VOZ PASSIVA. 76
Breve reflexão sobre
O Horóscopo de Portugal e escritos afins
VII Volume das Obras Completas de António Telmo
Rui Arimateia
“…num mundo onde a presença do mistério impõe que nada se possa realmente saber fora dos termos desse mistério.
Assim, os mais lúcidos e imprudentes não desistiam de procurar a palavra perdida da Sabedoria.”
António Telmo, in História Secreta de Portugal
Com mais um lançamento de um volume das Obras Completas de António Telmo, o VII, que em boa hora um grupo de amigos resolveu empreender, com a colaboração editorial das Edições Zéfiro, estamos, no fundo, a dar a palavra e a convocar ciclicamente António Telmo, para que este possa continuar a celebrar o seu magistério entre nós!
Dizia-nos então António Telmo, de quem é sempre um prazer enorme recordar a voz e a presença através dos seus sages depoimentos:
«(…). Eu acho que os meus livros sabem mais do que eu. Muitas vezes, ao ler alguma coisa que escrevi, fico surpreendido perante o anúncio de um conhecimento e de uma sabedoria que eu não possuo e que tenho que aprofundar como qualquer leitor.
(…). O Universo não é racionalista, nós é que o devemos ser. Aquilo porque me esforço sempre nos meus escritos é por pensar o irracional. Tornar racional o irracional. Na minha opinião, isto é o que me caracteriza e me distingue e julgo também que é o que suscita o interesse das pessoas. É uma vivência pessoal, mas é também o esforço de não perder a razão perante aquele mundo misterioso. Estou convencido de que toda a gente tem a experiência deste irracional, mas resolvem os conflitos de vários modos. Ou negando esse irracional, ficando preso aos limites de uma razão estreita, ou aceitando esse irracional e perdendo a razão. (…). [Há que] construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real. No fundo, é por onde eu ando. (…).»
[in Entrevista de Antónia de Sousa (1991), D.N. magazine, n.º 256, 25 de Agosto].
O constante diálogo com António Telmo, apesar de fisicamente ele já não se encontrar entre nós, é fundamental para compreendermos a mensagem que ele nos legou através da sua obra. Debruçar-me sobre textos publicados por António Telmo para os re-apresentar “obrigou-me” a procurar desocultar o seu significado fazendo perguntas e a apetrechar-me, com os sentidos das suas próprias palavras, para iluminar o meu pensamento e, por sua vez, inspirar as palavras que vos endereço. A reunião de alguns pensamentos de António Telmo sobre a temática abordada, dispersos pela sua extensa obra e por textos construídos por aqueles que o entrevistaram e com ele privaram, possibilitará, a meu ver, a reunião de um conjunto coerente de ideias que poderão, por sua vez, provocar novos enfoques e novas significações sobre os textos reeditados. Com estas minhas palavras procuro realizar um olhar sobre a obra de António Telmo, tentando distinguir o essencial do supérfluo, ousando desocultar aquilo que importa!
Olhando e reflectindo a Obra de António Telmo, encontramo-nos, a partir de certa altura, a tentar entender o nosso percurso de vida tentando entender o percurso percorrido pelo Autor. Confluências de interpretação e de reflexão! – tal como ele próprio diria…
E retornando às palavras de António Telmo sobre o acto de escrever um livro:
“(…). Eu sei, por experiência própria que cada livro que escrevemos é como um espelho em que projectamos o que no momento é o melhor de nós. A luz que ilumina o espelho vem do nosso próprio olhar. Envolve-nos um fascínio que é uma inteira criação da nossa imaginação. Tal envolvimento pode levar à perda do dom de pensar em expectativa.
Mas, sem envolvimento, não há desenvolvimento. De livro para livro, vamos mudando de pele como a cobra até à perfeita desnudificação. Depois, “o mais é com Deus”. (…).”
[Do PREFÁCIO in Pedro Martins (2007), “O Anjo e a Sombra”, Publ. Pena Perfeita, s./l.].
A primeira edição d’O Horóscopo de Portugal (HP) é de 1997 e saiu 20 anos após a edição da História Secreta de Portugal (HSP), que dele passou a constituir a sua segunda parte. No presente volume foram igualmente incluídos alguns escritos inéditos contemporâneos da História Secreta de Portugal.
O importante Prefácio escrito por Eduardo Aroso elucida-nos um pouco sobre as andanças astrológicas de António Telmo.
A Astrologia é uma tradição antiga entre os povos da Ibéria, com existência de literatura temática entre os seguidores das três nações do Livro – os Judeus, os Cristãos e os Muçulmanos. Nos nossos dias, “António Telmo constitui uma das raras excepções que entre os pensadores do século XX ousou tomar a astrologia, quiçá na esteira da expressão pessoana tudo é verdade e caminho.” Poder-se-á considerar que “a astrologia, a par de outras gnoses, é uma disciplina arcana da Tradição”. Contribui, sem dúvida, afirma Eduardo Aroso, para perspectivarmos o “encanto e a verdade de uma visão holística da vida, sempre com mais apetência para apreender a Unidade, como é a das subtis linhas, essenciais do percurso de um ser humano revelado na inteireza do horóscopo.” O conceito de Holismo contrapõe-se ao conceito de “reino da quantidade” de Guénon. O reino da quantidade que tão bem é caracterizado nas nossas sociedades actuais pela exacerbada procura dos consumismos de toda a espécie e dos falsos crescimentos, económicos e outros bem mais perniciosos para a corrupção da natureza humana.
António Telmo utiliza a astrologia em vários dos seus livros, além do Horóscopo de Portugal e da História Secreta de Portugal, na Viagem a Granada, na Filosofia e Kabbalah, n’A Aventura Maçónica – Viagens à volta de um Tapete, além de a utilizar ainda em entrevistas que deu ao longo da sua vida e em alguns textos inéditos.
Baseando-se principalmente em Fernando Pessoa e no seu horóscopo para Portugal e nas polémicas entre o Poeta e o Conde de Keyserling, assim, com a sua natural e intuitiva clarividência ensina-nos António Telmo (citação sublinhada por Eduardo Aroso), no Horóscopo de Portugal sobre a manifestação gloriosa da alma portuguesa que: “Imprevisível de todo é a forma dessa manifestação, mas sem a consciência do que fomos e do que somos não estaremos presentes no que quer que seja que viermos a ser.” [HP, 1997,p.11].
Importa realçar a afirmação de Eduardo Aroso no final do seu elucidativo Prefácio: “De tal modo a leitura de O Horóscopo de Portugal toca e sugere, por analogias várias, acontecimentos medulares nem sempre explícitos, de símbolos tantas vezes olhados mas não vistos, de sinais que, pouco perceptíveis, são contudo o enredo de um labirinto onde apenas pelo fio de Ariane não nos perdemos…”. Resta-nos a nós encontrar este fio de Ariane, encontrar o fio à meada neste conjunto extraordinário de explicações, reflexões e ensinamentos que António Telmo coloca à nossa disposição com a publicação destas duas suas obras fundamentais que são a História Secreta de Portugal e o Horóscopo de Portugal.
Uma das grandes fontes e inspirações de António Telmo, também para esta área do conhecimento arcaico da Astrologia, não podia deixar de ser Fernando Pessoa.
“No pensar de Fernando Pessoa há, como se verá, um primeiro, um segundo e um terceiro Portugal. Sabemos só, pelo horóscopo, que haverá, em tempo marcado, um quarto e um quinto que serão, em planos sucessivos, a manifestação gloriosa da alma portuguesa depois da viagem milenária pelo céu e pelo inferno da sua história. Imprevisível de todo é a forma dessa manifestação, mas sem a consciência do que fomos e do que somos não estaremos presentes no que quer que seja que viermos a ser.” [HP, 1997, pág. 11].
É complexo sintetizar um livro de António Telmo. Como artífice excelentíssimo da palavra e profundo conhecedor dos meandros da língua portuguesa, tudo o que ele dizia ou escrevia estava cimentado, estruturado, erigido tal como uma parede de uma catedral medieval… Ao retirar-se a mais pequena pedra colocada nessa estrutura, a Obra ressentir-se-á…
Optei então por escolher, a título de exemplo, umas quantas passagens que me pareceram estruturantes a fim de dar a conhecer algumas mensagens essenciais que, penso eu, António Telmo quis colocar na sua construção poético-literária do Horóscopo de Portugal. De resto, o melhor é ler e reler o(s) livro(s) de António Telmo. E digo re-ler porque sempre que voltamos ao texto, encontramos outros enfoques, outras mensagens, que desocultamos e que recriamos em nós. E é esta contínua desocultação / criação em nós que vai responder ao que penso ter sido o mais íntimo anseio do Autor quando escreveu e partilhou a sua experiência, a sua reflexão sobre os destinos de Portugal e do Português! O processo de desocultação, de decifração, que cada um dos leitores, isto é, cada um de nós, realiza através do seu próprio pensamento, criando outros textos e outros significados é fundamental. Se tiver acontecido este processo de desocultação, penso que o objectivo último de António Telmo, ao partilhar com os outros os seus escritos, terá sido conseguido: o de pôr os leitores a pensar por si próprios sobre Portugal e sobre os Portugueses!
Sobre a Alma Portuguesa e Portugal:
“Esta alma portuguesa, herdeira, por razões e desrazões que não é legítimo explicar ainda, da divindade da alma helénica, fortificou-se na sombra e no abismo. Outrora descobriu a terra e os mares; creou o que o mundo moderno possui que não é antigo… o oceanismo, o universalismo e o imperialismo à distância que foram os resultados produzidos conscientemente pelo primeiro movimento divino da alma português, do segundo estado da Ordem secreta que é o fundo hierático da nossa vida.” [HP,1997, pág. 17].
“Se bem entendemos, o primeiro Portugal, nascido com a primeira dinastia, é ainda hoje o que está no fundo de cada português; o segundo Portugal, cumprida metade da sua missão com a segunda dinastia, tornou-se subterrâneo; à superfície da história ficou o terceiro Portugal, surgido com a dinastia dos Braganças e prolongando-se pela República.” [HP, 1997, pág. 18].
“Dizer o Sol ou dizer Portugal é o mesmo, dentro da simbólica astrológica do poeta. Todo o povo é uma luz e a sua história é, como a vida, a sucessiva manifestação dessa luz até à exaustão ou até à consagração…” [HP, 1997, pág. 19].
“De duzentos em duzentos anos, a independência de Portugal é posta em causa pelos próprios portugueses, não por todos, mas por aqueles que cedo descreram do nosso destino singular para servirem uma das três internacionais que sucessivamente foram aparecendo na cena histórica. Foi assim em 1383. Em 1580, os exércitos espanhóis foram recebidos festivamente em Portugal. Festivamente forma recebidos os exércitos franceses em 1800. Recentemente, em 1986, toda a gente sabe o que aconteceu e está acontecendo entretanto.” [HP, 1997, págs. 24-25].
Afirma António Telmo que “Não há pátria, há Portugal.” E assim recordo Fernando Pessoa/Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”, quando diz que: “A minha pátria é a língua portuguesa.”.
Portugal, no fundo, talvez seja um projecto civilizacional, um movimento de consciência, uma língua em evolução… um espaço imponderável e incomensurável cujo destino seja o re-aparecimento de uma religião universal regida por um Menino Imperador do Mundo… constituindo-se o Mistério do Espírito Santo!
Portugal, local simultaneamente genésico e utópico do Éden Terreal onde a Liberdade, Igualdade e a Fraternidade serão, num futuro mais ou menos longínquo, realidades de uma práxis espiritual.
Estará na nossa mão, portugueses, educar a criança para esse Destino?
Afirma António Telmo que “A criança é o ser que cresce e o Infante é o ser que não fala. A criança é, porém, desviada do seu crescimento e ensinada a falar pelos adultos que nas palavras a que a habituam transmitem a sua “representação do mundo. Um dos aspectos dessa representação está em não ver a criança como uma potência, mas como uma deficiência.”
Para António Telmo a criança é o ser que cresce, o adulto em devir; a criança, através da educação deverá atingir o estado adulto com uma inofensividade (ahimsa) que a tornará um “príncipe, isto é, um ser que em si tem o seu princípio e do qual o Infante é o seu perfeito símbolo.”
António Telmo deixou-nos um importante escrito intitulado “Infância e Conhecimento”, onde nos diz:
“Todos nós nascemos não para sermos os homens que somos; a natureza cria-nos para ser outra coisa; aquilo de que a criança é embrião ou desaparece completamente no homem feito, a que Fernando Pessoa chamou “cadáver adiado”, ou se reclui numa intimidade impenetrável; a educação, não só a do Estado mas também essa, desvia o que noutros tempos constituía o curso inevitável da natureza (a criança é o ser que cresce) e, em lugar de desenvolver esse embrião de poder e conhecimento, faz o pobre ser frágil que é o adulto – poltrão, vaidoso, cuja afirmação de si não é mais estúpido do que o esconder de uma radical insegurança. Ai de quem denunciar essa insegurança!”
Sobre a História de Portugal:
“A história de Portugal é como uma roda, com os seus raios. Um raio representa a era dos reis, outro a dos sacerdotes, o outro do clero, e o outro da plebe. O quarto império é o centro da roda, e o quinto tem de começar por cada um de nós. Deixamos de ter uma vida descentrada, temos de passar a dançar à volta de um centro – esse centro é um centro secreto, é onde está Deus. Se cada homem fizer isso, nasce o nacionalismo místico. E isso não tem nada a ver com qualquer ideia de ditadura, é um lugar onde todos nos entenderemos. (…). Os Portugueses formam uma entidade, mas temos de andar à luta até ao fim, sobreviver aos conflitos, a coisas horríveis como a Inquisição, mas por fim tudo isto será integrado num centro e transfigurado. Cada português poderá então ser, ele mesmo, o Quinto Império. (…) Portugal é uma organização iniciática. De resto, Fernando Pessoa dizia que existia uma ordem Templária, activa mas completamente encoberta, de quem ninguém sabia nada senão ele. E disse também que ela se havia de revelar proximamente. Mas ninguém sabe o que é essa ordem. Essa ordem é Portugal.” [in Entrevista de Francisco José Viegas e Diogo Queiroz de Andrade, “António Telmo – O último cabalista”, revista “Ler”,n.º41, 1998, pág. 120].
E recorrentemente António Telmo interage com o pensamento de Fernando Pessoa:
“E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas «daquilo de que os sonhos são feitos». E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente.” [in “Textos de Crítica e de Intervenção”, Lisboa, Ática, 1980:45].
A importância da busca e um sentido para a vida, não só individualmente, através de um autoconhecimento, mas enquanto um Povo, um colectivo, através da assumpção de uma História Sagrada! Não nos diluímos no Império dos Séculos XV-XVI… não nos deveremos de modo algum, diluir na Europa dos sécs. XX-XXI… A Alma ou a Ordem Secreta de Portugal, tal como tão bem nos referiu António Telmo inspirado em Fernando Pessoa, encontra-se iluminada pelo Logos Solar, e a certa altura diz-nos que “Dizer Sol ou dizer Portugal é o mesmo… Todo o povo é uma luz e a sua história é, como a vida, a sucessiva manifestação dessa luz até à exaustão ou até à conflagração.” [HP, 1997, p.17].
Termino com as palavras de António Telmo sobre o Mosteiro dos Jerónimos, objecto de estudo da sua História Secreta de Portugal:
É a Hora!
“… o que foi criado para lugar de oração é, mesmo sem monges e invadido por uma multidão informe ou por políticos sem Pátria, uma oração de pedra, que a excede infinitamente.
Valete Fratres” [HP, 1997, pág. 12].
Votos de boas leituras e profícuas reflexões, na esteira do pensamento e da obra de António Telmo…
Évora, 7.7.2017