VOZ PASSIVA. 37
De Paulo Samuel, que no próximo dia 20 de Dezembro irá apresentar, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, as Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, oferecemos hoje aos nossos leitores um ensaio sobre António Telmo escrito para o quinto volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, Confluências, que há já um ano (a completar-se no próximo domingo) aguarda a sua saída a lume, dando assim continuidade à publicação de diversos escritos de membros do nosso projecto em idênticas condições.
Carta a Pedro Martins a propósito de António Telmo
Paulo Samuel
Caro Pedro Martins
A minha consideração e estima por si, de par com o elevado apreço pelo trabalho que o Pedro Martins vem realizando no quadro dos signos, símbolos e mitos do pensamento português, através de estudos e livros que vem publicando, obrigam-me a esta carta, pela qual também quero testemunhar um vínculo de aproximação – à falta de capacidade para uma efectiva colaboração – à revista Confluências, em particular no que concerne ao próximo número, dedicado a António Telmo, em jeito de homenagem póstuma.
Quando recebi o seu amável convite (também subscrito por Renato Epifânio), logo se me figurou a necessidade de dar algum testemunho sobre o singular contributo deste filósofo para a afirmação da autonomia de pensamento do homem português. Na minha perspectiva, a sua importância advém não só no trilho que concerne uma leitura e compreensão aprofundada de certos aspectos da cultura portuguesa (onde se inscrevem mitolusismos fundadores: da gnose da Língua ao segredo das Descobertas, das razões da fundação da Ordem de Cristo à simbólica da arte Manuelina, da sibilina poética dos Trovadores à formação do carácter nacional), mas também nessa lavoura outra, sendo espiritualmente a mesma, que releva do ideário filosófico que caracteriza a denominada “Filosofia Portuguesa”. Por outro lado, creio não ser necessário encarecer o legado que António Telmo deixou, ou mesmo realçar a sedução que exerceu no seio da sua geração e, sobretudo, nas gerações que lhe são posteriores, desde logo aquela em que me incluo, mormente através de um magistério que, em terras alentejanas, se tornou ele próprio autêntica escola socrática para os que tiveram o privilégio de privar da sua companhia.
António Telmo foi senhor de um pensamento e obra que assumem feições muito próprias e singulares no quadro ideográfico do que se conhece de outros pensadores alicerçados na mesma matriz, os quais inteligiram obra de natureza esotérica sob roupagem linguística exotérica, que se tem personificado, com maior visibilidade, nos nomes de Sampaio Bruno e de José Marinho. Para quem conhece os estudos tão aparentemente diversos, conquanto densos, do autor da História Secreta de Portugal, a afirmação que procure radicar na sua obra uma presença de saberes ocultos, iniciáticos, assumirá a natureza de uma mera banalidade. Como sabe, de há muito que essa filiação, de vertente esotérica, se encontra assinalada, desde logo e com particular acuidade por António Carlos Carvalho, no prefácio que escreveu para a primeira edição da referida obra. Recorde-se que a História Secreta de Portugal, segundo livro de António Telmo publicado em 1977 pela Editorial Vega, pouca atenção colheu nos meios letrados e filosóficos da época. A importância dessa obra – que, a título pessoal, continuo a considerar a mais completa e referencial das que assinou, apesar das marcas comparatistas e do lastro de citações que se podem sinalizar – foi, no entanto, marcante quer para aqueles que se encontravam ligados ao grupo da “Filosofia Portuguesa”, ou próximos, quer para os que se encontravam inseridos em círculos de diferente filiação. Em todo o caso, Telmo inscreveu nessas páginas um mapa de conhecimentos e congeminações que vão acompanhar grande parte da sua reflexão e ensaio nos anos 80 e 90 do século findo, ordem de saberes que, todavia, sempre preferiu transmitir pelo meio tradicional comum a todas as transmissões iniciáticas, isto é, a oralidade.
O meu relacionamento pessoal com António Telmo data do início dos anos 80, quando me acerquei, após outras demandas em solo estranho, daqueles que eram figuras emblemáticas do movimento da “Filosofia Portuguesa”. A aproximação fizera-se à distância, por meio de leituras de livros que me chegavam a Paris, de alguma forma no intuito de me transmitirem a mensagem de haver em Portugal um domínio esotérico, diverso na sua expressão e fundamentos, daquele que buscava noutras paragens. Nessa época e na exterioridade pública que a consulta de impressos permitia (ressalvando o facto de se saber da existência de restritos e discretos grupos ocultistas) o chamado “esoterismo” confinava-se a uma certa marginalidade, à qual se pretendia conotar a ideia de práticas ocultistas, de artes divinatórias, a que se misturava a acusação de falta de qualquer saber “legitimado”. É certo que algumas tentativas para contrariar essa “opinião pública” (que encobria a do Poder, desde logo académico) não tinham garantido o caminho mais adequado, desde logo pela prática informativa ou publicitária, como aconteceu em França com a revista Planète (que, apesar das intenções iniciais, acabou por se tornar num repositório de quase tudo, incluindo o descrédito), ou, em Portugal, com a colecção “Esfinge”, das Edições 70, onde tudo coube… Por isso, a leitura de obras de autores como René Guénon, Julius Evola, Paul Naudon, René Alleau, Luc Bénoist, abbé Henri Pierre, Mircea Eliade, Henri Corbin, Ananda Coomaraswamy e tantos outros fazia-se nos originais (e traduções) de língua francesa, donde resultava a falta de interlocutores para um diálogo e discussão aprofundados. Pouco ou nada havia a complementar o conhecimento haurido nessas fontes, nenhuma plataforma de trânsito dessas ideias nos meios cultos portugueses, que ignoravam tais autores. É claro que nessa altura (anos 80) já se tinham instalado em Portugal centros e representações dos Rosa-Cruz e da Nova Acrópole, entre outros, mas com “mestres” e filiações discutíveis. Como é óbvio, não vale a pena sequer aludir à Maçonaria portuguesa, que de há muito se transformara numa organização com meros interesses de penetração e influência sócio-política. Daí que, ter sabido da existência no Porto de uma pensadora como Dalila Pereira da Costa, que frequentava as páginas de alguns dos autores atrás citados, constituiu razão suficiente para criar um elo que me viria a ligar ao núcleo daqueles que tinham em Sampaio Bruno e em Teixeira de Pascoaes (cuja obra entretanto eu descobrira) referências estruturais de pensamento, distantes do saber hegemónico da Universidade.
Nesse contexto, vim a conhecer o que pensava e exprimia um certo escol que, no Porto, mal se conhecia e do qual a Universidade não ousava falar. (O importante posicionamento de aproximação dialogal do Professor José Augusto Seabra, ocorrido em finais dos anos 70, foi determinante para algumas iniciativas que se vieram a concretizar depois na Cidade Invicta.) As circunstâncias que se me propiciaram correspondiam a conferências e colóquios realizados por essa época no IADE, graças ao empenho de António Quadros. Afinal, só um recém-chegado podia admirar-se com o convívio filosófico que em Lisboa decorria, que não dispensava jantares e tertúlias de Cafés, dado que o mesmo prolongava uma prática que desde os anos 50, pelo menos, era comum na roda daqueles que seguiam um magistério e “tradição” mantidos por Álvaro Ribeiro e José Marinho, por sua vez replicando uma vivência que lhes fora proporcionada no Porto, ao tempo da acção educativa de Leonardo Coimbra, na primeira Faculdade de Letras do Porto e fora dela, em consonância com os ideais da «Renascença Portuguesa» e a experiência resultante das Universidades Populares.
Dos diálogos que então pude manter com alguns daqueles que ficam e ficarão como mestres de pensamento, entenda-se, de um pensamento verdadeiramente imbricado na “razão e mistério” do homem português, recordo-me que poucos privilegiavam essa vertente do conhecimento esotérico (por exemplo, de um esoterismo cristão), da qual ou não detinham, por opção pessoal, leitura e conhecimento aprofundado, ou porque essa atenção colidia com filiações religiosas a uma ortodoxia católica, alicerçada numa catequese doutrinal e creencial. Além disso, invocar o nome de um autor como René Guénon, que criticou de forma veemente as práticas do Catolicismo (que teima em exorcizar os seus próprios fundamentos) e que acabou por se converter ao Islão, considerando que apenas esta via religiosa mantinha os elos de ligação ao saber primordial e à mais autêntica iniciação espiritual, não colhia fácil aceitação. Contudo, o interesse pelos saberes esotéricos já se tornava patente em alguns autores, estudiosos e investigadores, desde logo pelas afinidades da obra pessoana, suscitando interpretações e análises num plano em que Dalila Pereira da Costa, Yvette K. Centeno e, depois, António Quadros foram, ao que sabemos, precursores. Também António Carlos Carvalho prestava a esse domínio e a certos autores atrás nomeados significativa atenção e divulgação, como o atestam alguns dos seus livros e escritos que publicou em jornais e revistas.
Importa ter presente, sem dúvida, que posicionados na confluência do legado das filosofias e teologias de inspiração cristã, muçulmana e judaica, cabe aos portugueses aferir da via que seja a mais consentânea com o seu génio, no que isto significa de sentido hermenêutico à luz do exposto por Teixeira de Pascoaes. Daí abster-me, nesta carta que começa a ser longa, de considerações que exigiriam outro contexto e amplitude, mencionando tão-só que me parece excessiva uma posição dominante dos ensinamentos da Cabala na compleição do pensamento português.
Como afirmei em parágrafo precedente, conheci António Telmo nos anos 80, na sequência dos contactos que por essa época estabeleci com o grupo da “Filosofia Portuguesa”, dando sequência prática à sugestão feita por Dalila Pereira da Costa que, residente no Porto, aonde eu regressava após alguns anos de permanência em Paris, entendia ser o caminho a seguir para quem pretendia aprofundar o conhecimento do pensamento português. Após os encontros iniciais com António Quadros, Pinharanda Gomes, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, Lima de Freitas, Joaquim Braga, Henrique Barrilaro Ruas, ocorridos na sua maior parte no IADE, ou em outras circunstâncias de idêntica natureza, resultaram laços de amizade e de algum convívio, que se estendeu aos elementos de novas gerações, com os quais também passei a conviver aquando de deslocações a Lisboa, de que resultou, por exemplo, a minha ligação à revista Leonardo.
Curiosamente, o meu primeiro encontro com António Telmo foi no Porto, em 1983, na Faculdade de Letras (ao Campo Alegre), instituição à qual se deslocara no âmbito das comemorações do nascimento de Leonardo Coimbra, que se tinham iniciado em Março desse ano. Telmo participara na iniciativa, no dia 12 de Abril, na mesa-redonda subordinada ao tema “Leonardo Coimbra e a Filosofia Portuguesa”, moderada por José Augusto Seabra e com a participação de Afonso Botelho, António Alvim, António Braz Teixeira, António Quadros, Fernando Sylvan e Joel Serrão. Creio ter sido António Quadros (com quem já mantinha uma relação de profunda amizade, documentada em epistolário que venero) quem facilitou esse primeiro diálogo, durante o qual pude transmitir a António Telmo a recepção filosófica e as impressões de leitura que colhera dos seus livros, em particular da História Secreta de Portugal, exemplar que guardava, e guardo, com sublinhados e anotações que marcam uma etapa importante da minha vida. O meu nome nada lhe dizia, excluindo o facto de ele logo lhe imputar um sentido cujo alcance não apreendi na sua secreta dimensão. Nesse tempo, excluindo um ou outro artigo publicado em suplemento literário, nada mais podia apresentar, por via escrita, que indicasse o caminho que estava a trilhar nessa aproximação filial à “Escola Portuense”.
Pouco tempo depois, nos inícios dos anos 90, decorrida uma etapa feliz, mesclada de encontros, ofertas e dedicatórias de livros, troca de correspondência, projectos comuns, que me certificavam uma filiação aceite, podia contar com a adesão da maior parte desses pensadores e ensaístas às iniciativas que comecei a organizar no Porto, com o patrocínio da Fundação Lusíada, cujo presidente, Dr. Abel de Lacerda, entretanto conhecera e com o qual vim a estreitar laços de amizade e colaboração. Pelo meio, ficava uma relação mais estreita com Pinharanda Gomes, que me acolheu no seio familiar, onde pude beneficiar de funda estima e dos seus ensinamentos, envolvendo-me inclusive no trabalho de compilação dos Dispersos de Leonardo Coimbra.
De facto, tanto no Colóquio sobre Álvaro Ribeiro, como no dedicado a Dalila Pereira da Costa ou, mais tarde, no que teve por epígrafe “As Linhas Míticas do Pensamento Português”, contei com a presença e colaboração de António Telmo. Data, aliás, de Março de 1993, a primeira carta que dele recebi, confirmando que aceitava o pedido que lhe fizera de participação no encontro que nessa altura delineei – e organizei em colaboração com Joaquim Domingues –, intitulado “Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa” (Porto, Ateneu Comercial, 14-15 de Maio de 1993), de algum modo dando sequência coloquial à homenagem feita pela Nova Renascença (Março 1993), que dedicara ao filósofo de A Razão Animada um número especial, concretizado pela vontade e esforço organizativo de Pinharanda Gomes, a que José Augusto Seabra deu total adesão, justificando-a em páginas iniciais de “apresentação” desse volume da revista (vol. XIII, n.º 48, Inverno 1993. Número esse que, além da de António Telmo, inclui colaboração de António Quadros, Pinharanda Gomes, Paulo Samuel, Alfredo Ribeiro dos Santos, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, João Bigotte Chorão, António Braz Teixeira, Joaquim Domingues, Francisco Morais Sarmento, João Rêgo, João Ferreira. Aí se reúnem também os “escritos de juventude”, de Álvaro Ribeiro, que recolhi para acompanhar o seu “Itinerário Portuense”, os quais, pela importância que assumiam e por serem pouco conhecidos, justificaram que com eles se fizesse separata autónoma. Na sua carta manuscrita de resposta, Telmo afirma que “nenhum admirador ou discípulo” de Álvaro Ribeiro “poderá deixar de estar presente no congresso” e que irá contribuir com “uma reflexão sobre «A Teoria da Imaginação em Álvaro Ribeiro»”, o que de facto se verificou, havendo versão impressa desse texto em Viagem a Granada.
No interim, a minha relação com o autor de Arte Poética prosseguia em ocasionais encontros e conferências, realizadas no Porto e em Lisboa, através da leitura dos seus escritos ao tempo das revistas Nova Renascença e Leonardo, e numa ocasional passagem por Estremoz. Registava, nessas situações, que Telmo mantinha presente a dimensão esotérica subjacente aos seus artigos e comunicações, alimentando os comentários e observações que tornavam as suas intervenções por vezes incómodas ou polémicas. Na verdade, os textos que escrevia e lia, no seu peculiar e quase “alentejano” registo vocal, que iludia tratar-se, afinal, de um ritmo propício ao entendimento cognitivo da relação estrutural da palavra na sua correspondência sígnico-simbólica, sendo em regra breves, caracterizavam-se por uma densidade que exigia ao ouvinte um atento acompanhamento, aliado a um lúcido entendimento, por sua vez exigente de lépida correlação imaginal e num preclaro domínio hermético da palavra.
Um ano depois, em 1994, surge um projecto que mais me aproxima de António Telmo. Pretende-se conceber e materializar uma “revista-órgão da Filosofia Portuguesa”, com o sugestivo título de “O Encoberto”, cuja capa traria uma imagem moldada sobre o desenho criado por Correia Dias para revista A Águia (esta era a sua proposta), desafio editorial que o entusiasmava e para o qual propunha também a colaboração de Joaquim Domingues. O assunto foi abordado, com detalhe, num diálogo ocorrido aquando de um encontro na Universidade Católica de Lisboa. Em todo o caso, não me foi possível levar por diante a materialização editorial desse projecto, apesar dos passos dados nesse sentido. (Mais tarde, procurei recuperar essa ideia através de uma revista, intitulada Verbo Escuro, que concebi e organizei para dar voz aos estudos pascoaesianos e a outros ensaios do pensamento português. Apesar do patrocínio que obtive do IPLB para custear essa publicação, de ter pronto o primeiro número (com textos e grafismo concluído), não consegui que a direcção da “Maránus” (Associação para a Divulgação da Vida e Obra de Teixeira de Pascoaes), à qual pertencia, concordasse em levar por diante o lançamento daquele que seria o órgão privilegiado dessa associação, da qual pouco depois me desvinculei. Julgo que a excelente revista fundada em 2000 por Joaquim Domingues, Teoremas de Filosofia, codirigida pelo próprio e por Pedro Sinde, é, em certa medida, o símile dessa publicação idealizada por António Telmo, em cujas páginas é nome recorrente, activa e passivamente.)
Em 1996, enderecei-lhe novo convite, dessa vez para participar no colóquio sob o tema “Dalila Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria”, que levei a efeito no Ateneu Comercial do Porto e no Centro Regional do Porto da Universidade Católica, entre 17 e 18 de Maio, complementado por apresentação pública de obras recentes da autora. Telmo discorreu sobre “Um Passeio por Trás-os-Montes”, dando-lhe versão escrita sob o título “Dalila Pereira da Costa e o Pensamento Místico”, que incluiu no volume de dispersos Viagem a Granada.
No âmbito dessas generosas colaborações, acedeu igualmente a prefaciar o livro O Brasil Mental (1997) de Sampaio Bruno, que integrei num efémero projecto de publicação das obras do filósofo portuense, aquando da direcção editorial que assumi na Editora Lello, plano que deixei consignado nesse volume, numa breve nota introdutória. Todavia, desse elenco apenas se publicaram mais dois títulos, a saber, A Ideia de Deus (1998, com prefácio de Pinharanda Gomes) e O Encoberto (1999, com prefácio de Joaquim Domingues). Volvidos poucos anos, retomei essa ideia em «Edições Caixotim», mas apenas pude publicar os três tomos de Portuenses Ilustres (2003), numa aguardada segunda edição desta obra de Bruno, que veio enriquecida com índices onomásticos e desenvolvido prefácio de José Augusto Seabra.
Nesta fugaz evocação, apraz-me ainda registar a colaboração dada por António Telmo à Leonardo – revista hoje raramente lembrada e da qual passam precisamente 25 anos sobre a data do primeiro número e da sua apresentação no Hotel Tivoli, em Março de 1988, na presença de numerosas figuras da cultura portuguesa e, sobretudo, dos mais representativos nomes da “Filosofia Portuguesa”. À Leonardo estive afectiva e idealmente ligado, participando com colaboração escrita ou acompanhando o núcleo directivo em momentos cruciais da revista, como aconteceu aquando da entrevista feita a Sant’Anna Dionísio, cujo encontro propiciei na sua residência ao Campo Lindo (Porto). Verifica-se, ao folhear os fascículos desta publicação – embora efémera, a Leonardo marcou uma época e uma geração… –, que o nome de António Telmo é praticamente constante no índice dos colaboradores. Publicou, no primeiro número, datado de Fevereiro de 1988, o artigo “O Timeu e o conceito de analogia em Leonardo Coimbra”, ocupando 7 páginas. No número 2, Junho de 88, apresenta “A teoria do instante em José Marinho”, artigo que precede a revelação de inéditos do filósofo portuense, acompanhados de uma nota introdutória de Orlando Vitorino. No número 3, de Outubro desse mesmo ano, António Telmo insere uma “Carta a Henrique Barrilaro Ruas”, respondendo às considerações que este tecera a propósito do artigo sobre o Timeu. No número 5/6 e último, datado de Março-Setembro 1989, colabora com o artigo “Sampaio Bruno, o «Encoberto»”, que ocupa duas páginas e se insere no âmbito dos estudos que dedicou ao filósofo de A Ideia de Deus. Estes artigos serão posteriormente integrados em livros do autor, designadamente no eclético Viagem a Granada.
Na revista Nova Renascença também se encontram publicados dois artigos de António Telmo. O primeiro, em data, intitulado “Dois filósofos portuenses e a simbólica do Porto” (vol. II, n.º 8, Verão 1982, p. 386-388), cuja leitura leva a descobrir tratar-se de Sampaio Bruno e de José Marinho, texto que virá a recolher no volume Filosofia e Kabbalah, com variante titular e de amplitude, pois passam de portuenses a “portugueses”. O segundo, sob a epígrafe “Filosofia e Cabala no pensamento de Álvaro Ribeiro” corresponde a uma versão distinta da sua alocução ao Colóquio de homenagem ao autor de A Razão Animada, seguindo uma linha de reflexão que permanecerá aberta até ao termo da sua vida humana.
António Telmo é um pensador arguto, cujas ideias se perfazem na sublimação de um espírito imaginal com um conhecimento de ordem hermética. Desse entrosamento fluem os seus estudos sobre a “História Secreta de Portugal”, a simbólica das Descobertas, ou os ensaios em torno da arte poética ou da linguagem críptica de Os Lusíadas e do mistério saudoso em Teixeira de Pascoaes.
Numa carta remetida em Janeiro de 1997 – na qual ainda se retorna ao projecto da famigerada revista que nunca chegou a passar das nossas intenções – Telmo alude a uma próxima viagem à Galiza e descreve o seu ponto de vista quanto à necessidade de se mudar o nome da publicação para “Portugaliza” (opção que prestes abandonará, para se manter o título original: “Portugal”). Carta dactiloescrita, nela faz, entre outras, estas considerações: “Há cerca de vinte anos, realizou-se em Santiago de Compostela um congresso sobre Prisciliano. Fernando Sanchez Drago, autor de uma História Mitológica de Espanha, em quatro volumes, foi um dos seus organizadores. Por razões que só ele conhece, visto que não tinha, como não tenho, nenhuma relação pessoal com ele, procurou-me então pelo telefone na Veja que o enviou para a Escola Secundária de Estremoz, onde lhe disseram que não havia lá professor com o me nome. Na comunicação que fez ao congresso, referiu-se com entusiasmo ao meu livro História Secreta de Portugal. Uma amiga minha, que estava presente, dirigiu-se-lhe no fim e ouviu dele a tristeza de não me ter podido contactar e de não poder ter tido, assim, os portugueses no congresso. […] Como sabe, o pensamento de Sampaio Bruno e de Teixeira de Pascoaes, para só referir o maior filósofo e o maior poeta portugueses, têm a sua raiz em Prisciliano. Toda a Lusitânia, conforme o ensino insuspeito por adverso de Menendez y Pelayo, adverso mas eminentemente sério, foi, durante cinco séculos priscilianista, abrangendo a Galiza e toda a região portucalense, estendendo-se pelo Alentejo até à Estremadura espanhola e até a Andaluzia. […]”
Estou certo – como explicitei em conferência realizada há alguns anos em Amarante, a propósito de Pascoaes – da importância que a corrente priscilianista tem na cultura e em algumas expressões poéticas e filosóficas do pensamento português. Em contrapartida, estou menos inteirado acerca das influências e sublimações da Cabala na heterodoxia portuguesa, que Telmo vinha revelando, porventura intuindo, nos últimos anos da sua vida, decerto com o precioso contributo do seu alter-ego, Tomé Nathanael.
Para lá do mais importante que foi a sua presença humana, a sua mundividência aliada a um espírito inquieto, interrogador do mistério do Ser, dimensão que alguns puderam fruir na convivência exotérica de um diálogo esotérico mantido ao longo de anos, dele resta a memória a preservar e uma obra que deve ser criteriosa e uniformemente reunida, se possível valorizada com inéditos e prováveis textos éditos, dispersos. Desde Arte Poética, “edição do autor” no ano de 1963, sob a chancela de “Teoremas de Teatro” (2.ª edição, 30(!) anos depois, em 1993, pela Guimarães Editores, acrescida de um texto inédito “sobre a poesia”), livro dedicado a Álvaro Ribeiro, como “sinal de reconhecimento”, passando pela História Secreta de Portugal (1977) , tributo “à memória de José Marinho”, ao qual se seguem Gramática Secreta da Língua Portuguesa (Guimarães Editores, 1981), dedicado “ao Agostinho da Silva” – assim se perfazendo a tríade dos nomes de quem mais se sentiu próximo – , Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982), Le Bateleur (Edições Átrio, 1992), Horóscopo de Portugal (1997, que recolhe na 2.ª parte os III capítulos da História Secreta de Portugal), Contos (1999), O Mistério de Portugal na História e n’Os Lusíadas (2004), Viagem a Granada (Fundação Lusíada, 2005) e Congeminações de um NeoPitagórico (Al-Barzkh, 2006), fica uma obra que importa estudar num cruzamento interdisciplinar de saberes, aliás, implicando noções de ordem gnósica e sófica, que proficientes estudos das novas gerações decerto vão confirmar como uma via unificante do platonismo e do aristotelismo que, cada qual a seu modo, vivificam o rosto jânico do génio português na sua expressão poética e filosófica.
Na verdade, António Telmo não morreu… Apenas se ausentou, numa viagem pelo Mundo, mantendo vivo na esfera das correspondências espirituais o diálogo que permite o entendimento sobre o sentido da Luz, noutras palavras, (re)velando com o cumprimento da sua especulação filosófica a presença da Shekinah na etapa última das operações alquímicas que o espírito lusitano, ou saudosismo, há-de cumprir.
Aí fica, pois, este registo recuperado da memória e de anotações avulsas, cujo maior alcance foi ter-me conduzido à revisitação da obra de António Telmo, homem da filosofia e filósofo do homem, numa harmonia que entendeu conciliar, um amigo e mestre a cuja memória tributo um aceno de lembrança.