VOZ PASSIVA. 42
De O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, membro fundador do Projecto António Telmo. Vida e Obra, publicamos hoje um breve excerto relativo ao período brasiliense de Agostinho, com particular importância para a biografia de António Telmo. Nele, o autor transcreve aliás um inédito télmico que nos dá conta das tensões vividas durante a crise académica provocada pela Ditadura Militar a que o Brasil estava então sujeito, e que acabaria por determinar os regressos a Portugal de Telmo (em 1968) e de Agostinho (em 1969). João Ferreira, membro do nosso projecto, é outro dos grandes protagonistas das linhas que se seguem. À sua coragem, generosa e inesquecível, ficaram então António Telmo e Maria Antónia devendo a alimentação para a sua filhinha Anahi...
Brasília, 1968[1]
António Cândido Franco
No momento em que Agostinho se apresentou diante da Comissão Parlamentar de Inquérito, a 23 de Maio de 1968, já não alimenta ilusões sobre o destino da escola em que está. Toma-a por uma universidade serôdia, sem vigor nem ousadia. Não admira pois que Agostinho tenha duvidado do seu futuro na escola de Brasília. Cheirou-lhe que o tempo dele por ali não havia de durar muito. Aquela paralisia formal em que a escola caíra não era para um Silva que dormia num barracão do cerrado e tinha por lá à sua conta uma dúzia de estudantes. Quando recebe Conceição e Silva em 1967 já ele está a preparar a terra para meter sucessor. É o arranque da reitoria de Caio Benjamim Dias. Ele ainda não sabe o que lá vem mas percebe que a atmosfera em formação, as negras nuvens que se acumulam, e que tão bem retrata no que diz à Comissão Parlamentar de Inquérito, não bate certo com a liberdade do seu modo de vida nem com o seu projecto de escola como comuna geradora de vida fraterna. Do período relativo ao primeiro semestre de 1968, sei que a UnB viveu um duro cerco militar e que a asa norte da cidade esteve durante vários dias sem contacto com a asa sul. Foi a terceira invasão militar da UnB e a mais dura das três. António Telmo, então ao serviço do Instituto de Letras, deixou um escrito sobre o momento que precedeu a invasão e que aqui transcrevo por gentileza da sua esposa, Maria António, visto que nunca foi dado em letra redonda. É uma fotografia daquilo que então aconteceu na Universidade de Brasília e que Agostinho também viveu. Diz assim: «Duas semanas depois de começarem as aulas e quando tudo parecia seguir um curso normal, sem greves e sem motins, a rádio trouxe a notícia de que, no Rio de Janeiro, a polícia tinha matado a tiro um estudante. A notícia chegou pela noite; no dia seguinte de manhã, quando chegámos à universidade, as paredes, os muros, os vidros, a entrada estavam cheios de legendas contra a Ditadura de Costa e Silva. Que chegara ao ponto de ter de derramar sangue inocente para se manter de pé. Havia uma muito brasileira: era o retrato amarelecido reitor que tinha escrito por baixo “Procura-se um Assassino”. A polícia militar cercou a universidade. Passámos o dia passeando pelo campus. Ninguém tinha nada que fazer, mas isso não constituía problema. Os estudantes espalhavam-se em grupos, falando em surdina e combinando modos de irritar a polícia. Os leaders, entretanto, estavam reunidos no directório académico. Soava, por todo o recinto, a voz de Nara Leão cantando canções de protesto.»
A invasão acabou com quinhentos estudantes presos e um gravemente ferido a tiro. A família Vitorino viu-se metida em assados, pois tinha uma menina de meses e precisava de recursos que faltavam na parte norte. Foi João Ferreira, chegado em princípios de Janeiro de 1968, que furou as linhas militares e salvou a situação. Maria Antónia nunca esqueceu este corajoso gesto, que lhe pode ter salvado a vida da filha. Eu, que sei João Ferreira activo nos mastodontes de Brasília aos 90 anos, atribuo o facto ao hábito com que este transmontano viveu desde novo situações de aperto, entre elas as da guerra civil de Espanha e as dos tempos da Guiné-Bissau, que não hão de ter sido doces. Daqui o saúdo com uma vénia de preito e um sinal de admiração pela coragem que sempre mostrou em afirmar as suas convicções e em ajudar o parceiro. Despiu a batina e tirou fora o colarinho de goma de padre mas nunca deixou de ser um seguidor de Francisco de Assis.
[1] Título da responsabilidade do editor.