VOZ PASSIVA. 83

13-05-2018 13:36

Para uma reintegração[1]

Dalila Pereira da Costa

 

Até fins do século XV, houve em Portugal como em toda a Península Ibérica, a partilha na textura cultural e civilizacional, da sabedoria contida e transmitida nas três etnias e tradições de sua humanidade, cristã, judaica e islâmica: como tesouro da Tradição, única e primordial, sob três formas e seus símbolos específicos. Ou como três ramos duma mesma árvore comum onde corre a mesma seiva vivificante. Com o banimento do ramo judaico e islâmico sob o radicalismo da elite visigótica católica, uma cisão e esquecimento dessa Tradição se deu, que nestes quatro séculos se tem mostrado destrutiva nas suas consequências: perda da antiga harmonia dessa humanidade peninsular e nela, da portuguesa e sua mensagem e missão no mundo. Será esta catástrofe que Américo Castro analisou e declarou nos seus livros, tal o De La Edade Conflictiva.     

Entre nós, António Telmo vai realizando o acto de unir as três partes desse tesouro perdido, soterrado ou desbaratado; ou unir de novo os três ramos dum só tronco comum. Procurar, aqui e além ou desenterrar e unir, pedaço a pedaço os fragmentos desse todo há muito separado. Trabalho de hermenêutica, mais do que exegese; e que no seu fim será a tentativa de procurar a palavra perdida, na secretude do seu silêncio. Depois desses longos séculos de traição de si mesma, na busca de modelos ou encarnações alheias e destrutivas, a alma portuguesa tem, num filho da sua antiga Lusitânia, o mistagogo tentando que ela se reencontre na sua identidade, una e tripartida: a que lhe permitiu no seu passado sua plena realização ou cumprimento do seu dever, como mandato divino, sobre a terra.

Através da história, simbólica, língua, poesia, história portuguesa, os livros de António Telmo, como aquele que justamente acaba de surgir, Filosofia e Kabbalah, serão, e pretenderão ser, como chamadas, apelos de resposta inadiável, a essa alma extraviada, para um seu acto de «conhece-te a ti mesmo» - tal o dístico do frontão do templo de Delfos, ou as palavras do mestrado de Sócrates: como primeiro e necessário passo de todo o caminho de iniciação ou sabedoria: e actuante no mundo como missão futura.

Para esse apelo, houve uma prévia leitura do oculto, nas diversas manifestações dessa alma como sua vontade, projecto, manifestado, ou falhado nos seus tempos de sono, ou fuga do real.

 

Porto, 30 Março 1990             



[1] Publicado em Arca do Verbo, Ano III – 1.ª Série, n.º 110, in O Setubalense, de 20 de Fevereiro de 1991.