VOZ PASSIVA. 72
Viver o caminho: António Telmo e a assunção da História*
Pedro Martins
Entender o modo como António Telmo concebe a redenção implica a consideração prévia da sua noção de pecado original, pelo qual se deu a queda do homem na história. Dado o tempo limitado, postularei uma conclusão: na esteira de Bruno e de Álvaro Ribeiro, Telmo converge com o martinismo, ao qual, aliás, refere a essência da filosofia portuguesa, segundo a sua concepção operativa.
Teremos, assim, a degradação, por condensação, do corpo glorioso do Adão primordial, em consequência de um pecado de magia: uma arrogância demiúrgica, usurpadora da Divindade, mas frustrada no comércio impuro da imaginação com a sensação. Quem assim decaiu, reinava sobre o Universo e todas as suas criaturas no paraíso terrestre a que Pascoal Martins, misteriosa, mas significativamente, chama terra erguida acima de todos os sentidos.
Em entrevista tardia, Telmo afirma que
o pecado original é uma ruptura entre o ser e o pensamento, quer dizer, eu não sou aquilo que penso e penso aquilo, penso mas não sou. O que eu chamo Filosofia Operativa é aquela Filosofia em que o pensamento é ao mesmo tempo o ser da pessoa.
Para Pascoal Martins, o pensamento adâmico coincidia essencialmente com o pensamento divino, resultando a queda do modo como a vontade livre do primeiro homem, influenciada pelo espírito perverso, se decidiu contra esse pensamento.
Nas Congeminações de um Neopitagórico, de 2006, republica-se a entrevista à revista Encontro, conduzida por Ângelo Monteiro. Nela se afirma que Arte Poética, o livro de estreia de 1963, «vale sobretudo pelo último capítulo que foi escrito para a sua segunda edição» e se esclarece a noção de filosofia operativa, cerne desse mesmo livro: «Por operativo significava eu eficaz, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal».
Do prisma soteriológico, esta definição é coerente com a já citada, que diz ser operativa «aquela Filosofia em que o pensamento é ao mesmo tempo o ser da pessoa», e isto tão certo com o pecado original ser «uma ruptura entre o ser e o pensamento».
Será digno de nota que a única parte de Arte Poética que Telmo valoriza – a quarta, o diálogo entre X e Y, “Sobre a Poesia”, aditado à reedição de 1993 – ressurja nas Congeminações com ligeiras modificações, porém significativas: os interlocutores chamam-se agora Thomé (o gnóstico) e Nathan (o cabalista) e tratam-se por tu. São as duas metades íntimas de Thomé Nathanael, alter ego de Telmo, dissociadas por um processo de dianoia, mas convergindo pelo diálogo para o que mais importa.
Como o título logo indica, as Congeminações cifram um pensamento maçónico. Daí que a republicação daquele diálogo neste livro seja congruente com uma confissão à Encontro: «O que propus e proponho ainda é uma filosofia que seja essencialmente uma arte poética, criadora de força, de sabedoria e de beleza pela virtude dos conceitos». A alusão à Arte Real, pelo enunciado da tríade iniciática, vincula a Arte Poética à tradição maçónica. A metamorfose onomástica dos interlocutores, revelando a metade cristã e a judaica do ser íntimo do filósofo marrano, confirma-o. A Maçonaria visa conciliar, pela mediação de Schaddaï, o Grande Arquitecto do Universo, os antagónicos atributos divinos – El Elyon e Elohim – que os dois credos, respectivamente, privilegiam nos seus cultos.
O livro de 1963 parte do pensamento de Bergson. «Servi-me dele para dizer a minha Arte Poética», consigna-se na entrevista à Encontro, não sem, porém, se esclarecer: «A minha visão iniciática da Vida e da História não vem de Bergson, mas sim de Álvaro Ribeiro e de Eudoro de Sousa que foram quem me mandou ler o filósofo francês». «O esforço intelectual de Bergson, desenvolvido em alguns livros notáveis» – lê-se na versão original do livro – «teve o valor de pôr a «base» ou a «matéria» da filosofia operativa». Telmo, todavia, adverte: «Ilude-se o leitor que procurar nesses livros uma construção mental explicativa do universo interior ou exterior, mas também ficará decepcionado aquele que neles indagar as operações – princípios e regras – a realizar sobre a “matéria”».
A terceira parte de Arte Poética entremostra o que na primeira ficara aludido: Bergson, sendo, «principalmente, um antropólogo», ignora os pequenos e os grandes mistérios da iniciação, com expressão filosófica na cosmologia e na teologia, respectivamente. Sublinhando que os pequenos mistérios respeitam à restauração do estado primordial do paraíso terrestre, dir-se-á que toda a ideação de Telmo posterior a 1963 se concebe como demanda de formas tradicionais inscritíveis na matéria posta por Bergson, culminando, ao cabo de um processo lógico e ontológico, na eleição operativa da tradição maçónica, pela sua iniciação no Regime Escocês Rectificado, de inspiração martinista.
Se a queda implicou uma condensação, importa lembrar, com André Benzimra, que «o que para Adão, no Éden, era corporal, ou seja, ocupava o lugar da exterioridade, pertence no homem da nossa época à ordem da interioridade e releva de um plano superior». Isto «explica que diversas tradições apresentem a natureza corporal dos primeiros tempos como mais fluida, mais subtil e mais cintilante do que a matéria a que estamos acostumados». Por isso, «do mais alto grau de espiritualidade ao mais baixo grau de corporeidade há um número indefinido de níveis que podem ser vistos como as etapas de uma solidificação progressiva».
A doutrina tradicional dos elementos, «raízes onde se entronca directamente o mundo sensível em toda a sua extensão espácio-temporal e em todas as modalidades que o caracterizam», oferece um quadro simbólico de correspondências com os «diferentes estados da “matéria” correspondentes aos graus da condensação física».
Nas Congeminações, no diálogo Sobre a Poesia, quinta-essência da Arte Poética, Nathan adverte: «O erro é o de julgar que o corpo é um corpo de terra e que não pode ser feito pelos outros elementos.» Apelando às formas tradicionais, a asserção esclarece o que em 1963 sucessivamente se afirmara: «a alma (…) está sempre ligada à matéria por dentro»; «o corpo é uma manifestação da alma»; e «todos os princípios que constituem a alma devem encontrar-se no corpo, segundo os seus modos próprios». Assim, os sistemas determinantes da corporeidade estão referidos a centros que respondem logicamente «a círculos ou esferas cada vez mais profundas da vida».
Tudo estará, pois, segundo a fórmula bergsonina, em «remonter la pente de la nature», em «inverter», pela autognose, «a direcção habitual ou natural do espírito». Como em 1963 se escreveu, «as imagens são portas, no sentido de que, por elas, o espírito penetrou e penetra na matéria e de que, por elas também, pode penetrar na sua própria vida». Pelo aditamento do diálogo “Sobre a Poesia”, esclarece-se que «a mediação entre o mundo sensível e o mundo inteligível, entre o natural e o divino, é que é propriamente a metáfora».
Em “Sobre a metáfora”, de Viagem a Granada, Telmo relata como, tendo contemplado, uma tarde, por instantes, uma árvore num montado alentejano, e fechado depois «os olhos com a intenção de a ver reproduzida interiormente no espelho da memória tal e qual a via exteriormente», pôde ver «reproduzido todo o montado até ao mínimo pormenor, com todos os seus recortes, mas cada sobreiro era uma mobilidade imóvel, uma labareda estática, cheia no entanto de uma vida poderosa». Continuarei a citar:
Abri os olhos e de novo me apareceram as árvores na sua realidade verde de sobreiros. Verifiquei que a imagem ígnea interior era exactamente igual, em todos os seus aspectos, à que agora presenciava cá fora. Só eram diferentes pela substância: de madeira ou material na forma exterior, de puríssimo fogo no espelho mágico da alma.
(…)
Mais tarde, rememorando o acontecimento, lembrei-me ao mesmo tempo de uns versos que tinha escrito vinte anos atrás:
Todas as árvores são chamas
Porque é fogo a essência da semente
E tudo que na árvore é e sente
Busca o sol e é sol verde nos ramos.
Aquilo que mais interessou aqui ao aprendiz de filósofo que eternamente sou foi ver que pela metáfora é possível conhecer, embora em modo reflectido, a relação do mundo sensível com o mundo subtil imaginal. A visão dos sobreiros na sua essência ígnea veio confirmar esta possibilidade.
A remissão operada pela imagem ígnea da metáfora situa-nos no plano dos pequenos mistérios. No estado primordial, inerente ao grau de realização espiritual que lhes corresponderia, o homem seria um com o mundo de modo tal que todos os corpos seriam tantos quantos os seus órgãos e a alma de cada coisa seria uma parte da sua alma.
Parece ser à luz destes ensinamentos tradicionais que o relato da visão deve ser lido, como entendida deve ser uma passagem de Arte Poética que pressupõe as limitações cosmológicas da filosofia de Bergson:
Queremos insinuar que, sem realizar em nós um estado de vivência interna da natureza a partir do qual sentimos a natureza como o «Todo Um», como uma serpente mágica que infinitamente se devora a si mesma, e nesse infinito devorar-se, a si mesma se aumenta infinitamente (esta imagem anima o conceito bergsonino de tempo), não poderemos transitar da filosofia especulativa para a filosofia operativa.
Não será, também, difícil aproximar a fenomenologia daquela visão da que Telmo, laboriosamente, relevou em Camões, segundo a forma tradicional da gnose persa, com o que se não afastou da matéria posta por Bergson. Como escreve em 1963:
A indistinção entre o «dentro» e o «fora» pode dar-se na própria percepção. Em La Pensée et le Mouvant, Bergson desenvolve uma teoria da percepção segundo a qual a percepção comum corresponde a um empobrecimento da percepção original. Esta seria animada, vivente, profunda, de tal modo que, sem intervenção do raciocínio ou de qualquer função mental, as coisas seriam percebidas na sua realidade interna, – como movimentos.
O cume atinge-se, todavia, em Bergson pela intuição, «conhecimento do espírito todo pelo espírito todo». Sendo «real porque directo, sem imagens interpostas», e «transmutador porque o homem que consegue tornar activa a intuição latente sofre uma dissociação dos elementos psíquicos que altera as condições naturais de manifestação do espírito», ele é «eficaz porque o pensamento, restabelecendo-se numa nova relação, – dinâmica –, com a matéria, tem em si a possibilidade permanente de realizar prodígios».
Aqui retomamos a entrevista à Encontro, onde se explicita que operativo significa eficaz, isto é, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal, pela possibilidade permanente de realizar prodígios. Mas a redenção, sobre realizar-se na plenitude do composto humano, não é exclusivista. A relação dinâmica com a matéria que a garante, se opera sobre a densidade do próprio corpo, abarca o outro e o mundo.
No escrito de Viagem a Granada em que, combatendo o gnosticismo, perfilha a concepção brunina de que «a matéria não é eterna como Deus», Telmo propugna a Cabala d’A Ideia de Deus. Convergindo com Álvaro Ribeiro para divergir de José Marinho, ali proclama que
“o pensamento procede da contemplação”, não para que Sofia, representante da alma humana, se eleve do lodo terrestre, onde se submergiu, mas para organizar esse lodo em sociedade de homens livres. A política é, assim, a primeira das ciências, como para Augusto Comte fora a sociologia.
Ainda neste livro, sempre na senda do mestre, afirma:
O filósofo aristotélico (…) é o que pratica a contemplação, mas não para se dissolver em qualquer homogeneidade mística, mas para receber do mundo sobrenatural o sopro inspirador das palavras que fazem ver, das palavras criadoras de pensamento.
E, num terceiro texto, considera que «nunca foi tão necessário dizer abertamente e por toda a parte o que julgamos saber no seio dessa “actividade invisível” que é o pensamento».
Cumpre-se, então, a redenção na imanência? Não. Em “Meta-História ou a Terra Prometida”, arrostando a evidência do mal, Telmo afirma que
a terra em que vivemos é apenas um laboratório; no athanor da humanidade separa-se o denso do subtil. Esta não é a terra definitiva. Para onde vai a energia que, pela entropia, constantemente se perde? Transforma-se em energia espiritual. Tudo quando de bom e de verdadeiro se pensou e imaginou, se pensa e imagina, é o subtil que se separa do denso e vai formar a Terra Prometida. As formas do nosso verídico imaginar ficarão à espera de que os tempos se cumpram para se incorporarem numa nova humanidade de que não participarão só os vivos de então, mas também todos os mortos do presente e do passado que não podem ter vivido em vão.
A entrevista à Encontro confirma esta tendência, pois
é no mundo intermediário, intermediário do mundo para Deus e de Deus para o mundo, que tudo se decide. Não é na terra; aqui todos são jogados. A filosofia portuguesa é uma criação da língua, é o que resulta da língua se pensar no espírito dos humanos. As suas teses, sobretudo os seus teoremas actuam no mundo intermediário, são tidas em consideração ali, pois, como ensinou Leibniz, «os anjos também investigam». Porque eu creio (…) que uma Nova Terra nascerá tendo por matriz a matéria do mundo intermediário ou imaginal, «essa matéria de que os sonhos são feitos».
Como conciliar estas duas direcções, aparentemente divergentes, da sua arte poética? Será insincera a sua esperança quando mostra ser por Neptuno «que o alto espírito contemplativo de Agostinho da Silva se torna activo pela palavra política, a humilde, audaz e inteligente serva da cidade dos homens para que um dia nela mandem os pobres e os iluminados»?
Para o pensamento maçónico, que é também o seu, não há contradição entre teurgia e política, entendida esta superiormente. Por aquela entende Charles Mopsik «a arte de produzir o divino ou efeitos na esfera do divino, com um fim redentor e não com fins pessoais egoístas». Em Filosofia e Kabbalah, Telmo afirma que o que é comum aos poetas e filósofos da Escola Portuense «é o modo de entender a oração como uma forma poética ou filosófica de acção sobre o mundo espiritual capaz de acelerar o processo colectivo de redenção». Mas essa acção, ainda que, em seu fundo martinista, se repercuta teurgicamente no mundo intermediário, incide também, como se verá, sobre este mundo.
Do conhecimento pela experiência do mistério ao pensamento que lhe dá expressão cumpre-se a arte poética de António Telmo, que, sobre o conto A Dama de Ouros, dirá a Ângelo Monteiro: «Esse conto tem por núcleo irradiante o mistério da imaginação e a experiência pessoal desse mistério. As palavras com que escrevi o conto ensinaram-me a conhecer melhor esse mesmo mistério e o que é dado na sua experiência.» Na verdade,
o homem, que tem por espírito a razão poética, precisa da língua para pensar, pensa com palavras, isto é, desenvolve em imagens e conceitos as ideias que o intelecto superior lhe comunica. Se todos os homens pensassem do mesmo modo, isto é, se não houvesse como há formas de pensar heterogéneas em correspondência com diferentes línguas, os anjos não teriam qualquer interesse em ensinar-nos ou em aprender connosco.
Assim se demonstra a importância decisiva da descoberta revelada na Gramática Secreta da Língua Portuguesa: a conformidade da estrutura fonética do idioma pátrio com a árvore sefirótica. Na senda de Moshe Idel, o pensamento de Telmo deve ser referido à cabala teosófica-teúrgica de linhagem sefardita. Da teosofia, isto é, do conhecimento das leis e das estruturas do mundo divino depende a eficácia da oração como uma forma poética ou filosófica de acção sobre esse mesmo mundo, isto é, da teurgia.
Mas a razão poética é bifronte.
Na esteira do capítulo “Os ritmos” de Arte Poética, lembra Telmo a Ângelo Monteiro: «O encantamento é o que é próprio da poesia, que para tanto dispõe do ritmo e da imagem. O ritmo embala e adormece a alma. Ai daquele que no ritmo incorpora imagens contrárias aos impulsos do ser que se rendeu ao encanto por aspirar ao Bem e à Verdade.»
Noutra entrevista, conduzida por Vítor Mendanha, afirma:
«A razão é o nome do espírito humano», escreveu Álvaro Ribeiro, e, se a intuição é divina, ou semidivina ou angélica, uma vez dada, deve ser integrada na economia espiritual da Terra.
Ainda que, de facto, possa não o ser, deve a História ser dignificada por um processo de assunção a que aqui se chamará de primeira instância. Tudo está, pois, em garantir a adunação da política à realização espiritual de cada homem.
Mas o que é a História?
Em Viagem a Granada, Telmo explora o equívoco da palavra, que se apresenta
num duplo sentido, um pelo qual é sinónima de conto, como em contar uma história, e outro pelo qual significa a realidade vivida pelo homem na sua existência terrestre, aquilo que é costume designar por mundo dos factos, considerados em sucessão. Pelo primeiro sentido, a palavra é relativa à poesia e à imaginação, pelo segundo à vida que temos por real no tempo e no espaço físicos.
Considerando a hierarquia aristotélica que subordina a história à poesia, e que os adultos, perante as crianças, tendem a subverter pela afirmação do facto histórico em detrimento dos contos tradicionais, tidos por fantasiosos, Telmo lembra o aforismo de Goethe: «Os fenómenos são mistérios manifestados», fazendo notar que também «a história de um homem, a de um povo ou a da Humanidade devem ser vistas como a manifestação de profundos mistérios». E prossegue:
Tal visão da história somente é possível se soubermos realizar o procedimento mental inverso, o de trazermos ao plano da positividade os contos ou as histórias como o de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, ao plano da positividade vivida, por tal modo que tomemos esses relatos absolutamente a sério, naquela atitude de alma que assumiremos certamente se pensarmos que o seu autor anónimo pode muito bem ter sido Deus. Então, nem a poesia será mais verdadeira do que a história nem a história mais verdadeira do que a poesia.
A vida vivida segundo a razão poética, aqui pressuposta; e a História assim dignificada pelas vidas que a entretecem – eis a assunção da História que, numa primeira instância, nos propõe. No início das Congeminações, Agostinho da Silva esclarece-lhe o desígnio:
Foram Portugal e Espanha – sobretudo Portugal – a darem ao Mundo o conhecimento de si mesmo. Agora lhes conviria e lhes caberia o papel de dar o conhecimento daquilo que é fundamental nesse Mundo: Toda a gente poder ter aquilo a que chamo de Vida Poética, no sentido de criadora, em qualquer dos domínios: artes, ciências, filosofia, mística. Isso é possível e deveria fazer-se.
Que o maçonismo é compatível com o agostinianismo comprova-se pelo final do mesmo livro. Como Agostinho gostaria, ali se conciliam Platão e Aristóteles, pela resposta à pergunta do 5.º grau do ritual do Rito Escocês Antigo e Aceite: «Conheço os ideais celestes e esforço-me por os encarnar sobre a terra». É isso que, segundo Telmo, estará significado n’A Escola de Atenas, ao afirmar ser o fresco de Rafael «o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos». Na verdade,
eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica, um recebendo-a pelos dedos em ponta na mão fechada e passando-a para o outro que a dirige para nós pelos dedos separados da mão de palma voltada para a terra. Os olhos nos olhos concentram num único ponto o foco interior dessa energia.
Nada disto colide com o que, evocando António Quadros, dissera: «A revelação do oculto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma.» Nessa evocação se sublinha não poder o compromisso do mito com a História ser tal que seja já esta a decidir, «através da política», do sentido daquele. Neste ponto, somos remetidos para uma outra acepção, de segunda instância, que a assunção da História comporta no pensamento de António Telmo. O tempo não permite agora a sua abordagem, pelo que ficará para a versão desenvolvida deste estudo.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2016.
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* Comunicação apresentada ao 8.º Seminário do Projecto Redenção e Escatologia no Pensamento Português, da Universidade Católica Portuguesa.