VOZ PASSIVA. 65
ÁLVARO RIBEIRO, SEMPRE!
No dia em que se completam 34 anos sobre a exaltação de Álvaro Ribeiro, oferecemos aos nossos leitores, em pré-publicação, o primeiro capítulo de O Teorema de António Telmo, ensaio prefacial que Ruy Ventura escreveu para Filosofia e Kabbalah seguido de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica e outros estudos, IV Volume das Obras Completas de António Telmo, a ser lançado, ainda este ano, com a chancela da Zéfiro e o apoio institucioonal e científico do nosso Projecto. É, estaremos em crer, um excerto elucidativo da profunda cumplicidade que unia o discípulo ao seu mestre.
O teorema de António Telmo (excerto)
Ruy Ventura
“Os sábios são aquelas divinas inspirações que põem ordem nos pensamentos, ponderam as palavras, abrilhantam as obras, compõem a vida e tudo dispõem rectamente. Quem caminha juntamente com estes sábios torna-se sábio. […].”
Santo António de Lisboa
Sermão da festa do protomártir S. Estêvão
1.
Conta António Telmo em Filosofia e Kabbalah que Álvaro Ribeiro ensinava os seus discípulos “a converter os poemas e os filosofemas, sempre que possível, em teoremas”, explicando-lhes que tal deveria traduzir-se “numa figura geométrica visível, porque o desenho, se viesse a ser traçado segundo as regras da arquitectura, nos revelaria o desígnio do poeta ou do filósofo” [FK[1], 174].
Isto dizendo, indicava o filósofo d’ A Razão Animada pelo menos duas tríades: a primeira estabelecendo uma hierarquia de géneros (poema, filosofema e teorema) e a segunda aclarando a gradação do percurso hermenêutico (desenho, desígnio e arquitectura). Se estivermos atentos, repararemos que a segunda é o desenvolvimento do vértice superior da primeira, ou seja, do teorema – “figura geométrica visível” –, desenho instrumental que leva à revelação do “desígnio” do autor do texto poético ou filosófico, por obediência às “regras da arquitectura”. Tratar-se-á não só do projecto, propósito ou intenção do ser escrevente, mas também da vontade de um autor superno, legislador dessas “regras”, ou pelo menos do seu nome ou designação. A “figura geométrica visível” deve assim ser entendida assim pela expressão inversa, sem a qual esta não existiria, pelo seu reverso, oculto, incluso ou latente no texto analisado. Se há manifestação de uma figura, do aspecto exterior de um corpo ou de uma sua representação, é porque além do representante está o representado. Se é necessária a geometria, terrestre, é porque esconde a medida do empíreo ou do mundo inferior. Se algo se torna, assim, visível, é porque estava invisível. O verbo que a tudo preside é revelar, vocábulo dúplice que mostra e esconde no seu prefixo. E as “regras da arquitectura” assim se evidenciam porque obedecem ao arkhé, ao princípio, ao segredo e à potência, emanados daquele a que a tradição maçónica – de que Telmo e Ribeiro se reivindicavam – chama Supremo Arquitecto do Universo, ou seja, Deus, o Théos incluso no teorema e também na theoria de que aquele é expressão.
A acção hermenêutica sobre um texto poético ou filosófico deve assim visar a sua revelação, sendo ele a expressão de algo de divino, de que o filósofo ou o poeta é agente, inspirado por intermédio da imaginação. Em rigor, o que Álvaro Ribeiro propunha e António Telmo propaga era algo de muito sério e perturbante, nomeadamente para aqueles que se habituaram a surfar nas águas do relativismo estético e ético: a poesia e a filosofia só detêm veracidade se permitirem a theoria, que é muito mais do que uma teologia.
Se, para Platão, a theoria era a visão da essência, o platonismo tardio entendeu-a como ascensão da alma que deseja tornar-se semelhante a Deus (homoiosis), requerendo, na opinião de Boécio, a sua participação no Espírito Divino mediante um pensamento puro (participatio) e tendo como consequência, segundo Cassiano, uma luta intelectual em recolhimento, em quietude e contemplação (contemplatio). Trata-se de um caminho de esforço mental e de purificação da parte animada do ser, que se encontra presa no corpo (cf. Lüdemann in DM, 829). Tal actividade – dirigida ao nous – consiste numa perpétua descoberta, conduzindo da potência ao acto, segundo Aristóteles (cf. Santiago, 2013: 152).
António Telmo, ao longo de 58 anos de produção escrita (1952 – 2010), pôs em letra de forma as três modalidades (poema, filosofema e teorema), sendo sobretudo assinalável a sua actividade hermenêutica, praticando sempre aos ensinamentos daquele a quem devia “ter podido escrever quanto escrev[eu]” [FK, 7], mesmo quando tal não é manifesto. Tinha consciência de que “a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela” [FK, 8] e por isso se expressou nos mais diversos géneros literários. No teorema procurou a theoria, submetendo-se sempre às “regras da arquitectura”. Não sendo “paleógrafo” nem “biógrafo”, podemos incluir assim o autor de Congeminações de um Neopitagórico na conta dos “arqueólogos”, definidos assim pelo seu mestre:
“[…] o arqueólogo pretende comparar a cultura do seu tempo, não com a cultura do passado, mas com os princípios que a transcendem, porque esse é o seu processo de realizar obra de filosofia. Na meditação dos princípios aristotélicos o arqueólogo arquitecta, isto é, desenha de dentro para fora, o movimento gerador da alta cultura. […]” (Ribeiro, 1953: 44)
Se António Telmo aplicou às obras que analisou os princípios metodológicos expressos por Álvaro Ribeiro, creio que construiu a sua com as mesmas regras de ocultação ou velatura, embora procedendo inversamente. Escrevendo ensaios, crónicas, diálogos, peças de teatro, contos, poemas ou aforismos, submeteu-os na maior parte, se não na totalidade, a uma disciplina arcana, jogando com o leitor e exigindo-lhe um esforço adicional que o incita a passar do nível literal de entendimento aos restantes definidos por Dante, no seguimento da antiga tradição judaico-cristã. Cabalista como era, sabia que a kabbalah medieval considerava que o Éden era, por excelência, o “lugar da leitura”, ao qual se chega subindo quatro degraus. Já Orígenes e São Jerónimo, alguns séculos antes, haviam proposto três degraus que levariam a um correcto entendimento das Escrituras: um primeiro, histórico ou literal; um segundo, tropológico ou moral; e um terceiro, místico ou alegórico. A boa tradição da kabbalah foi radicar-se, contudo, em dois outros autores cristãos, Cassiano e Santo Agostinho, que vislumbraram a perfeição hermenêutica em quatro etapas: na primeira domina a letra, oferecendo um sentido histórico, ao ensinar os acontecimentos do passado (littera gesta docet); na segunda, salienta-se a alegoria, ao desvelar o conteúdo da crença (quid credas allegoria); na terceira, exibe-se o conteúdo tropológico, que apresenta o sentido moral dos textos, iluminando o modo como convém agir (moralis quid agas); no cume da escada, temos o sentido anagógico ou escatológico, que esclarece o objecto da nossa esperança (quod tendas anagogia) (cf. Mendonça, 2013: 255 – 257). Nos alvores do Renascimento, Dante Alighieri tomou como sua toda esta tradição, definindo:
“[…] as escrituras [podem-se] compreender e devem explicar[-se] mormente por quatro sentidos. Um se diz literal, e é aquele que não vai além da letra das palavras fictícias, tal como são as fábulas dos poetas. Outro, alegórico, e é aquele que se esconde sob o manto destas fábulas, constituindo uma verdade oculta sob uma bela mentira […]. § O terceiro sentido chama-se moral, e é aquele que os leitores devem atentamente andar buscando nas escrituras, para sua utilidade e dos seus discentes […]. § O quarto sentido chama-se anagógico, isto é, super sentido; ocorre quando espiritualmente se expõe uma escritura, a qual, ainda que seja verdadeira também no sentido literal, pelas coisas significadas diz das coisas supernas da glória eterna […]” (Alighieri, 1992: 61 e 62).
Telmo praticou este método como legente-hermeneuta. Escreveu desafiando os seus leitores para o exercício dos mesmos procedimentos, como se desejasse a todos a chegada ao Paraíso (pardèsh). Como teorizador, conheceu e expressou sempre o valor da humildade, quantas vezes através da auto-ironia, nos diálogos em que se foi vendo ao espelho. Num deles, uma das figuras chega a afirmar que “os seus livros são a expressão de um profano que se pôs a falar do que só por ouvir dizer conhecia” [CNP, 76]. Afinal, abordamos alguém que se definiu como “um pensador errante, sem casa própria”, reivindicando o direito a errar, defendido por Fernando Pessoa e por São Karol Wojtila (que ele cita) [FK, 10], ou seja, ao engano e à errância, ou não se apresentasse ele como um peregrinus [cf. DLP, 484] e também, deduzo, como um filósofo viajante ou um cabalista nómada.
Percebendo quanto há de indeterminação na interpretação de qualquer texto que se preste a uma tradução teorética, António Telmo surge a defender um método associativo, que não entra em colisão com os quatro sentidos de um texto da antiga tradição judaico-cristã. Se a sua meta é, como se viu, a revelação da vontade superna num teorema, tem consciência da incerteza que domina as relações com o sagrado e com o divino. Constata assim ser esse o melhor meio hermenêutico, quando se confronta, por exemplo, com uma obra de arte com a altitude da Mater Omnia, de Gregório Lopes, pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Sesimbra:
“Há um processo de interpretação por associações significativas de imagens e ideias, falsamente tomado por ‘simbólico’, que podemos aplicar ao estudo do painel […]. Não se trata de pensamento simbólico porque as conclusões a que se chega não contêm um carácter de evidência ou de certeza. […] Não há certeza na interpretação mas apenas uma conjectura.” [S, 41]
Esta via reveste-se de grande contemporaneidade. Se, por um lado, aplicada aos escritos de Telmo, reduz à sua verdadeira dimensão todas as leituras que se têm apresentado como verdades ou certezas, não escondendo alguma jactância (ao recusarem o artigo indefinido que Pedro Martins apôs humildemente no título de um livro seu (cf. Martins, 2015)), por outro vem recordar-nos o que há de melhor na Filosofia Portuguesa, que, sem complexos de inferioridade ou nacionalismos serôdios, pode ombrear com as melhores conclusões de outras linhas da nossa cultura e da cultura extralusitana.
António Telmo aplicou aos seus objectos de análise o método defendido, em ensino acroamático, por Álvaro Ribeiro. Claro está que não foi, como o correspondente de José Régio, um filósofo hierático. Sem deixar de ser sagrada, a sua via foi contudo outra, talvez mais lúdica, na medida em que entendia o jogo como algo de muito sério (como se pode ler em textos como “O Best” ou “A Dama de Oiros” [FK, 28 – 35]), envolvendo um risco e um perigo que vale a pena enfrentar com coragem: “[…] bem pesados os prós e os contras, se todos estamos no grande jogo e todos vivemos alucinados pela prestigiosa irrealidade do mundo sensível, não há nada como arriscar, antes que a rotina nos torne definitivamente brutos” [FK, 31].
Parece-me assim ser a hora de submetermos os seus textos ao mesmo processo, simultaneamente associativo e arqueológico. Para descobrir o desígnio de António Telmo é, pelos vistos, importante desenhar uma figura geométrica visível onde ele se manifeste.
Um bom ponto de partida será sempre Filosofia e Kabbalah. Quem leia este livro pelo menos três vezes, como aconselhava e fazia o filósofo de Uma Coisa que Pensa, conhecendo já algo da obra restante do escrito de Almeida e Estremoz, perceberá que esse volume, editado pela primeira vez em 1989, aos 62 anos de idade, é não só o eixo de toda a sua filosofia, como também o seu cume e a sua súmula retrospectiva e prospectiva. Se alguém ler outros títulos de Telmo sem conhecer este que menciono, ficará com uma visão fragmentária e desfocada de quanto pensava. Pelo contrário, se o ler, sem se aproximar de outros, beneficiará da recepção da essência ramificada do seu pensamento, no núcleo, nos temas e, até, nos géneros pelos quais se espraiou a sua escritura.
Essa ideia de totalidade parece ter presidido, aliás, à elaboração do livro. Se tivermos em conta que o “Prolóquio” é continuado em “Caçando com cão”, teremos um volume constituído por vinte e dois textos que abarcam todos os temas fundamentais da filosofia de Telmo. Não por acaso, o vinte e dois simboliza a manifestação do ser na diversidade, um ciclo completo e a conclusão da obra do Criador, sendo o número do Universo; por isso mesmo, são vinte e duas as letras do alfabeto hebraico, vinte e dois os capítulos do Apocalipse e, até, vinte e dois os arcanos maiores do Tarot [cf. DS, 1019]. Se juntarmos porém os dois textos supracitados, dando-lhes um carácter prefacial, ficaremos apenas com vinte e um capítulos; assim se verá sublinhada a perfeição de Filosofia e Kabbalah, centrada num objecto transcendente (Théos ou nous), sendo vinte e um os atributos da Sabedoria divina (Sb 7, 21) [cf. DS, 1018 – 1019]. Este raciocínio é confirmado pelo tempo que medeia entre as únicas duas datas inscritas no livro (20/6/1972 e 20/6/1980), precisamente oito anos. À perfeição e à totalidade se vê assim associado o algarismo do equilíbrio cósmico, da mediação entre o Céu e a Terra (entre o círculo e o quadrado), da justa completude e, ainda, da transfiguração, da eternidade e da beatitude [cf. DS, 511 – 512].
(...)
[1] Os livros de António Telmo, bem como os dicionários, são citados através de uma sigla, seguida do número da página. Essas siglas estão indicadas na bibliografia. Na citação dos textos restantes, segue-se o uso habitual.