VOZ PASSIVA. 49

01-05-2015 19:43

Protréptico Télmico

Pedro Vistas

 

Dentre os vultosos nomes da luminar escola portuense, António Telmo terá sido quem melhor tipificou a feição renascentista que, duma ou doutra sorte, estes eméritos lusos foram espargindo. A dita escola e, sobretudo, o Grupo da Filosofia Portuguesa (ao qual pretendem pertencer alguns que lá não têm morada real, e pertencerão outros por indesmentível condição, mesmo que sem título de propriedade), foram a maturação e a cons-ciência reflexa do movimento da Renascença Portuguesa. O seu magistério consistiu, pois, em fazer renascer, reviver, ressuscitar, o que foi dado como morto, foi tão vital quanto isto o desígnio deste escol, e, por ser isto o que está em causa, assim se compreendem as letais forças de resistência que, quais prisioneiros, reagem contra a metánoia visada. Custa sair do leito de morte a enfrentar o dia novo e vivo com o qual se há-de coincidir até sê-lo. Como em todos os Renascimentos, este nosso, essencial, fez-se de uma multidisciplinaridade que pretendia concorrer para um ápice transdisciplinar, sintético e certeiro, que rasgasse os Véus de Ísis até uma visada objectiva e real, além de todas as perspectivas. Telmo foi quem mais se destacou nesta pluralidade uni-versal, ressubstantivando a filosofia com a inamissível dimensão teológica, sem esquecer a identidade ontológica dessa ontopoiética, aproveitando as artes para uma pedagogia que superasse o materialismo, o positivismo, o sociologismo, o historicismo, e o didacticismo, e reaproveitando os instrumentos gnosiológicos que estas parasitagens métricas haviam escusado para repor a criatividade (na linha do criacionismo), a realização espiritual, e o compromisso de cumprimento da Verdade vivida, para isso resgatando a astrologia, a numerologia, a kabbalah, ou uma filosofia da história universal e escatológica que entendesse a História como a ciência do porvir. A completude renascentista é de tal ordem que Telmo não afasta sequer aquele que é o mais desatendido e inexperimentado ensinamento da Paideía lusíada, a via heteronímica de Pessoa como método de condução personalística ao fulcro essencial, como no-lo mostra Tomé Natanael. Mas, mais do que polímato, Telmo assim atalhou caminho para o dito ápice transdisciplinar, pois o seu esfíngico rosto, face terceira de Janus, depunha o olhar no deslumbramento do Mistério vivo e impensável, na ratio essendi da vida. Nada mais inútil para a nossa civilização de século XXI, constituída por critérios de avaliação, parametrizações conformes, índices de produtos, e o mais, que melhor se diria “e o menos, se tal for, ainda, possível”. De que serve uma sabedoria encarnada, que demande transformação interior para ser lida, que devolva ao exercício filosófico valências tão esdrúxulas quanto a intermediação entre o Uno e o múltiplo, para que presta um autor que implica, mais do que explica, e que afaste por tolos, com gnosticismos indesvendáveis, os que nos recintos previstos são tidos como eruditos-de-aplauso, evidenciando-os como, afinal, iliteratos?

Telmo não serve a esta civilização. Serve a outra, à futura essencial de Sempre, a sua obra não é proveitosa para os estrangeirados que vivem em Portugal porque foi sobretudo erguida como luzeiro para os lusos entretanto apagados, indiferenciados, extintos na globalização do Vazio funcional. A Renascença é hoje mais do que nunca pertinente porque hoje, mais do que nunca, é inútil. Portugal é uma necrópole imensa a precisar de renascimento se quiser ainda vir a Ser.

Por exemplo da suma inutilidade da obra télmica, veja-se a reflexão da língua como instrumento ontopoiético, neste momento de imbecilidade (dizemo-lo pela etimologia) de tropeço. O filósofo ensaia a correspondência da língua com a kabbalah, identificando o que considera ser a estrutura sagrada do português, isto num momento a-histórico em que se delapida a língua por critérios desbussolados e utilitaristas, e para o qual a palavra sagrado só cabe em estudos de ciências religiosas, e desculpada entre aspas. Já para Telmo, inútil, pouco moderno, a língua encerra não apenas valências ontológicas mas também espirituais, e a sua constituição, que diferencia as línguas (inutilidade que contraria a tenção de uniformização presente que indiferencia pela anulação de identidade), é pars divinae mentis, não acidental. Se a palavra sagrado, faz sorrir de condescendência, noções desta ordem enfurecem o laicismo que é hoje o totémico facho liderante das consciências, o seu incontestável bezerro doirado. Destruindo o senso-comum que se vende como iluminação mental, Telmo avisa que a ortografia é indissociável da valência gnosiológica da língua, o que, a não ser uma cabal inutilidade mentirosa, nos poria hoje, ante a presente normalização, na mais néscia amputação de possibilidades, cerceados por uma norma estupidificante e afilosófica. Mas Telmo sabia que a perversão da língua não é, também ela, acidental. Há dinâmicas perversoras, dissolutivas, que fazem parte da organicidade da vida e que se servem dos decisores tanto quanto mais automáticos estes sejam. Justamente por isto é que o cumprimento vocacional pode salvar o mundo, repondo a naturalidade, a concordância com a Natura.

Telmo é, felizmente, inútil. Tanto quanto a própria filosofia de que foi fiel seguidor, digno representante, mestre comprovado entre pares. Convocam-se, pois, todos os inúteis a entrarem nesse círculo sagrado onde a utilidade não tem lugar por ser completamente preenchido pela Verdade.