VOZ PASSIVA. 71

21-09-2016 09:43

António Telmo e Manuel Maria Barbosa du Bocage:

A coragem de morrer vivo

ou a ressurreição antes da morte

Risoleta C. Pinto Pedro

Se Bocage dispensa apresentação, já António Telmo (o filósofo do futuro, que a Hermes foi buscar seu nome), injusta e infelizmente ainda dela necessitará, mas as coisas estão a mudar velozmente.

Procurarei mostrar de que modo a grandeza da alma humana transposta para obra de excepção, seja ela poética ou filosófica, se revela genial na diferente, mas semelhante expressão, no momento em que tudo é posto em causa, até a própria obra.

Aparentemente, nada aproxima estes dois génios, começando pelos séculos que os separam. Aprofundadamente, muito os irmana. O talento, a radicalidade e a excepcionalidade, a autenticidade na vida e na obra, a dedicação à criação, a demarcação em relação aos poderes, a complexidade do pensamento e respectiva expressão. A profunda humanidade. E, pasme-se!, a racionalidade. Num pré-romântico e num estudioso do esoterismo. Assim são os génios, esses centros do paradoxo.

Se lermos os textos do fim, a atitude de cada um perante a vida por causa da morte, e perante a morte por causa da vida, arrasta-nos para assistirmos a uma extrema-unção auto-administrada, ou uma coroação pungente de dignidade na dor moral.

Através da análise comparativa de passagens das obras do poeta Bocage e do filósofo Telmo, entraremos na contemplação do momento em que a aproximação da morte transforma a expressão estética numa ética da consciência. Derrota ou transcendência? Arrependimento, desolação e grandeza.

Perante a certeza e a dúvida, a mesma coragem. Na desesperada paixão ou na fria serenidade, à perturbadora aproximação da eternidade, essa tão próxima e tão distante desconhecida.

De António Telmo são muito tocantes as “Páginas Íntimas“, que poderiam ser uma síntese do portal em que se encontra o ser humano após abandonar todas as ilusões: silêncio, solidão, dúvida, nada. Esta é a grande prova da fé, a grande iniciação depois de todas as iniciações. Pungente, honesto e generoso, este grito:

«A única esperança é a que uma tábua da nau divina em que me sonhei me possa servir de socorro no mar turvo da minha desolação. Desejei o mais alto. Procurei caminhos para ele. Perdi-me em todos.»

Faz parte de uma passagem de “Dois Escritos íntimos”, tal como a que se segue:

«A sensação que me tem, ao evocar-me no meu passado, é a de que tudo foi em vão. É uma sensação de derrota, de rota desfeita, de naufrágio, de navis fracta. [...] Desejei o mais alto. Procurei caminhos para ele. Perdi-me em todos. Hoje, não sei pensar, não sei sentir, não sei praticar. Lentas e surdas correm as horas sobre o meu ser.[...] Se viajo ainda, é sem o saber. A sensação é só a de estar parado como no cinema a ver correr uma fita. Tudo o que vi é como se não o tivesse visto, porque tendo-me sido mostrado veio no “instante” que sendo sem ser é, por isso, impossível de conservar. Estou infinitamente só, sem pão para a minha boca e luz para o meu olhar. “Do fundo do abismo chamo por ti.” Dizem-me e eu compreendo que não virás porque o meu grito é calculado»

O que Telmo vive ou expressa neste texto é algo que eu poderia sintetizar como:

Morte, transição, iniciação, ou a coragem de morrer vivo, através da admissão sincera de uma derrota.

Esta iluminada e iluminadora passagem, arrancada às entranhas da solidão escura a golpes de dor, é o retrato de uma importante etapa da vida de um ser humano consciente.

O momento em que, após todas as experiências, o experimentar de todos os caminhos, o verbalizar de todas as certezas, perante a fragilidade do corpo e a ausência da evidência, o ser baixa os braços. Não será arrependimento, porque sabe que lhe competia fazer o que fez, nem desistência, porque não lhe está na natureza, é antes a dolorosa e corajosa assunção de que depois de tudo, a dúvida permanece. Rendição, entrega, aqui estou mais pequeno do que quando cheguei.

O sentir, como diz, «que tudo foi em vão».

E aqui entra o de todos nós conhecido soneto de Bocage, que tomei como base para esta aproximação:

 

«Já Bocage não sou!... À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento...

Eu aos céus ultrajei! O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.

 

Conheço agora já quão vã figura

Em prosa e verso fez meu louco intento.

Musa!... Tivera algum merecimento,

Se um raio da razão seguisse, pura!

 

Eu me arrependo; a língua quase fria

Brade em alto pregão à mocidade,

Que atrás do som fantástico corria:

 

Outro Aretino fui... A santidade

Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos, crê na eternidade!»

 

Se para Telmo «tudo foi em vão», igualmente afirma Bocage: «Conheço agora já quão figura/ Em prosa e verso fez meu louco intento.», reduzindo à vacuidade a sua obra, como se esta espelhasse o autor ou reforçasse o «louco intento».

 

Bocage afirma «Já Bocage não sou». Telmo confessa: «Hoje, não sei pensar, não sei sentir». 

Em Bocage, o seu nome é como uma máscara que caiu.

Apesar de a dissolução da alma não representar, para a filosofia portuguesa a aniquilação, nesta fase de término, Telmo até essa antes certeza não posso afirmar que negue, mas solta, como a máscara.

Mas se em Bocage existe arrependimento: «Eu me arrependo», já o mesmo não podemos afirmar em relação a Telmo.

Talvez graças a um padre libertador, banhado pela aura do Espírito Santo ou da Graça, que o absolveu para sempre, ao dizer-lhe aquando da primeira confissão: «̶  Vai-te! Tu não tens pecados.»; sem, segundo ele, «o deixar abrir a boca».

Em si ficou implícito, talvez devido a este episódio, que nada há de que se arrepender, porque tudo foi tentado: Desejou, procurou e perdeu-se.

A palavra, para Bocage, é arrependimento. Para Telmo é desolação.

Bocage põe a tónica no erro, sinónimo de pecado. Este precursor do romantismo lamenta a ausência de «um raio da razão», aquela de onde ele vem, onde se fez a sua formação. Já saudade, talvez, do século das luzes, ainda o seu. Mas apesar da regularidade do soneto, da presença dos elementos clássicos, como a linguagem erudita; a alusão à Musa; a comparação com uma figura da plenitude do Renascimento Italiano, Aretino; a referência positiva à razão, já é todo emoção, todo paixão, todo arrebatamento: na explosão sentimental, no vocabulário escolhido, no excesso emocional presente na pontuação pródiga em exclamações, na ideia de morte a rondar todo o poema, no diálogo imperativo, radical.

Telmo, por sua vez, é sereno no desespero. É a razão que analisa, com o mínimo de turvação, o desespero, e o acalma. Sem o atenuar. Uma quase frieza intensa, lucidez afiada como lâmina. Arrepia. Queima de excesso, não de Bocageana paixão, mas de fria filosófica serenidade.

A Bocage sempre podemos absolvê-lo, estende-nos, arrebatado, a mão arrependida para que o façamos. A Telmo não, não tem pecado, apenas a presença implacável da inalienável aventura humana:

«sensação de derrota, de rota desfeita, de naufrágio, de navis fracta».

A honra do guerreiro que lutou e perdeu, que envelheceu. Apenas. É a vida. Sem culpa. Apenas desolação. Desespero silencioso e digno.

 

Neste soneto de final de vida, “Já Bocage não sou”, o poeta mostra estar arrependido por algo a que chama vacuidade «vã figura em prosa e verso», define seu «intento» como «louco», apelida a sua obra de «som fantástico» não no sentido que hoje atribuímos ao adjectivo, mas de algo sem consistência, compara-se a Aretino, cuja poesia e vida foram consideradas libertinas e à margem da moral, acusa-se de ter manchado a santidade e exorta quem o leu e nele acreditou, a rasgar os versos e a crer… «na eternidade!».  Dele, a fé não se ausentou.

Contudo, uma vida deitada ao chão. Num poema poderosíssimo de arrependimento.

Os versos como veículo da devassidão. Como se deles se tivesse retirado o sagrado. O peso da Igreja com a sua condenação do corpo e dos prazeres a ele associados.

Por sua vez, Telmo, o filósofo da “Misteriosofia”, mais judeu do que católico, e portanto celebrando o corpo na busca da alma, aos 80 anos parece deitar tudo a perder. O filósofo duvida dos caminhos da busca aonde o pensamento o levou. 

O poeta lamenta os versos que escreveu.

Procuraram o mesmo, por diferentes caminhos. Telmo procurou «o mais alto» e não encontrou. Bocage tê-lo-á encontrado, mas sente que o desmereceu: «eu aos céus ultrajei». O que um encontrou e perdeu, o outro buscou e não encontrou.

Vejamos o último texto das Páginas Autobiográficas, “O Quarto Inimigo do Guerreiro”.

«o sonho que vivo há oitenta anos é constituído por uma quantidade mínima de pesadelos. De resto, o que me é contrário deixa-me mais ou menos indiferente. A vida é sonho. Perturba-me às vezes pensar no que haveria de mal por detrás desses pesadelos.

[...] Tentei sair deste “deixa andar”, depois de ter visto o meu fracasso a escrever a Gramática para o Abel Lacerda. [...]

[...] Isto hoje já não me entusiasma.»

 

É necessário ter coragem para descrever a proximidade do abismo:

«Estou velho. A velhice é, segundo o famoso Índio inventado por Castañeda, o quarto inimigo do guerreiro.»

E Bocage, um passo mais à frente, já a ver o abismo:

«À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento...»

Ambos se confrontam com a dissolução que o envelhecimento e a morte aparentam. Têm sobre os olhos a venda do neófito antes da iniciação, aquele momento em que todo o saber se perde.

É necessária enorme coragem para enfrentar a verdade da dúvida, e mais ainda, escrevê-la.

«Eu sei que sou, como é cada homem, um misterioso mágico microcosmo que só se conhecerá tendo a coragem de descer ao poço da alma, se é que há alma e não só corpo

Essa dúvida, ou a sua verbalização, não tem ímpar na bravura. É ela a fonte do seu tormento. Cada um bebe de água diferente com que se atormenta:

Bocage tenta desfazer o passado ou consertar o mal feito, implorando ou imperando ao leitor: «crê na eternidade!»

É esta certeza da eternidade, que evidencia, que o atormenta. Ou alivia?

 

Já para António Telmo:

«No céu enublado não há estrelas.» e «se é que há alma».

 

Se um se atormenta pela responsabilidade que terá tido em afastar outros da eternidade de que não duvida, Telmo que não duvidou, agora procura e não vê, e perturba-o o não ver, ele que foi, mais que ocultista, o grande desocultador, o do olhar laser sobre o que os mortais olham sem ver, sendo que ele aí descobria sinais inequívocos, evidentes e eloquentes do desenho do oculto. Parafraseando Camões, que a ele como a poucos se aplica, leu mais do que viu escrito.

 

Mas é apenas aparente, a divergência.

Porque Aquele que não acorre ao grito do fundo do abismo não o faz não porque não exista, mas porque «o [...] grito é calculado».

É grande, afinal, a convergência.  Para ambos, o céu existe, mas algo os separa dele: num caso a devassidão, no outro o cálculo. A devassidão foi coisa do passado. O cálculo é coisa do presente. É grande, afinal, a divergência.

Ou talvez não. Em ambos existe um ser que se sente e assume como responsável: pela devassidão ou pelo cálculo. É grande, afinal, a convergência.

E o efeito é igual:

Sentimento de expiação pela vivência do castigo que é tormento:

«O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.»

 

Ou de separação:

«Estou infinitamente só, sem pão para a minha boca e luz para o meu olhar.»

 

E mais coragem ainda é necessária, e a ambos comum, para encontrarem e revelarem o fracasso daquilo a que dedicaram as suas vidas, a Obra:

Telmo: «Tentei sair deste “deixa andar”, depois de ter visto o meu fracasso a escrever a Gramática para o Abel Lacerda»

Bocage: «Oh! Se  me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos,»

 

«Conheço agora já quão vã figura

Em prosa e verso fez meu louco intento.»

 

Assumidos fracassos do que lhes encheu as vidas, no momento de toda a verdade, na maior solidão.

 

E contudo, existe uma esperança. Verbalizada:

O efeito aliviador do tormento ou sofrimento, o arrependimento («eu me arrependo») e a reparação («rasga meus versos»), no caso de Bocage.

No caso de Telmo, «A única esperança é a que uma tábua da nau divina em que me sonhei me possa servir de socorro», uma espécie de Graça concedida, não vinda de fora, sim por efeito de um sonho do próprio, o efeito poderoso da responsabilidade por si mesmo.

Tal como Bocage, no meio do cenário de desespero, algo pode ser feito.

E em ambos, afinal, e apesar de tudo: a crença:

Bocage: «Crê na eternidade.»

Telmo: «não virás porque o meu grito é calculado», o que faz acreditar que alterando a qualidade do grito Aquele que é chamado manifestar-se-á.

A assunção da responsabilidade pela fé. A própria, no caso de Telmo. Pela dos outros, no caso de Bocage.

A preocupação do poeta está na convicção de ter desviado gente do recto caminho, como se o seu poder aí chegasse.

Afasta-se, neste caso, das preocupações finais do filósofo.

Quem com ele privou sabe, afirma e confirma que não pretendia que o seguissem como mestre.

Distinguem-se ainda Telmo e Bocage na relação que cada um tem com o pecado.

Não há conciliação, em Bocage, entre o pecado e o céu, sendo o problema, não a falta de crença no céu, mas a crença no seu acesso por causa do pecado na terra. A questão de Telmo é quase ao contrário: uma vida de quase inabalável fé sofrendo, com a aproximação do fim, um aparentemente irreparável sismo. Não tão real assim.

Mas em ambos, o largar da ilusão, neste caso o antecipar dessa revelação ou apocalipse em estado agudo de lucidez que pressente que ninguém está a salvo das fantasias. Até nisto, dois grandes mestres, embora relutantes à mestria.

Depois desta viagem pelo essencial derradeiro medo que com estes seres excepcionais fizemos, uma observação parece impor-se:

Perante a possibilidade da fragmentação, e sublinho «possibilidade», não inevitabilidade, Telmo e Bocage fazem o que os poetas alquimistas não podem deixar de fazer: transformar a «noite escura» da alma em alvorada, por mágica transformação, pela luz da consciência, nas condições mais difíceis, na busca da verdade, ainda que dura.

Curioso que este estado de perplexidade perante a nova, a totalmente distinta das anteriores dificuldades, não os deixe, afinal, completamente surpreendidos.

Vejamos uma carta a Álvaro Ribeiro em 1959, com 32 anos de idade e 51 anos antes de morrer, um texto antecipatório, quase premonitório, como se já tivesse vivido tudo:

 

Disse-lhe na última carta que tinha deixado de escrever [...]A minha vida foi toda um engano. Esperei imenso: em mim. Julguei-me, muitas vezes, uma inteligência de escol. Resta-me o consolo dos medíocres: – ter convivido, em fraterna amizade, com homens superiores. Por isso as minhas cartas não têm interesse de maior e nas minhas palavras haverá sómente o traço viril de uma ironia amarga, e de um despeito calmo (…)» [BNP, Espólios N9/1047] 

 

Igualmente em Bocage verificamos que não é apenas do fim a lucidez que o habita:

« Apenas vi do dia a luz brilhante/ Lá de Túbal no empório celebrado,/ Em sanguíneo carácter foi marcado/ Pelos Destinos meu primeiro instante. //[…] E enquanto insana multidão procura/ Essas quimeras, esses bens do mundo,/ Suspiro pela paz da sepultura.»

Como Sampaio Bruno à beira da morte, pela pena de António Quadros, num extraordinário romance biográfico, Uma Frescura de Asas, que sobre ele escreveu:

«Olhamos para dentro de nós e apercebemo-nos de que fomos pouca coisa, de que somos pouca coisa, Escrevemos livros, […] montámos toda uma teoria de respostas satisfatórias para as nossas mais fundas interrogações, julgámo-nos senhores de um saber superior ao da maioria dos nossos amigos ou contemporâneos, mas sempre a mesma pergunta, contundente e inevitável. O que se encontra, meu Deus? […] Não tenho medo da morte. […] Tenho pena, sim, de não deixar gravada na memória das gerações que virão a ideia de que viver com honra é pensar com autonomia, a partir do que mais nos é próprio, do mais íntimo da nossa consciência e do nosso espírito.

Que importa na verdade a autoridade dos nomes? Que quer dizer a subserviência às reputações feitas? Nós somos livres, nós outros, sabei-o; e mais nos quadra cair no erro, independentes, do que subir às alturas, equilibrados nas asas alheias. O que o moderno lusitano tem a ler, de ora em diante, no pórtico da sabedoria, é a divisa inapagável: pensa por ti próprio e não estabeleças juízos por ouvir dizer.»

A capacidade que têm certos seres de, sem negarem a morte, dela se salvarem ressuscitando antes dela, pela destruição de qualquer coerência que tivessem construído, pelo exercício consciente e verdadeiro da corajosa lucidez.

Como Agostinho:

«O que chamamos verdade/ é coerência inventada/ por um saber que imagina/ que sabe e não sabe nada.»

Dois seres, Telmo e Bocage, separados por quase dois séculos, no supremo momento, pondo em causa a autoridade dos próprios nomes («Já Bocage não sou» e «Perdi-me»), deitando ao chão a reputação e a obra, frágeis e limitados como nunca, e livres, independentes.

Ainda Agostinho: «e que a partir de não ser/ te construirás total.»

Em comum, a transcendente coragem. À beira do abismo retiram a máscara que restasse e vestem-se da nudez do nada, como o neófito que deixa os metais e as roupas profanas à porta do templo e tal como veio ao mundo, apenas coloca sobre si o hábito de noviço.

Iniciados preparando-se, já desde o nascimento para a grande prova e terceira iniciação, em que a venda se cola aos olhos e não há quem a arranque. Pelo menos daqui. De lá, por muitos livros escritos, por muitas frestas espreitadas, nada conhecemos. É isso a iniciação e sua condição: salto no escuro, nada saber. Dela, estes dois Irmãos Maiores deixaram comovente e corajoso testamento filosófico, a sua obra, vibrante de contradições e tão viva. Através do seu Apocalipse, ou Revelação, nossa Epifania.

Poderia ter usado, para este texto, um título de Huxley, esse mestre da ‘Arte de Olhar’ que mereceu o interesse de António Telmo, e que seria: “Também o cisne morre”. Estes génios sentiram-se como provavelmente todos os cisnes numa comunidade de patos, sem ofensa para estes.

Só os cisnes se expõem à vulnerabilidade e à dor que é duvidar das antigas certezas talvez fantasias do:

«conceito que fazemos de nós próprios. Imaginamo-nos criaturas livres, dotadas de uma finalidade. Mas, de vez em quando, acontecem coisas incompatíveis com esse conceito. Chamamos-lhes acidentes; chamamos-lhes despropositadas, irrelevantes. Mas em que critério nos baseamos para julgar? No retrato que a nossa fantasia faz de nós próprios».

Só um cisne tem estrutura para arrostar com esta realidade. Porque sabe que morre. A condição indispensável para poder renascer.

Se aqui estivesse Pessoa, acrescentaria aquilo que eles sabiam e que não os impediu do tremor, o frio no indispensável despir a capa para entrar na “Estalagem do Assombro”, e assim apenas cito o final do poema “Iniciação”, que ilumina a escuridão em que as suas almas mergulharam, o caminho, o processo de confusão e espanto:

« […] neófito, não há morte…!»

 

 

É com Bocage que concluo, sábio mestre do paradoxo reunindo morte e vida e assim criando, com as potências que são as palavras, como tão bem demonstrou Telmo na Gramática Secreta, o poder que tudo transcende:

«Com dura e branda cadeia, 
Com facho activo e suave, 
De seus mistérios co'a chave, 
Amor entre nós volteia: 
Já deprime, já gloreia, 
Já dá morte, já dá vida; 
E nesta incessante lida, 
Que em si traz, que em si contém, 
Com o mal, e com o bem, 
Amor a amor nos convida.» 

Bocage, in 'Amor a amor nos convida (Décimas sobre verso único)' 

 

Julho 2016