VOZ PASSIVA. 63
Telmo e Temúria
Memórias de um laboratório de “ternúria”
Risoleta C. Pinto Pedro
Desde muito cedo, talvez quando comecei a ler, que inexplicavelmente para mim, e só para mim, porque nunca o confidenciei a ninguém receando que me metessem num manicómio, procedia mentalmente, em actividade incessante e compulsiva, a algo que considerava fúteis jogos de palavras e sons, mas que vim, muito mais tarde a saber, tratar-se de uma séria actividade que na Tradição ocidental se designa como Guematria, Notaria e Temúria. Precisamente o meu jogo: transposições, observação e deleite com o aspecto dos signos desdobrados em outros, comutações e combinações.
Não fazia ideia que procedia intuitivamente a operações imaginativas muito próximas da numerologia hebraica: inventava um valor numérico para letras e palavras, que depois relacionava em interpretações simétricas. Altas operações mentais de que hoje seria incapaz.
Esta pequena Cabalista procedia também a exercícios de Notaria, estabelecendo divinamente que a cada letra de uma palavra correspondia a abreviatura de outra. Conseguia até, com uma palavra, construir uma frase, numa espécie de exercício anagramático avant la lettre dentro da minha história, e com um notável rigor no mistério. Consoante a inspiração do momento.
Finalmente, a mais alta magia da Temúria, que ao que recordo era a que mais me divertia, procedendo à permuta de letras e sílabas dentro das palavras de modo a criar palavras novas. Muito pouco rigor Cabalístico, pois desconhecia as tabelas, mas um rigor afectivo e emocional que me desviou talvez de outras obsessões através desta, que na altura considerava totalmente gratuita e hoje percebo que me alimentou a criação, a liberdade, a imaginação, o símbolo, a capacidade para estabelecer correspondências, o matrimónio secreto e sagrado entre o número e a letra, e uma familiaridade leve e alegre com o mistério e a magia operativa da língua.
Relaxava-me, divertia-me, curava-me sei lá de que desconhecidas doenças, ainda antes de se manifestarem. Mesmo que assim não fosse, não conseguiria fugir-lhe, mas tornou-me íntima das palavras e números, ficando a conhecê-los por fora e por dentro, pelo menos na minha imaginação.
Que teria acontecido se me tivesse “queixado” a alguém desta secreta vida, para mim, na altura, muito próxima da loucura?
Como ainda não havia tantos psiquiatras como hoje há, talvez com sorte me tivesse saído bem, caso contrário não teria escapado a umas pílulas que me teriam reduzido a actividade mental ao nível da alface, com todo o respeito e afecto que tenho pela dita, mas não me parece que se entretenha, na horta ou nas bancadas do mercado, com exercícios de temúria.
Por essa altura, mesmo muito lendo, não conhecia Platão, era ainda uma infanta, mas se o tivesse feito, ter-me-ia tranquilizado com o Fedro, que cito a partir de “As estranhas etimologias de Platão” in Contos, de António Telmo:
"O melhor que nos é dado vem-nos por mediação do delírio, que é, sem dúvida, um dom divino. A profetiza de Delfos, as sacerdotisas de Dodona, quando estavam inspiradas pelo deus, deram aos gregos avisos que os encheram de benefícios na vida pública e na vida privada; mas, no seu estado de consciência normal, pouco sabiam ou nada".
"Eis o que vale a pena trazer aqui: os homens que, na antiguidade, estabeleceram os nomes não consideravam o delírio (manía) uma manifestação vergonhosa e um opróbrio. Se assim tivessem pensado, não teriam ligado este nome ao nome da arte por excelência que é a arte de adivinhar o futuro (manikê). Viam no delírio uma bela coisa, dado que provinha de uma dádiva divina...”
Fui, sem o saber, uma pequena sacerdotisa.
Telmo ainda não tinha chegado às minhas leituras. Publicaria, nesses arredores temporais, a Arte Poética, que eu, por muito precoce que fosse com os livros (e era-o), não saberia ler, e também ele ainda não tinha escrito, por essa altura, os Contos, onde mais tarde eu viria a encontrar-me e a encontrar:
“a Cabala, [...] usa exactamente os mesmos métodos de Platão na explicação dos nomes: a Temúria, a Guematria e a Notaria.”
E mais à frente:
“Olhe, vou-lhe ensinar uma coisa. Você diz que o que ali vemos em actividade é o génio da fantasia. De facto, como o próprio Sócrates o declara, podemos juntar letras, tirar letras, trocar letras. Parece assim muito fácil explicar qualquer nome e dar dele a explicação que quisermos. Experimente fazê-lo com, por exemplo, a palavra céu.
- O que é que devo fazer precisamente?
- O que Sócrates fez com os nomes que explicou: encontrar a palavra ou as palavras que estão escondidas na palavra céu, mas por tal modo que uma nova significação venha iluminar a significação corrente, enchê-la de profundidade.
Pus-me à procura e não encontrei nada.
- Como vê, não é fácil. Não é sequer possível num estado normal de inteligência. Se fossemos capazes de pensar a ideia do céu, eu não digo a ideia de céu, em ligação com a palavra que a designa, logo se apresentariam a exprimir o pensamento a que tivemos acesso as palavras foneticamente concordantes ou convergentes.
É o que Fernando Pessoa fez com a palavra Mensagem. Pensou-a à luz da ideia de levantar do chão o seu povo. Na sua qualidade de bateleur que faz da mentira uma verdade e da verdade uma mentira, sentou-se à mesa operativa de escritor e deixou-se possuir pelo daimon da analogia. Reconduzindo a palavra ao latim, jogou com as suas letras, desencobrindo os seus possíveis sentidos dentro da ideia vivente de Pátria concebida pelo seu espírito. Encontrou assim as seguintes significações: "MENS AGEM", "MENS AGITAT MOLEM", ENS GEMMA", "MENSA GEMMARUM", isto é, "A mente actua, "A mente remove as massas", "O ente pérola", "A mesa das pedras preciosas", aquela mesma mesa que é a mesa do bateleur.”
Sem querer ser ou parecer presunçosa, acredito que fiz parte de uma ordem secreta a que todas as crianças são agregadas na condição de depois tudo esquecerem, havendo no entanto algumas, mais obstinadas, que consegem manter na alma, ou na mente, algumas reminiscências. Essa ordem é responsável por conservar aceso no Universo o “génio da fantasia” escondido na palavra céu, a fim de o aprofundar. Isto não é possível “num estado normal de inteligência”, mas apenas possuído pelo “daimon da analogia” e assim, jogando, desencobrir o que as crianças conseguem.
Alguns adultos podem fazê-lo mantendo-se adultos e recordando a criança. Não é possível o fenómeno acontecer na ausência do adulto, a não ser no estado de criança. A criança que, embora crescendo, não atinge a condição de adulto, perde esta capacidade, perde o adulto e perde a criança. O adulto que perde a criança também não consegue ser adulto. É indispensável que o adulto cresça e a criança permaneça. É desta união inocente e poderosa entre consciência e imaginação, que a memória pode brilhar em focos de luz celestial à “mesa das pedras preciosas” que é a língua, nesta consciência enobrecida.