VOZ PASSIVA. 38
António Telmo, os sons, as potências, as essências
Risoleta C. Pinto Pedro
Não me será fácil falar de António Telmo sem me estender excessivamente, porque, tal como Agostinho da Silva, é um autor que parece escutar a voz que sussurra na minha alma. A acrescentar a isto, a erudição, a sabedoria, a beleza.
Por isso centrar-me-ei, neste texto, num único aspecto. Ou melhor, na apresentação dele, apenas.
António Telmo chegou-me através da escrita e personalidade de Agostinho da Silva.
Dele, li alguns dos clássicos, ainda antes de o conhecer. Penso que os primeiros foram a Arte Poética e a História Secreta de Portugal. Entretanto, muitos amigos meus, seus amigos, começaram a falar-me dele. Curiosidades, episódios de vida, acabámos por nos conhecer na estreia de um espectáculo da Companhia de Dança Amalgama e lançamento de um livro meu, no Convento de S. Paulo, Serra d’Ossa, que ele apresentou. Maravilhosamente. Fluentemente. Sem papel.
Outros livros vieram ao meu encontro, Filosofia e Kabbalah, O Bateleur, Contos, A verdade do amor, mas o último por seu punho, chegou via correio, não muito antes de partir. Viagem a Granada.
Aquele que me tem acompanhado persistentemente, Gramática Secreta da Língua Portuguesa, felizmente recém-editado, considero-o uma pérola sobre a nossa língua, um estudo lúcido e profundo sobre as origens, a alma, o mistério do nascimento e da essência da língua. Muitas vezes o citei nas minhas aulas. Muitas vezes continuo a fazê-lo em situações menos institucionais que uma escola oficial, mas igualmente propiciadoras de conhecimento, informação e comunicação. De reflexão. Muito recentemente em Lagos, num workshop de Escrita Cura Criativa.
Com este livro, as minhas intuições de menina, intuições de quase antes das palavras, as imagens que me nasciam no coração e que continuaram a crescer ao longo dos anos, apesar de todas as teorias positivistas acerca da língua e da gramática que tive de estudar, essas intuições, dizia, foram totalmente validadas e eu fiquei a saber o que já sabia. Desde sempre. Que a língua, e particularmente a fonética, é um sistema inteligente, simbólico, coerente, e em total sintonia com o universo e a realidade. Que não há aleatoriedade na língua e que cada som que produzimos tem uma energia própria e uma essência. E um poder. Que é um sistema ligado a todos os outros sistemas cósmicos. Que pode ser uma fonte de conhecimento e, sem dúvida, de criação. Não apenas literária, mas de realidades.
E concluo: somos como magos ignorantes, magos negros usando indiscriminadamente um poder quase atómico que não dominamos, que não controlamos, porque não conhecemos.
A propósito dos sons, António Telmo fala de potências. Porque o são. Que distingue do conceito de fonema.
“No princípio era o verbo”. Como agora. Quando o criador disse “Fiat” pronunciou uma realidade totalmente diferente daquela que seria criada com outras potências. O “F” faz parte das potências sopradas. Sons que expiram. E é labial. Corresponde, na árvore da Kabbalah, à coluna da misericórdia, a que ele chama “ da clemência”. Aqui, começo eu a delirar, ou talvez não, e a ver neste acto de criação, a expressão daquilo que ele denomina a “estrutura sagrada”.
Afirma ele: “O “V”, como o “F” seu correlativo, é um sopro, uma voz. Estas letras marcam a emissão da voz sem resistência violenta.” E acrescento eu: como poderia haver resistência à ordem da criação?
E continuo: acredito que será também por isso que na respiração circular ou conectada, como chamamos à respiração no “Renascimento”, uma terapia respiratória, a expiração deve ser uma pausa ou repouso, não deve ser empurrada, mas o ar deve sair naturalmente, “sem resistência violenta”.
António Telmo fala também deste sopro do “F” como a transformação contínua. E assim é. A respiração assim feita é das tarefas do corpo mais transformadoras que conheço.
Poderia continuar muito tempo estas reflexões, mas não vou maçar-vos mais. Talvez num outro dia. Lamento não ter tido oportunidade (ou não a ter criado) para conversar com António Telmo sobre este específico e apaixonante tema. Mas ele está vivo. Em vós. Convosco partilho, então, o que dele recebo, reconheço e integro. E celebro.