VOZ PASSIVA. 69
89 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!
Penso logo poesisto
No aniversário de António Telmo
Risoleta C. Pinto Pedro
Não é como poeta que é mais conhecido. O problema é que nem o pensador o é, como seria bom para nós que fosse. Significaria isso que sabíamos preservar e honrar o nosso mais valoroso património a nível de pensamento.
Mas é dia de festa, deixemo-nos de lamentações. Embora seja dia de festa e de lamentação. Festa porque ele nasceu, lamentação porque ele partiu. O paradoxal equilíbrio universal…
Regressemos aos poemas, aqueles que ainda hoje estão a germinar do espólio.
António Telmo, na mais honrosa tradição nacional, é um filósofo poeta. Talvez não pudesse ser filósofo se não fosse poeta. O contrário talvez já não seja verdade.
Manifesta-se a veia em tudo o que escreve. Não precisamos de a procurar nos poemas. Ela está por onde lhe corre a escrita, que é por onde lhe escorre o pensamento. O pensamento escorre como se não coubesse no corpo.
Às vezes encontramo-lo a escrever um texto de reflexão que interrompe subitamente para deixar desabrochar a flor do poema. É comovente assistir a este processo gravado na página a testemunhar o acontecimento de há tantos anos atrás. A criação que a si mesma se interrompe para… criar. Do pensamento ao poema.
Outras vezes o poema ergue-se na página isolado e silencioso no seu íntimo dialogar. Como este:
“Soltam-se puros no ‘espaço perfeito’
A ave e o sino e o vento informe
Não são quem os produz, mas seu efeito.
Sou eu que acordo o som que neles dorme.
Esqueço-me de mim nas horas que se seguem.
Tomei a sério o que me julgo ser
Múltiplos fantasmas me perseguem
Com o ar de quem aqui está a viver.
Não lhes digo para que me não neguem
E me tenham por um doido de varrer
Como proceder para que de mim se desapeguem
E a sua sombra não impeça o conhecer?”
(Inédito) António Telmo
Nem vale a pena falar sobre os aspectos mais materiais do poema, a irrepreensível elegância da forma. Independentemente de qualquer preocupação de regularidade métrica, que não o obceca, a musicalidade ao correr das palavras aliada ao rigor das imagens.
Aqui, como sempre, a busca do oculto, palavra que uso no sentido não esotérico, mas absolutamente literal, aquilo que não se vê, o que se esconde por trás do que é visível:
‘Não são quem os produz, mas seu efeito.’
Ele, como Pessoa, sabe:
O que para Pessoa é o ‘É em nós que é tudo’ é para Telmo ‘Sou eu que acordo o som que nele dorme.‘
Ambos conscientes da multidão que, num caso o habita (heterónimos), noutro caso o persegue (‘Múltiplos fantasmas me perseguem’). A lúcida e muitas vezes dolorosa consciência da multiplicidade.
E a fantasmática fantasia (assumo a redundância), sobre a qual se constrói a vida:
‘Tomei a sério o que me julgo ser’.
E no entanto, como se sabe (e como nos sabe) quando se desnuda do que não É!...
Mas neste drama coexiste, quase imperceptível e por isso tão poderoso, o humor, a esconder a quase troça que apenas se adivinha. E assim retira, aos ‘fantasmas’, o poder que não têm: “Não lhes digo para que me não neguem”.
Talvez seja este subtilíssimo sorriso a poderosa arma a evitar a tragédia cuja ameaça quase se adivinha:
“Como proceder para que de mim se desapeguem
E a sua sombra não impeça o conhecer?”
Estando a ameaça em forma de pergunta, ela é habilmente antecedida pela resposta (“Não lhes digo”) que é um antídoto poeticamente administrado em forma homeopática, altamente diluída, de quase oculto sorriso. Apenas para quem conseguir descortiná-lo. Uma espécie de Graal sob o nosso nariz, disfarçado de levíssima ironia. Em taça de poesia.
Feliz aniversário a todos nós por este Irmão Maior a viver agora em lugar onde os aniversários devem causar subtis sorrisos e terna amorosa condescendência por aqueles que ainda não podem compreender.
2 de Maio de 2016