VOZ PASSIVA. 77
Filosofia e Arte Poética*
Luís Furtado Guerra
No decorrer deste escrito não pretende o autor fazer aquilo que vulgarmente é classificado como uma crítica, pois acredita ou faz credo da doutrina que afirma a nobreza das imagens ou conceitos emergentes de transcendental evanescência mítica.
Principiamos portanto em expressar a devida consideração intelectual pelas obras de pensamento que tentam haurir a selva de toda a originária tradição, de todo aquele mítico passado, de uma humanidade ou trans-humanidade que a humana memória possa alcançar, em momentos transfigurantes de luminosa alegria ou ocasiões saturninas de nadiriano e abscôndito nevoeiro.
Assim, para corresponder em mente ponderosa ao nome do livro Arte Poética, não se deverá situar a sua estrutura no esquema de uma construção intelectual que possa ser decomposta e susceptível de ser dissolvida em possíveis contingencialismos de dialécticas sofistas.
Para todo o leitor já advertido por possíveis interpretações hermenêuticas, o livro de ANTONIO TELMO faz reflectir na tradição croamática do título e na intencionalidade e essência do pensamento, que ascendendo ou descendendo no flutuar das anímicas cosmogonias, recorda ou invoca do mais profundo do secreto, por mágica simpatia, o transitar dramático do pensar humano. A sequência deste transitar é observada no decorrer da leitura em comentários à filosofia e obra de Henrique Bergson.
Este pensador já vai felizmente usufruindo no meio intelectual português o lugar que lhe cabe por justiça em relação à demais cultura estrangeira importada, da qual é ávido o intelectualismo académico e a fenomenologia literária dos nossos dias.
Da identificação que o ilustre filósofo Francês estabelece entre pensamento e movimento, emerge em modos de luz e de graça o transcender do homem quotidianamente vulgar, pela comunhão constante se bem que precária com misteriosas forças ou potências, quando intuídas em formas de Verdade, Beleza e Bondade
Se bem que em nosso entender, fiel a Aristóteles, esse fluido de energia que passa através da matéria não seja aquele que fundamenta uma filosofia da encarnação, tributamos contudo o devido apreço intelectual a esse «élan» anímico que serve de substante a todas as manifestações ou evidências, que da outra face do ser, surgem como imagens ou fantasmas de mundo submerso e ignoto.
Deste modo António Telmo por vocação ou apelo, ao que por mais enigmático é cativante para o saber da alma, daquilo que por mais tenebroso e profundo se oculta no ocaso dos segredos mais luciferinos nem sempre gratos ou amáveis a uma antropologia, de ritmos ou forças cosmogónicas mais extravagantes e transcendentes, faz convergir a atenção para o determinante do agir humano.
Notável pois é esta tentativa de intuir e explicar no plano cósmico o que Freud estudou no plano biológico. Neste aspecto, a relação de Freud e Bergson é do maior interesse para todo o estudioso da fenomenologia psicológica.
O homem emerge não como o centro ou o tropo mais «sui generis» da criação natural pois se indetermina o seu nascimento ou a sua primigénia personalidade solar, por uma lunar e difusa aurora, entre a sua imagem mítica e a semelhança do arquétipo que lhe é imanentemente essencial.
A figura humana, emergente de profundidades penumbrosas e lunáticas, é uma difusa luz sem sol, verbo ou Lógos, determinada para adquirir o lugar no palco da existência e colocar a máscara e as vestes solares, a fim de participar em tragédia carnal com as entidades supernas ou sublunares, do mistério divino da criação. É este em nosso entender o ponto culminante do livro, que se reporta com o desvendar profundo da tragédia. Assim, para dar continuidade intuitiva ao pensamento de António Telmo, deveremos pôr de parte aquele tipo de memória pragmática ou mecanicista; esta só servirá para criar esquemas evocativos, e invocar aquela, que no mais lídimo sentido, constitui a mágica ligação com o transcendente.
Eis a precária possibilidade do homem assumir o mistério das origens. Para além do palco onde o drama se desenrola está a recorrência constante aos bastidores.
Por detrás da cena da existência, o mundo do inconsciente: noite sobre um anímico e profundo oceano de oníricas ondas, que vêm da outra face do ser banhar de recônditos e saturninos mistérios este existir de geração e de corrupção. Deste modo, são as misteriosas e flutuantes constelações do mundo da alma, segundo o livro de António Teimo, susceptíveis de serem enunciadas em movimentos, ritos ou perenes símbolos, seguindo doutrinas tradicionais de filósofos e psicólogos consagrados. As vozes interiores e submersas que soam no sistema nervoso do homem ao sabor de ritmos sagrados ou secretos, tal como aragens recônditas através de flutuantes arvoredos, só podem ser ouvidas, traduzidas ou transfiguradas em ritmos, ritos ou movimentos essenciais, por aqueles poetas como Dante, perseguidores visionários da palavra mágica, oculta ou perdida na austera imensidade não amável de uma noite sem estrelas.
Por consequência do que é dito por Dante, que afirma e descreve a insurreição aos infernos e a subida aos céus, os caminhos gnósicos do espirito deverão ser traduzidos em movimentos ou ritmos, ascendentes e descendentes, por todo o leitor atento aos tropos poéticos da Divina Comédia. Uma possível fenomenologia do espirito só será comprometida por aquela vidência a que não seja concedida a graça de imaginar o que representa a tropologia analógica entre o fogo do inferno e o evanescente e áureo fogo celestial, que parece imageticamente contradizer a hierarquia dos graus gnósicos da sabedoria, estabelecida por Empédocles, na teoria dos quatro elementos.
Significativo para a cultura portuguesa é assim o livro de Teixeira de Pascoaes Verbo Escuro, no qual o luminoso verbo do poeta se saturniza influenciado por estranhas ritmos reveladores, em que o mistério obscuro e submerso assume o ascender maravilhoso a horizontes de exultante luminosidade.
É pois do maior interesse intelectual verificar no livro de António Telmo a singularidade dos modos ou vias escatológicas que se manifestam, assim como a correlatava projecção ôntica assumida pelo agir das personagens, que na exegese vulgar dos psicólogos pertenceria ao domínio banal da patologia.
Esta transfiguração ôntica do patológico nas suas manifestações místicas ou de mais perverso satanismo, corresponde à luciferina tentativa de intuir até ao mais profundo das forças vitais motivadoras ou motoras do agir e do pensar humano.
Tal é o sentido profundo do «daimon» ou entidade demoníaca que Sócrates afirmava presidir à sua inspiração filosófica. Em face do que já foi dito, difícil se torna conceber aquilo que seja o movimento em face de uma ética antropológica ou angélico antropomorfismo. Dessa dificuldade que desafia a arte dos artistas pensadores se apercebeu o autor do livro no capítulo relativo à alquimia.
Qual será o elemento fundamentalmente operante, que permita ao homem fazer sem mãos ou criar pela magia do espírito o absoluto da forma insolúvel e eterna?
O conhecimento superno essencialmente transmutador e movente, não obstante imóvel porque primordialmente originário, é contudo o arcano mais sagrado e secreto para todo o pensador contingenciado em dialécticas de terrena e efémera fenomenologia.
Verbo de graça infinita, continuará a ser a mágica aspiração do homem de alma sempre atenta às promessas de eternidade.
*O Debate, n.º 680, Lisboa, 28 de Março de 1964, p. 2.