VOZ PASSIVA. 87
«As coisas das coisas»
ou os segredos da Gramática
Risoleta C. Pinto Pedro
Tenho nas minhas mãos a primeira edição da Gramática Secreta da Língua Portuguesa, de António Telmo, publicada em 1981 pela Guimarães. Este texto voltaria a ser publicado inserido nas Obras Completas, Vol. II, acompanhado de Arte Poética, o seu primeiro livro. Mas não o seu primeiro texto. Para recuarmos ao seu primeiro texto teremos de ir até ao quintal da sua tia em Alter do Chão onde, com seis anos, desenhava na branca parede alentejana, com uma ervinha verde, uma figura geométrica com que aprendia «a imaginar» e sobre a qual afirma:
«Tudo quanto escrevi, meus livros, emerge daqui.»
Logo, da imaginação à geometria (ou o contrário?), da geometria ao pensamento, do pensamento à razão poética, uma vida, uma obra.
Mas voltando à Gramática Secreta, destaca Dalila Pereira da Costa em recensão na Nova Renascença do Verão do ano da publicação, as palavras de Telmo, sintetizando o seu pensamento na correspondência entre os três parâmetros poesia, filosofia e profecia: «que a forma superior da razão é a poética, que há uma razão poética, binómio já de si iluminante.». São palavras do segundo parágrafo da Gramática Secreta de cuja citação Dalila omite as que se seguem e concluem a frase: «na condição de atribuirmos igual peso aos dois termos» e que são de uma importância essencial pois são elas que conferem a este filósofo o pensamento tão equilibrado que lhe conhecemos e que o poupa a alienações em que estes campos, quando mutuamente mal apoiados, normalmente desembocam: profecias vagas, superficiais, não sustentadas e inquietantes. Ele próprio escreve na Introdução à mesma Gramática que «as almas melancólicas são atraídas pelo esplendor de mistério […], mas também pelo jogo fácil e bizarro de imagens, aparentemente distantes, que se projecta, conduzido pela metáfora, no espelho das correspondências». Não é o caso de Telmo, e a si se aplicaria o que seguidamente ele afirma: «Nos espíritos mais experientes e adultos, o movimento das imagens obedece a leis precisas da razão poética». Ora uma das ferramentas base do rigor com que pensa as ideias é a Gramática. Daí a imperativa necessidade interna de um filósofo com este perfil ter escrito tal livro que se auto-justifica diversa e plenamente. Exemplifico, e aqui já o leitor começa a fazer a correspondência entre os primeiros desenhos do menino e o pensamento do filósofo, ficcionista e poeta que publica o seu primeiro livro, a Arte Poética, que já anunciava a Gramática, num momento de maturidade que toda a sua escrita reflecte. Sobre o mundo sensível, afirma:
«Pôde o leitor ver como foram aparecendo, a dar-lhe sentido, os inteligíveis: os números e as figuras. O movimento que organiza o sensível pelo inteligível é o pensamento. O pensamento pensa o mundo sensível e o seu movimento espelha-se na razão do homem que dispõe da palavra. É o acto do poder da palavra que edifica o mundo.»
O menino desenhava figuras que continham números escondidos, que anunciavam letras.
«Neste meio subtil que é a língua, o pensamento pensa-se a si próprio, e é por isso que os primeiros princípios são as letras-elementos da palavra humana, ecos remotos mais significativos do Verbo supremo.»
Daí, a importância que confere à identificação dos números, das figuras e das letras «pelo próprio movimento que os distingue».
Por isso, Dalila chama a atenção, no seu artigo, para a afirmação de Telmo sobre uma genealogia da língua «que deriva de uma língua sobrenatural, pressentida pelos poetas, e, neste livro, tornada menos distante através da ‘árvore’ das letras». Telmo coloca em paralelo uma árvore genealógica terrestre (a que provém do latim) e outra celeste. Para isso vai estabelecer uma relação entre a tradição hebraica da árvore das safiras, como por vezes lhe chama, e a língua portuguesa, pela comparação dos sistemas fonéticos de uma e de outra.
António Telmo sabe que não está a inventar sobre o nada, mas, na minha opinião, brilhantemente a sistematizar e aprofundar, relacionando com a nossa língua, aquilo que filósofos e poetas há muito vêm pensando e escrevendo. Platão ocupa lugar privilegiado no final deste extraordinário livro. Onde dedica, também, um capítulo à “Guematria”, estudando a passagem do latim para o português, em cujo percurso se perdeu a relação dos números com as letras, explorando um pouco o que poderia ser «a gramática secreta da língua latina» através da relação matemática com a gramática.
Já ouvi dizer que este livro não é perfeito. Havê-los-á? Não o sendo, é fascinante e fundamental. Acima de tudo, é de imprescindível leitura a quem queira prosseguir nos seus próprios caminhos.
Alguns consideram que as letras, como as palavras, são pura convenção; há quem pense que são sinais das coisas e há quem as olhe com uma diferente profundidade considerando-as, para além de sinais, «as coisas das coisas», cheias do Espírito, do Verbo e da Voz, nas palavras do cabalista Jean Reuchlin. Por isso, há quem diga, como René de Tryon-Montalembert e Kurt Hruby, em A Cabala e a Tradição Judaica, que «as letras do alfabeto começam a cantar», e quem as ouve pode assistir à narração, através do alfabeto incandescente, do modo como foi iniciado o mundo no bailado da criação. O mundo sensível será, nesta perspectiva, uma dança.
É a coreografia desta dança que Telmo nos ajuda a tentar compreender e, quem sabe?, a tentar vislumbrar o próprio coreógrafo. Dança, oração, figura geométrica, equação, poema…
No livro acima citado, pertencente à biblioteca de António Telmo, conta-se a história que se segue. É uma parábola sobre as letras e sobre aquilo que encontramos designado em diversos textos de Telmo como o Génio da língua. Esse mesmo Génio implícito no pensamento e nas palavras de Cortesão quando escreve sobre a formação da nacionalidade: a língua enquanto manifestação de um génio e prévia ao território, que para ela passa a existir. A propósito disto, Cortesão fala mesmo na língua portuguesa como sendo ela um poema. Telmo explicou-o em forma de Gramática. Eis a comovente e deliciosa versão desta aventura metafísica da língua contada em A Cabala e a Tradição Judaica:
«Um estalajadeiro, após uma série de peripécias que agora não interessam, dirigiu a seguinte oração a Deus: «Mestre do Universo, Tu vês bem quanto o meu coração me pesa, pois não pude, neste dia santo, unir-me à comunidade para com ela rezar. Nem sequer tenho um ritual de que me possa servir! E também não sei as orações de cor. Mas vou fazer a única coisa que está ao meu alcance: vou pôr-me a repetir o alfabeto, com todo o fervor, como uma criança que ainda não sabe ler. E Tu, ó Deus! Tu te encarregarás de juntar correctamente as letras para com elas compores as palavras das minhas orações». Esta deliciosa história cheia de Graça e sabedoria, diz sábia e elementarmente todo o poder das potências que são os fonemas e as letras. António Telmo disse-o no ensaio filosófico que é a sua Gramática, e disse-o transversalmente em praticamente toda a sua obra.
Na ficção:
«Crátilo via naquela definição de Hermógenes o sinal inequívoco de ele estar de fora perante a ciência das letras, a antiquíssima ciência, outrora ensinada aos homens por Hermes. À luz dessa ciência, à qual os iniciados davam escondidamente o nome de “hermética” e os profanos o de “Gramática”, a palavra flor era a síntese de quatro fonemas, significativa do que era realmente a flor: um sopro de vida (o f) levantando (o l) o ser invisível da planta até à forma suprema de uma esplendorosa rotação (o o e o r).»
“A Primeira Figura do Tarot”, in: Contos Secretos.
Também na memória:
«[…] o grão-de-bico no sapato tornando doloroso o andar: o R é o fonema mais vibrante. Platão dá-o como um símbolo de movimento. Dá forma a muitas palavras que exprimem, de facto, o movimento corrente, carro, rio, reumático, roda, e todos os seus derivados, etc. Todavia, onde a nobreza do fonema se torna bem evidente é quando aparece a iniciar e a compor, nas mais diversas línguas, as palavras que significam vermelho: Espanhol: rojo; Alemão: rot; Inglês: red; Francês: rouge. Em Português temos rubor, róseo, ruivo e vemo-lo em palavras relativas a vermelho, encarnado, escarlate, roxo.»
In: Páginas Autobiográficas
Ainda na poesia:
«Meu Deus, o que se escreve em vão/ Para encher a vida e o tempo!/ O espírito que move a mão,/ Como ela, é muito lento.// Preferes letra a fonema/ Pois sabes que vais ser lido./ Mas o essencial do poema/ Fica p’ra sempre perdido.// Seria bom ter a Ciência,/ Não ser só a mão que escreve./ Sei, contudo, em consciência,/ Que a arte é longa e a vida breve.// Entre o medo do secreto/ E a dor de o não viver/ Fiquei um analfabeto/Que sabe, porém, escrever.»
In: Poesia