VOZ PASSIVA. 85

03-06-2019 13:02

António Telmo e a apologia da não perversão da linguagem

Eduardo Aroso

 

«Quem não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma»

Fernando Pessoa

 

«Durante o Governo de Salazar (…) construiu-se um tipo de organização cultural e social do país que foi a obra-prima da inveja portuguesa. Nesse Governo se conceberam os intelectuais que agora actuam como agentes na preparação da demência pela corrupção da língua»

António Telmo

 

 

No café onde habitualmente tomo a benigna dose diária de cafeína, chega-me aos ouvidos a linguagem de dezenas de estudantes do chamado ensino superior, alguns já licenciados. Praticamente não há excepções que se notem neste ambiente de conversa, do qual, para o que aqui mais importa, excluo o que com alguma frequência chega inevitavelmente aos ouvidos: o agressivo volume sonoro de quem crê estar no espaço da liberdade da sua casa. Da chamada asneira ou palavra brejeira também o desconto, ao mesmo tempo na esperança de que a aprendizagem de umas boas maneiras intensivas dadas na família ou por outros meios possa, se não resolver, pelo menos atenuar a situação. Mas - tenhamos algum bom-senso - à idade febril da juventude deve conceder-se a mesma compreensão da que temos sobre a natureza dos músculos e dos ossos aos 20 e 30 anos ou aos 80.

O problema mais agudo, de consequências futuras, que não se podem imaginar bem e muito menos medir, é o acelerado reducionismo da língua portuguesa na formação integral das pessoas, ditado pela pressa, pelo facilitismo ou já por alguma imbecilidade actuando ela própria nessa atrofia do pensamento, num estreitamento de expressão cada vez mais notório. O que hoje se designa por “socialmente (ou culturalmente) correcto” reveste-se do medo de algo que possa emergir e assim ferir um dado paradigma. Segundo Byung-Chul Han, hoje onde não há idêntico há terror, no mínimo estranheza. Um bem-falante num grupo de maus conversadores estaria assim a lançar o terror do não idêntico, e, portanto, a ser um estranho, ainda que ele pudesse desenvolver e explicitar bem melhor o tema da conversa em causa. Como duas rectas paralelas, os (provavelmente) dois níveis de pensamento instalados não se encontrariam.

 

Parece que não têm sido suficientes as chamadas de atenção, entre nós, de filósofos como Álvaro Ribeiro e António Telmo para o problema da filologia na sua relação com o pensamento. É de ver que, por exemplo, um músico tem menos possibilidades de composição numa escala de sons mais reduzida do que se o fizer noutra de maior extensão, ou um pintor que não dispõe de uma gama variada de cores está limitado no trabalho da tela onde pretende fixar a beleza de um pôr-do-sol. Mas parece que nem a clareza de uma compreensão dir-se-ia quase intuitiva, nem a fundamentação dos pensadores têm sido dignas de atenção, sobretudo se o assunto diz respeito ao chamado ensino superior e à formação das elites culturais, que actuam como estabilizadores e fermentadoras da fala e da escrita no seu melhor, pois, se assim não fosse, ficaria a linguagem descartável do dia-a-dia que não pode ser marca de civilização.Em Filosofia e Kabbalah António Telmo dedica um capítulo ao tema em causa, intitulado «Como a perversão da linguagem leva à demência na sociedade». Ao lembrar a preocupação que Álvaro Ribeiro deixara já em Uma Coisa que Pensa (1976), Telmo, no final da década 80, escreve o seguinte: «Na verdade, a decadência da língua portuguesa reveste-se de formas, no momento que passa, que se aproximam assustadoramente  dos aspectos que assume a linguagem no indivíduo atingido pela espécie de demência que os clínicos designam por afasia».  Aborda também a relação do pensar, falar e escrever. Nesta tríade indivisível, é evidente que a pobreza da linguagem não só não pode ajudar a pensar, como não torna possível a representação desse pensamento pela escrita. Aspectos subtis que se adentram mesmo no espírito são mencionados por Telmo quando diz: «E nos indivíduos, quando o espírito perde o poder de invocar a palavra precisa, atribuímos isso a uma quebra momentânea de memória, aceitando a descrição pela explicação, e, por instinto de defesa, empregamos a primeira palavra que nos surge, a palavra imprecisa, sem cuidar de saber se ela nos é sugerida». Ora, isto é o chamado «pensamento que não pensa» de que já Heidegger falava, e que no automatismo diário actual se pode ver, por exemplo, em expressões como: «Ah, pois é verdade. Até já deu na televisão», ou «Já ouvi falar isso na televisão». Parece difícil, nos tempos que correm, alguém, deter-se para pensar, mas nem sequer se toma como terapia o aforismo latino «festina lenta», bem útil, por exemplo, para muitas licenciaturas do acordo de Bolonha.

Acontece que, de vez em quando, parece haver uma súbita semi-consciência, um notar algo neste problema que afecta a nação e o país. Referindo-se a palavras, digamos bastardas, que proliferaram em pouco tempo na nossa sociedade, e ao apontar uns poucos escritores que têm reagido, escreve António Telmo que só os actores do «Parque Mayer apresentaram até agora a única reacção, com quadros que ridicularizam aquelas palavras, tentando através do riso fazer substituir uma atitude emocional de adesão por um atitude emocional de repulsa». Ou seja, uma atitude bem portuguesa, que encaixa perfeitamente num outro nível, o dos intelectuais do regime, que negam haver filosofia portuguesa, não podendo contudo negar que, por exemplo, uma equação errada não se corrige com uma tese de biologia! Em suma, embora a ironia e a sátira cumpram o seu papel na vida humana, não podem (ao invés do que poderiam os sucessivos ministérios da cultura e da educação) estancar e tentar inverter a situação.

Referindo-se à mão que é manipulada (hoje torna-se sufocante a ideia de manipulação de tudo e em tudo), ela pode agir já em cisão com o núcleo central do pensar, havendo assim o risco da linguagem automatizada ou do não-pensamento se comunicar a esse membro superior. O perigo, segundo António Telmo, é que: «se falta o suporte primordial de sentido, a ligação directa do pensamento às mãos canaliza a corrente mental para formas de automatismo puro, conforme vem exemplificado num filme célebre de Charlie Chaplin». O filósofo de Estremoz faz ligações antigas e subtis ao dizer: «O que caracteriza o homem na plena posse dos seus predicados é o intelecto activo. Assim designava Aristóteles a “energia espiritual” que os antropólogos hoje significam pelo “pensamento voluntário”. Opõem o pensamento voluntário ao pensamento automático na exacta relação aristotélica do intelecto activo (noús polêtikos) com o intelecto passivo (noús pathétikos).

 

Um dos exemplos mais conhecidos da perversão da linguagem instalada, notamo-lo quando por exemplo, alguém começa uma frase dizendo portanto ou efectivamente. O autor de Filosofia e Kabbalah escreve: «O emprego da conjunção portanto fora da função semântica ou articulatória própria, algumas vezes intempestivamente como termo de abertura do discurso ou em resposta a uma pergunta ( - Que vai fazer hoje? – Portanto vou ao cinema), constitui um exemplo típico de linguagem afásica, persistindo apenas a dúvida se o havemos de classificar como um fenómeno de intoxicação». O que vemos nós senão um caudal de logorreia («falar impelindo o som pelo fio ininterrupto dos automatismos») de uns quatro convidados mais o apresentador de um programa de televisão, falando todos aos mesmo tempo?! Mesas-redondas já não só de inflamados comentadores desportivos, mas situações de outra ordem que exigem por certo outra postura mental. É frequente lermos e ouvirmos, quase sempre em tom jocoso, que a língua portuguesa é manhosa, cheia de truques ou algo semelhante. O que estas rudes expressões querem dizer é precisamente o contrário, perante um subconsciente colectivo que, herdando séculos da língua de poetas e escritores, está contudo sufocado no automatismo de chamar manha à riqueza linguística. 

 

«A simplificação de uma língua é um meio, entre outros, de alterar as estruturas do pensamento». Porém, já não se trata apenas da simplificação, mas da não utilização correcta dessa “escolha”, que nem sequer é peneirada, e cada vez mais abreviada nas mensagens no telemóvel e no computador. Para bem do seu espírito, António Telmo já não assistiu a esta escandalosa indiferença dos intelectuais portugueses e dos políticos sobre a torre de Babel que é o famigerado AO de 1990.

 

Maio de 2019