunda, espontânea, desde a leitura do manuscrito de «História Secreta de Portugal».
Reencontrámo-nos em Sesimbra, primeiro em casa do Rafael Monteiro, e depois nas sessões na Biblioteca (que há muito se deveria chamar Biblioteca António Telmo), aí já em companhia da Cynthia. Com ele, era sempre o calor da amizade, da palavra sábia e da própria presença essencial.
Por causa de tudo isso, eu e a Cynthia rumávamos alegremente a Sesimbra, como quem faz uma peregrinação às fontes, às origens de uma certa forma de estar no mundo. Aquelas sessões e a presença de António Telmo eram o mais parecido possível com as antigas tertúlias que já não chegámos a frequentar – em vez dos cafés, o auditório de uma biblioteca, numa casa dos livros (esses outros amigos sempre disponíveis, à mão, ao alcance de um olhar mais atento e interessado).
De Sesimbra e desses encontros trazíamos sempre algum alimento, uma ideia, uma frase, um simples gesto significativo – essas pequenas-grandes coisas que nos confortam neste deserto, neste exílio em que nos foi dado viver.
A Cynthia ofereceu-lhe um quadro seu, «A Dama de Ouros», que o António Telmo expôs no seu escritório e diante do qual meditava, segundo nos confessou. Imaginei-o muitas vezes (continuo a fazê-lo, confesso também) sozinho no seu escritório-biblioteca, entre os livros e de olhos postos nos símbolos feitos pintura, num diálogo solitário. Porque António Telmo pertencia, pertencerá sempre, à linhagem dos grandes solitários, os grandes leitores e visionários que só encontram verdadeira companhia nas letras, nas palavras e nas imagens de outros como eles, marcados pelo mesmo signo, pelo mesmo sinal, pelo mesmo mistério.
Algum tempo antes do nosso Amigo partir, a Cynthia e eu oferecemos-lhe um livro, «As Lojas de Canela», de Bruno Schulz (1892-1942), escritor e pintor, judeu polaco, sabendo que ambos eram da mesma linhagem e que o encontro entre os dois seria uma verdadeira descoberta.
Um livro, entre muitas coisas, acaba por ser um traço perfeito de união entre almas da mesma linhagem. Solitárias, sempre, mas unidas com outras como elas. As almas daqueles que mais ninguém entende porque são radicalmente diferentes, únicos, incapazes de caber em qualquer prateleira de classificação em que os queiram arrumar. Só têm lugar nos sonhos e nos momentos especiais de uma vida, se tivermos essa sorte ou oportunidade.
E no Jardim do Paraíso, sob os ramos frondosos da Árvore da Vida.
(E agora, meu caro Amigo, vou acender uma vela com a chama das suas palavras. Em fundo, como uma música, teremos o silêncio que Elias ouviu quando procurou Aquele cujo Nome é impronunciável: um Nome absolutamente silencioso.)