VOZ PASSIVA. 41

13-02-2015 09:32

AGOSTINHO DA SILVA, 109 ANOS DEPOIS! 

No dia em que o calendário nos recorda o nascimento de Agostinho da Silva, temos o privilégio de publicar um escrito seu sobre um livro perdido de António Telmo, recentemente dado a lume, pela primeira vez, na revista de cultura libertária A IDEIA. A este privilégio, junta-se um outro: o de podermos hoje contar com o autorizado comentário do Professor João Ferreira, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra, amigo e colega de Agostinho e de Telmo na Universidade de Brasília, de que é professor aposentado, na década de sessenta. O escrito agostiniano e o comentário de João Ferreira irão aliás integrar a marginália do III Volume das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, a sair em 10 de Junho, na Zéfiro.  

Sobre um livro de António Telmo[1]

Agostinho da Silva

 

É bom reconhecerem os intuitivos ou poéticos uma vez por todas, mesmo quando tenham a habilidade de pensar e o talento de escrever como António Telmo os tem, que nada há no mundo de verdadeiramente compreendido, isto é, aprisionado numa cadeia de coerências, o que ainda é, apesar de tudo, um critério de verdade, que não indique no início ou no desenvolvimento um trabalho dos científicos, bastante maltratados neste livro, e se não deva à paciência, à erudição, à humildade, à modéstia crítica, à resignação do recomeçar que são qualidades do verdadeiro homem de ciência qualquer que seja o campo em que as exerça.

Parece, por outro lado, que se não aceita suficientemente que a parte mais importante da construção científica não é o colectar de dados e que ciência resulta fundamentalmente de uma invenção, de uma ideia criadora, de uma adivinhação, se assim se prefere, que depois é testada uma e outra vez pelo critério do fenómeno e posta implacavelmente de lado se um só facto parece opor-se ao que de início se apresentara como plausível. O científico é um criador, como o poeta, o músico ou o pintor e é ainda um de nossos primitivismos o de supor que cultura e ciência são dois domínios diferentes e que é mais culto o literato de esquina de livraria, que nunca raciocina em termos gerais e se encontra todo envolvido nas pequenas intrigas de suas medíocres prostituições, do que o químico ou o físico que buscam através de tudo leis universais e sistemas de comportamento válidos para qualquer lugar e para qualquer tempo, o que é, provavelmente, uma definição de cultura bastante válida.  

É evidente que não são esses os que António Telmo quer atingir, como não devem ser também, dentro do domínio filológico – e era bom que, no campo da língua portuguesa, se deixasse definitivamente de dizer literário ou de letras – um Menéndez Pidal ou um Adolfo Coelho ou um Américo Castro ou um Lindley Cintra; o que tem em vista é assestar um bom golpe, golpe nada misericordioso do teólogo e do homem de acção que ainda estão sem emprego dentro do escritor, ou nos que se desviaram por força de seus temperamentos e convicções, poremos por exemplo um Menéndez Pelayo e um Teófilo Braga, ou nos que, por literatura falhada, recorrem à crítica e à história, e aqui não poremos exemplo, mas faremos um monte, futuramente incendiável, de todos os chamados suplementos culturais.

Combinaremos, pois, salvar um grande número dos que estavam já condenados ao inferno e, sobre essa concessão, faremos outra, a de que é extremamente útil haver por estes prados de caça o que poderíamos chamar de perdigueiros culturais, os quais são os que, embora ensinados, e com mão de ferro, pelos tais científicos – e o próprio António Telmo os vai com inteligência e saber disciplinando nas suas funções de professor de cultura latina na Universidade de Brasília – repousam, no entanto, muito mais nas suas qualidades de faro. Taxinomia e caça são, efectivamente, duas qualidades distintas e é bom que tenha sido o mundo provido das duas raças de trabalhadores; pena que tão frequentemente rosnem uns contra os outros, sem se reconhecerem companheiros e sem quererem confessar, posto que muitas vezes o aceitem, que uns aos outros se ajudam, por aquilo a que na história dos organismos se vai chamando de retroacção positiva.

O que António Telmo nos vai levantando neste seu livro ou colecção de ensaios e depois de, apesar de tudo, ainda dar um ar de sua graça académica no primeiro capítulo, é extremamente importante para o entendimento do que somos no mundo, nós galegos, ou nós brasileiros, ou nós portugueses. Bom seria que os científicos pusessem de lado a irritação que talvez o escrito lhes cause e averiguassem tudo o que por ali se diz a respeito de maniqueísmo na mentalidade de cultura lusíada, de priscilianismo ainda tão mal averiguado, de culto do Espírito Santo de que tão imperfeitamente se conhecem as ligações aragonesas e catalãs ou os caminhos sicilianos, de conceitos de paraísos futuros, que conviria talvez ir ligar com a história da Comuna de Münster e as ideias de Jan de Leide quanto a uma Quinta Monarquia e a uma segunda vinda de Cristo.

O mal dos nossos científicos não está propriamente em serem científicos, o que é excelente; está em se fazerem de científicos, como se bastasse para isso passarem seus concursozinhos de cátedra e ficarem depois remoendo, plácidos, a ração da alcofa oficial; e está muito em se educarem em escolas de Europa, aplicando depois ao que não é Europa, e espero nunca o seja, critérios europeus, casos de história cultural europeia, perspectivas europeias. O resultado é que nunca ninguém se debruçou sobre o complexo galaico-português, que vem desde Paio Soares e D. Sancho a José Régio e Castelao, quaisquer que tenham sido as aventuras da História, e daí, atravessando os mares, se enriqueceu produzindo o Brasil, futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses, porque só se encontra no exterior o que se é por dentro. O heterodoxo de pensamento e de vida que é António Telmo logo deu pela nítida linha heterodoxa que atravessa a cultura portuguesa, não como um fenómeno de menor importância mas como a espinha dorsal do que somos; o inquieto ou dividido que talvez seja logo tocou o maniqueísmo com um dos nervos-chave, e apenas um deles, que vai a medula fundamental por outros caminhos, como ele próprio o apontou quando viu como os maiores não foram maniqueístas e passaram, não com implicações de Nietzsche mas com algum colorido de Lao-tse e Zen, para além da linha do bem e do mal, do Céu e do Inferno, cujas bodas, mais que Blake, celebrou durante setecentos anos o melhor da literatura portuguesa.

Só os portugueses menores, e é óptimo que haja portugueses menores chamados Sá-Carneiro ou Régio, foram monovalentes; os grandes são plurivalentes, o que se liga ao mesmo tempo com valentia e valência; Camões, soldado, Bocage, marinheiro de navio e taberna, Antero, conspirador, todos eles tiveram a coragem de assinar com um nome só a sua obra; Fernando Pessoa, tímido desempregado de escritório, fez como o caramujo da Inês Pereira; não saiu senão à porta e foi lançando seus pedúnculos oculares, ou seus variáveis pseudópodos de ameba para aquela exploração do mundo do sol e da verdade a que não ousava ir, bravo inteiro guerreiro; tudo isto viu muito bem António Telmo.

Mas são só plurais os Portugueses? Talvez não. O maior no mundo não é ser isto ou aquilo, e já bastante se citou Pascal a este respeito. O que há de maior num Fernão Lopes ou num Vieira é terem sido tudo isto e aquilo; terem reunido numa gema única todas as livres rutilações da vida e terem, apaixonados, desapaixonadamente contemplado o verdadeiro além do bem e do mal que não vem de se ser do Tao, como ficou acima, mas de ser dele e de Confúcio, numa perfeita reunião dos contrários. Como o consegue o português? Sabendo que a noção de contrário não está no mundo mas no nosso espírito, pondo o universo como inteiramente objectivo e natural em si próprio e reservando para si toda a imensa e dolorosa carga de paixão e juízo, com o desejo de que ele próprio se torne, morto ou vivo, um ser natural na naturalidade dos seres; o ideal português é ser coisa entre coisas, o que é talvez apenas outra forma de se ser deus entre deuses. Talvez, por isso tudo se tenha um dia de considerar como o maior dos nossos poetas, como o mais representativo dos portugueses, não um Camões, ou um Vieira, ou um Pessoa, mas um quasi obscuro homem, que viveu desconhecido numa aldeia e desconhecido morreu: Alberto Caeiro, tuberculoso e loiro.

 

Belém de Cachoeira, 7.3.68

 



[1] Nota do Editor – o título é da nossa responsabilidade. Agostinho da Silva refere-se, neste seu escrito, a um livro de António Telmo, autor que, à data, havia apenas publicado Arte Poética (1963), presumivelmente oferecido a Agostinho, no Brasil. Todavia, quer pelo tom prefacial do escrito agostiniano, quer pelas sucessivas referências que ele encerra, seja à estrutura formal da obra de Telmo (uma “colecção de ensaios”), seja ao seu teor (maniqueísmo, priscilianismo, culto do Espírito Santo), é evidente tratar-se de outro volume que não aquele seu livro de estreia. Na transcrição do escrito, procedeu-se à actualização da ortografia e à correcção de um ou outro lapso manifesto. 

 

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Comentário

Uma lição magistral de Agostinho

João Ferreira

Escrito em Belém da Cachoeira, no Recôncavo Baiano do Brasil, em 7 de março de 1968, dia de S. Tomás de Aquino, doutor da Igreja, símbolo da busca de conciliação entre Teologia e Filosofia, ou entre fé e razão, este texto  de Agostinho da Silva é, de certa maneira, um texto que, em seus detalhes, representa não apenas um comentário a um livro de António Telmo mas também um glossário de teses agostinianas e uma súmula de princípios com largos índices de uma linha de típica filosofia portuguesa moderna.

Entre as abordagens possíveis que poderíamos fazer deste texto, achamos interessante começar por valorizá-lo pelo profundo alcance didático que Agostinho lhe imprime: o Mestre ensina primeiro, como ouvir e conviver, como prestigiar a palavra, a inteligência e o saber; depois, também, como aproveitar a convivência a fim de melhorar a busca de caminhos.  O texto é, portanto, um fragmento que além de proporcionar uma leitura alargada de muitos outros textos e contextos na busca de sentidos, toca o fundo de várias temáticas, reconstruindo um sentido maior que elas contêm. Ligando-o a uma visão clássica onde as coisas têm uma ordem, uma medida, e uma proporção (ordo, mensura et proportio), Agostinho tem a habilidade de recolocar na mesa destacados temas visados pelo amigo Telmo. Fá-lo prestigiando a  consciência de si e a identidade pessoal do autor do livro que comenta. Elogiando, de passagem, "a habilidade de pensar e o talento de escrever" de António Telmo, não se esquece, estrategicamente, na qualidade de Mestre, de prevenir contra a tentação de qualquer arrogância  em relação aos adversários. Nesse sentido deixa um recado claro para os intuitivos ou poéticos, grupo a que Telmo pertence, dizendo que "nada há no mundo de verdadeiramente compreendido[...] que não indique, no início ou no desenvolvimento, um trabalho dos científicos, bastante maltratados neste livro[...]. O recado vale também para os "perdigueiros culturais" ensinados com mão de ferro pelos científicos, mostrando-lhes que seu poder não é absoluto. A esses, diz Agostinho, "o próprio Telmo os vai, com inteligência e saber, disciplinando". Colocando-se como árbitro da querela entre poéticos e científicos o Mestre ensina que não são pertinentes nem a arrogância nem a irritação de nenhum dos lados. O que vale mesmo é o talento e a criatividade: nuns e noutros, em intuitivos e científicos. Não há espaço para palavras vazias. Há sim necessidade de descobrir que poéticos e científicos "são duas raças de trabalhadores". Distintas, mas complementares.  Não importa que "rosnem uns contra os outros".Na realidade o que importa é que são dois grupos companheiros na busca da verdade das coisas. A advertência e o ensinamento de Agostinho tornam-se  estratégicos porque visam semear a racionalidade no debate da questão entre intuitivos e científicos. António Telmo é, nesse ano de 1968, um jovem intelectual de 40 anos, professor universitário em Brasília, e autor de um livro publicado havia cinco anos, em 1963. Um livro,  de nome Arte Poética,  que mostra a profunda ligação do jovem António Telmo com o intuicionismo e a galáxia gnoseológica  de Henri Bergson. Coincidentemente, no preâmbulo desse livro, intitulado "Propósito" (págs. 31-33, na edição Zéfiro, de 2014), Telmo já registra esta guerra entre intuitivos e científicos.

Torna-se por isso interessante notar que seja a intuição, exatamente, um dos temas centrais do debate neste texto de Agostinho.  O discurso de Agostinho explica que nem a intuição de  "poéticos, intuitivos e imaginativos" nem a simples coleta de dados de "científicos" chega a ser importante. As coisas, segundo Agostinho, só começam a ser importantes quando têm dentro uma "ideia criadora", ou representam uma "invenção" ou uma "adivinhação". Ora esta ideia criadora ou inventiva pode existir tanto entre intuitivos quanto entre científicos. Segundo Agostinho, há, por isso, que deixar de lado o primitivismo de supor que "cultura  e ciência são dois domínios diferentes e que é mais culto o literato de esquina de livraria" do que o químico ou o físico, por exemplo.

 

2. Feed back deste debate

Esta guerra entre intuitivos e científicos já está presente no "Propósito" de Arte Poética. O alvo de António Telmo, segundo Agostinho, são "aqueles que se desviaram por temperamento ou convicção e os falhados que têm como refúgio de salvação a "crítica e a história".

Sabemos que a briga entre "poéticos e científicos" é uma reedição de um repetido embate histórico já registrado entre os gregos, que se dividiam entre defensores da epistéme (ciência) e defensores da doxa (opinião), embate que os franceses reeditaram na Querela entre Antigos e Modernos, no período que vai de 1650 a 1715.

 

3. Crítica livre e crítica acadêmica

Em nosso mundo moderno e contemporâneo o debate continua. A crítica mantém-se dividida entre um modo informal e um modo formal ou rigoroso de debater os problemas. No modo informal cabem todas as atitudes. No modo formal cabem as conclusões rigorosas da ciência que tem seus métodos e suas formas metodológicas e rígidas de olhar a realidade. O debate é atual em nossas sociedades onde ainda se distingue entre crítica livre e crítica acadêmica. A crítica livre não tem uma metodologia de rigor. Sente-se à vontade para praticar o simples impressionismo, o achismo, e um ponto de vista inteiramente pessoal, mesmo quando este é ideológico e passional. A crítica acadêmica tem seu código de rigor. A esse rigor, a Academia chama objetividade. Na crítica acadêmica vale o peso dos argumentos e a lógica da argumentação baseada em dados científicos. Agostinho traz esta questão para dentro do texto que comentamos. Como moderador que tenta apaziguar, mostra os dois lados da questão, a uns e a outros. Aos "científicos" lembra que não há mal em haver científicos quando o forem  de verdade. O ruim está em alguém "querer parecer" científico. Na observação há uma carga clara em cima dos burocratas, universitários ou não, que se contentam em passar em seus concursozinhos, ficando depois, o tempo todo, remoendo "a ração da alcofa oficial".

 

4. A terceira via

Ao tentar mostrar o caminho da tolerância e da conciliação, Agostinho, ensina a possibilidade da terceira via. É um dado admitido  que na teoria do conhecimento há várias vias e que no debate entre poéticos e científicos se interpõe a via do diálogo. A variação e a legitimação da variedade de critérios de análise e interpretação do mundo fica portanto como um dado claro e necessário para a convivência social e acadêmica.

 

5. Distorção maniqueísta

Na prática nem todos aceitam o diálogo entre contrários. Telmo e Agostinho denunciam a existência de um certo maniqueísmo na mentalidade dos que tratam da cultura lusíada, e também de um certo priscilianismo em relação a teses que encontram todo o respaldo em dados e tradições portuguesas como o culto do Espírito Santo, "de que tão imperfeitamente, diz Agostinho, se conhecem as ligações aragonesas e catalãs ou os caminhos sicilianos, de conceitos de paraísos futuros, que conviria talvez ir ligar com a história da comuna de Münster e as ideias de Jan de Leide quanto a uma Quinta Monarquia e a uma segunda vinda de Cristo". No detalhe da citação de Agostinho estão dois nomes potencialmente ligados à ideia da Quinta Monarquia ou Quinto Império. O primeiro é  o reformador alemão contemporâneo de Lutero, Thomas Münster(1489-1525), para quem só haverá verdadeira medida num Humanismo social quando houver ordem e proporção entre as coisas (vera mensura humanismi socialis est ordo et proportio rerum). Thomas era um pregador apocalíptico, fundamentalista, que participou de uma revolta falhada de camponeses na Turíngia. Modernamente tornou-se um símbolo para os marxistas na  luta de classes, em virtude de sua insurreição contra o feudalismo. Agostinho cita também Jan Leiden(1509-1536), líder de massas, que tentou formar uma comunidade teocrática anabaptista e proclamar-se rei de Münster em 1534. Em 1536 a cidade foi tomada por tropas católicas e Jan foi preso, torturado e executado, segundo as crônicas.

 

6. A linha heterodoxa da cultura portuguesa

Além da quesília entre intuitivos, imaginativos e científicos, Agostinho centra-se sobre vários temas fulcrais que escolhe a dedo sacados do livro que comenta. Entre eles, faz ressaltar a linha heterodoxa de António Telmo: "O heterodoxo de pensamento e de vida que é António Telmo logo deu pela nítida linha heterodoxa que atravessa a cultura portuguesa, não como um fenómeno de menor importância, mas como a espinha dorsal do que somos."

 

7. O Complexo galaico-português

A par da linha heterodoxa, Agostinho coloca ainda um ponto essencial que valoriza na sequência da análise do livro de Telmo. Esse ponto é aquilo que Agostinho chama de "complexo galaico-português que vem desde Paio Soares e D. Sancho a José Régio e Castelao, quaisquer que tenham sido as aventuras da História, e daí, atravessando os mares, se enriqueceu produzindo o Brasil, futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses porque só se encontra no exterior o que se é por dentro."

Este fragmento tem a profundidade e a história que vai desde a fundação do reino de Portugal em 1138 até ao presente. Paio Soares de Taveirós foi um  trovador galego da primeira metade do século XIII, contemporâneo de D.Sancho I e seria o autor da famosa canção "No mundo nom me sei parelha", também conhecida pelo nome de canção da guarvaia que já chegou a ser considerado o primeiro documento literário em língua portuguesa. Ao destacar o "complexo galaico-português" no comentário ao livro de Telmo, Agostinho intenta celebrar as raízes da língua e da cultura do nascente reino de Portugal de D. Afonso Henriques que nasce geminado culturalmente com a Galiza. Ao lembrar Castelao,  Agostinho presta homenagem justa a uma das figuras cimeiras do renascimento galego do século XIX, ao lado de Rosalia de Castro (1837-1885) e de Curros Henriques. Toda esta linha de cultura do noroeste da Península Ibérica aportou efetivamente ao Brasil  no tempo das caravelas e depois. A profecia e o apodo apaixonado que Agostinho dá ao Brasil como  "futuro senhor cultural do mundo, com olhos verdadeiramente portugueses" fica arquivado como um extraordinário ato de amor e de carinho. Como uma fé.  Considerando, porém, a realidade antropológica e cultural do Brasil moderno ainda em evolução, parece que apesar das raízes lusas expressas em alguns costumes étnico-culturais e da comunhão profunda de um idioma materno impregnado de matizes portuguesas, o Brasil real de hoje, por ser uma convergência de muitas outras etnias e culturas vai ganhando um caráter e uma personalidade que vão além dos "olhos verdadeiramente portugueses".

 

8. O segredo português

Dentro daquilo que sempre foi o centro da conversação e da vivência cultural de Agostinho, uma parte importante do texto refere-se ao segredo português, que consiste na perfeita reunião dos contrários. Agostinho interpreta a capacidade portuguesa de lutar contra as adversidades no atravessamento vivencial da história, construindo uma personalidade própria e um ser natural na naturalidade das coisas. "O ideal português – diz – é ser coisa entre coisas".

 

9. Os portugueses maiores não foram maniqueístas

Apontando o "maniqueísmo como um dos nervos-chave da cultura portuguesa no terceiro quartel do século XX, Agostinho diz que "Os portugueses maiores não foram maniqueístas". Os grandes portugueses sempre foram plurivalentes, desdobrando-se na vida e na ação. E  mostra isso, falando de Camões como soldado, além de poeta. De Bocage como marinheiro de navio e taberna, além de poeta. De Antero, conspirador, além de poeta. Todos eles – diz – tiveram coragem de assinar com um nome só sua obra. Fernando Pessoa o mais plural de todos, "lançando seus pedúnculos oculares para a exploração do mundo do sol e da verdade". –"Tudo isto viu muito bem António Telmo", conclui Agostinho. Os portugueses menores foram monovalentes. Os maiores foram plurais.

 

10. Ser maior no mundo não é ser isto ou aquilo

"O que há de maior num Fernão Lopes ou num Vieira é terem sido "tudo isto" e "aquilo": terem reunido numa gema única todas as livres rutilações da vida. Terem uma alma grande com capacidade plural.

 

11. Caeiro, o maior dos poetas

Depois de falar do complexo galaico-português, do Brasil, de Camões, de Vieira e Pessoa, e de outros grandes portugueses, Agostinho se embrenha no segredo português e se pergunta como é que o português consegue a perfeita reunião dos contrários,  reservando em sua análise um cantinho especial para seu ídolo Caeiro.  "Sabendo – diz ele – que a noção de contrário não está no mundo mas no nosso espírito, pondo o universo inteiramente objetivo e natural em si próprio  e reservando para si toda a carga de paixão e juízo, com desejo de que ele próprio se torne, morto ou vivo, um ser natural na naturalidade dos seres, o ideal português é ser coisa entre coisas, o que é talvez outra forma de se ser deus entre deuses. Talvez por isso tudo se tenha um dia de considerar como o maior dos nossos poetas, como o mais representativo dos portugueses, não um Camões ou um Vieira ou um Pessoa, mas um quase obscuro homem que viveu desconhecido numa aldeia e desconhecido morreu: Alberto Caeiro, tuberculoso e loiro."[o sublinhado é nosso].

 

12. Telmo teólogo e homem de ação ainda sem emprego

Agostinho que define Telmo como  "um heterodoxo de pensamento e de vida", ao elogiar a combatividade do amigo realça que o que Telmo tem em vista ao criticar certos filólogos "é assestar um bom golpe, golpe nada misericordioso do teólogo e do homem de ação que ainda estão sem emprego dentro do escritor". Esta expressão de "teólogo e homem de ação que ainda estão sem emprego dentro do escritor" parece ser uma chamada em relação a qualidades específicas que admirava no pupilo mas que ainda estavam ociosas, por assim dizer, no autor de Arte Poética. Analisando o texto em sua globalidade, é nítido e claro que Telmo sai do comentário de Agostinho inteiramente prestigiado não só pelo elogio direto de ser um homem "hábil no pensar e talentoso no escrever" mas também pela sua combatividade crítica que sabe "disciplinar com inteligência e saber".

 

Brasília, 12 de fevereiro de 2015

João Ferreira