VOZ PASSIVA. 34
O comentário de Eduardo Aroso à Arte Poética de António Telmo que agora publicamos é parte integrante da Marginália do II Volume das Obras Completas de António Telmo, Gramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética, que sairá a lume, no trimestre em curso, com a chancela da editora Zéfiro e o apoio institucional e científico do projecto António Telmo. Vida e Obra. António Cândido Franco assina o prefácio deste novo volume, que foi organizado e anotado por Pedro Martins.
O voo da metáfora (de uma leitura de Arte Poética de António Telmo)
Eduardo Aroso
«Não há progressão sem movimento triádico» Arte Poética
No que o título sugere, pode imaginar-se algo que está numa posição fronteiriça, podendo assim ir a um ou a outro lado. Imagens de salto na horizontal e o de um outro na vertical podemos vê-las na poesia do seguinte modo: a de um género superior, ou a que simplesmente se emaranha num jogo de espelhos multiplicado de tal maneira que a sua diluição deixa-nos sem uma saída redentora ou movimento de alma. Assim, no desconforto dessa posição fronteiriça o salto da metáfora pode ser novamente para a terra e para as águas que Heraclito não queria, e então há um tombo como quem escorrega e se vê aflito para sobreviver, sem esperança de ali sair, «formas em que cai o espírito que perdeu o poder», no dizer do filósofo de Estremoz. Há, nos antípodas disto, o salto para o que se poderia dizer o abismo, mesmo sendo ele para cima, salto esse sem qualquer espécie de paraquedas, apenas com asas de Ícaro. Este salto ou voo poético pode ter correspondência no que Telmo chama «filosofia raciocinante, a que não corresponde nenhuma espécie de transmutação interior e que constitui, afinal de contas, uma efémera evasão do mundo da acção». Disto abunda um certo género de poesia actual, tema este que não cabe aqui desenvolver.
Seja como for, a realização do «movimento triádico», apontado por António Telmo, se o considerarmos na poesia, vemos então que o salto é voo, desígnio maior da metáfora, que não se perde no caos do espaço nem se despenha na terra, mas que traz o Sopro de Deus para a carência humana, inquietação provocada pelo roubo do fogo de Prometeo. A metáfora é então aspiração sublime, transposição do ponto original, em que, como no exemplo da semente, permanece todavia sempre algo de essencial, sejam quais forem as metamorfoses e plástica do poema. Tudo isto como num outro exemplo, o das naves espaciais que no seu percurso vão perdendo módulos para poderem alcançar o longínquo ponto desejado, pois importa chegar com o essencial e não com toda a bagagem de início.
O que lemos no Propósito de Arte Poética, o «duplo intuito de animar a filosofia e de reintegrar a poesia no pensamento» pode significar também que, para além da ideia que na poesia deve viver, porventura a soberania da metáfora ou o voo em todas as direcções (para o céu e para a terra) é que se torna decisivo para a floração última do poema, esse que não vagueia no caos, mas que traz o Sopro Divino à inquietação humana. Nietzsche tinha essa aguda consciência da possibilidade de uma caída do pensamento ou corte com a natureza superior, mesmo a do lado de fora dos românticos (hoje abusada ilusoriamente na palavra ecologia). Por isso, num equívoco de apenas nomes trocados, a essa metáfora superior o alemão chamou Deus, na sua polémica afirmação da “morte de Deus”, sendo esta a metáfora que cai desamparada de tudo. É nuclear a seguinte passagem de Arte Poética: «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal». Dir-se-ia que do mesmo modo a poesia. O terreno do sensível (e, no caso da poesia, acrescentaria um certo conceito de “poesia social”) é uma espécie de matéria-prima disponível, dada a nossa condição de seres incarnados. Todavia, neste campo tem-se verificado dois modos de agir diversos: há, digamos assim, os mais ou menos materialistas e ateus, não afeitos ao que se pode dizer transcendente, e também os intelectualizados de tal modo que confundem mente com espírito. Uns e outros vivem no equívoco do visível-verdadeiro-real. No poeta superior, que tem asas diferentes das que usou o malogrado Ícaro, a seta sobe até onde pode e inverte o movimento até onde for necessário: «o espírito que desce dentro de si mesmo para se conhecer nas diversas formas que assume», descida que é «um movimento activo». Ou seja, todo este trajecto parte do mundo sensível para a ele regressar, sem que se despenhe no espaço labiríntico sem paraquedas. É a parábola do Filho Pródigo que sabe por que quer viajar e volta com a virtude da experiência.
O automatismo das imagens que é tratado no capítulo «Mnemónicas» pode actuar na metáfora que há nessa poesia que se lança no espaço sem paraquedas, ou na outra que salta e cai, numa densidade plúmbea, trazendo mais peso ao planeta. Acontece quando há transposição de associação de imagens em que o espírito pode estar alheio, condicionado e enredado seja pelas imagens soltas e em jacto das modas várias, seja pela atitude do poeta na admiração e até fascínio por algum congénere seu, ou ainda na auto-ilusão do próprio poeta sobre o que é a representação da sua escrita enquanto acto de comunicação no leitor, ou seja, quando não há a autenticidade condição da singularidade do poeta que, tendo ou não disso consciência, no fundo de si alberga apenas uma forma (estilo) de escrever que é (ou deveria ser) o seu. E convém lembrar que a questão da autenticidade foi tema do contemporâneo de Pessoa, Adolfo Casais Monteiro. O poeta superior - leia-se o que de algum modo tem o fio de Ariadne que não o deixa perder definitivamente no labirinto das imagens – para atravessar todos estes desertos do condicionamento luta ainda numa frente (essa afectando tudo e todos) que é a das tão faladas imagens subliminares, «resistências ao poder do espírito», no dizer de Telmo, à maneira da magia negra, dirigidas nos tempos presentes e manifestamente contra a vontade da pessoa, inculcadas por forças obscuras que se esforçam por ludibriar o fulgor do espírito. Proliferam em todo o lado: na imprensa, nas televisões, nos discursos políticos e até pseudo-religiosos, e ainda nos economicistas e plutocratas.
Se tomarmos o que Fernando Pessoa escreveu sobre o movimento serpentino, não se descortina bem que sentido António Telmo queria dar à expressão em epígrafe do movimento triádico. Seja como for, o filósofo, que nasceu na Beira Alta, que andou pelo Brasil e viria a falecer no Alentejo, aponta para a dualidade não resolvida na busca de um terceiro elemento. Contudo, pode haver neste processo não apenas uma questão quantitativa de mais um elemento, mas uma espécie de “destilação” simultânea de tudo ou uma transdisciplinaridade em vez de uma interdisciplinaridade.
Diz Pessoa: «Ella [a serpente] liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ella segue um caminho que passa por todos e não é nenhum. Ella parte, como o caminho direito e o esquerdo, do Instincto para Deus, mas não sofre a quebra onde os triângulos se unem; não fôrma angulo comsigo mesma». Seja qual for a análise que se faça, estamos em presença de um processo holístico, que superiormente resolve todos os contrários, todas as dissonâncias e antíteses. Se, como já alguém disse, o primeiro pensamento e acto da Criação foi (é) uma afirmação, o mundo em que vivemos é fértil na negação, sob o piscar de olhos de Satan, porque sabe que o mundo sensível é um mundo de oportunidades pelo esforço, senão… o céu seria um céu de medíocres!
Outubro de 2014