VOZ PASSIVA. 31
As Encruzilhadas de Deus de José Régio
Eduardo Aroso
As Encruzilhadas de Deus, título de uma das obras mais profundas de José Régio, tem logo o condão de nos fazer pensar se as encruzilhadas de Deus não serão muito provavelmente as encruzilhadas dos homens! Que os homens tenham encruzilhadas é natural; que Deus as tenha, é assunto complexo. Creio que com este título Régio lança-nos no mistério do ser, e não no homem «cadáver adiado que procria», mas no homem no nevoeiro mais baixo e pesado da encarnação. No hermetismo «o que está em cima é como o que está em baixo», melhor dizendo, o que está em baixo corresponde, ou deve corresponder, ao que está em cima. Não sabemos o que estaria na mente de José Régio quando deu o título ao seu livro As Encruzilhadas de Deus. Seja como for, a obra fala do dilema de sempre do homem religioso. Aliás, num livro seu intitulado Confissões de um Homem Religioso, o poeta anda sempre à volta do tema, nomeadamente nos capítulos «a ausência de fé», «os graus de Deus» e «a vocação mística».
Durante a sua vida física Régio movimentou-se num triângulo ou numa tripeça que assentava em três locais: em Vila do Conde onde nasceu, em Coimbra, onde estudou e escreveu uma parte significativa da sua obra e em Portalegre onde exerceu a docência. No seu livro intitulado «Fado», se este não representa propriamente as encruzilhadas de Deus, faz parte sem dúvida das encruzilhadas da sua vida, um mosaico poético que canta não só essas três cidades, como outras paisagens geográficas e humanas do Portugal que via e sentia, ao mesmo tempo que o poeta sabe de um «Portugal de todo o mundo», título do primeiro poema «Meus avós que o mar levou,/ Rasgaram águas sem fim./ Neto sou de quem n-o sou!/ Se canto, é que o mar que entrou/ faz ondas dentro de mim…».
Se recorrermos à expressão «pensamento situado», poderíamos também falar de um Régio poeta situado, tanto no espaço que foi o seu neste mundo, e para isso bastaria lermos Fado, como na sua condição de homem religioso, se lermos, por exemplo, Filho do Homem ou A Chaga do Lado, obra esta que António Quadros comenta da seguinte forma «a situação de José Régio na cultura portuguesa é tal que num livro como A Chaga do Lado vem pôr em causa, não apenas a posição espiritual do seu autor, como também o próprio sentimento profundo dessa cultura nas suas relações com a religião».
Como não poderia deixar de ser, é em Coimbra que Régio se integra no movimento Presença, nos anos 20, na companhia de Edmundo de Bettencourt, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, entre outros, onde surgem as inevitáveis polémicas. Tomemos apenas a seguinte, aliás uma das mais habituais e que, diga-se, ainda hoje permanece. Mas dêmos a palavra ao poeta: «Pelo que me toca, nunca pude aceitar qualquer arte-pela-arte que não fosse um livre e peculiar meio de expressão do humano; e do integral humano, embora a cada artista possa não caber senão uma parte. Não creio no futuro de quaisquer tentativas de arte desumanizada – por mais em voga que possa estar esta em certas épocas de crise, sendo até sinal de tal crise. Se, de facto, aceito aprovativamente a fórmula arte-pela-arte, é porque, atribuindo um específico independente de qualquer outro, creio que ela a si mesmo se basta. Mas sempre arte-pela-arte foi para mim sinónimo de arte viva».
António Telmo em Arte Poética diz-nos que «na introdução que escreveu para os seus Poemas de Deus e do Diabo, - o indefinível e o definido -, José Régio defende-se dos critérios que têm pretendido diminuir o valor da sua poesia, quando o acusam de se alhear dos problemas sociais para se entregar a uma constante reflexão da intimidade. José Régio faz-nos então ver que mistério é o do homem nas suas ramificações profundas e independentemente de qualquer compromisso social». Também, por exemplo, um Vergílio Ferreira viria a escrever sobre este assunto, na clara radicalidade da sua assumida condição humana individual da arte que se basta a si, para não morrer em si e poder assim chegar aos outros. Na verdade, as desejáveis preocupações de assistência social e humanitária não se podem confundir com aquilo que é mais singular e sagrado no ser humano: o seu pensamento e a sua arte.
«Sei que não vou por aí» eis o verso de ordem que a sociedade retirou habilmente do poeta. E não só pela necessidade ocasional, bem ao gosto de muitos, como por certos critérios de fazedores de antologias mais ou menos ministeriais. Nem sempre vemos o que queremos ver, mas o que podemos ver, ou então o que mais nos interessa. Ou seja, o poeta, do «Sei que não vou por aí», longe de ser procurado na sua inteireza, como é, ou pelo que é, surge como a excelência da citação. Infelizmente muitos poetas em Portugal têm servido apenas para citação ocasional.
Por certo que o que nos traz aqui é um Régio mais alto e complexo. Não é apenas o poeta do académico e do social, mas aquele do permanente conflito entre fé e razão. Ao considerarmos a sua natureza do divino e do humano, ou do transcendente e imanente, é bem de ver a lógica natural de uma certa aproximação ao movimento da filosofia portuguesa. No capítulo «o labirinto», do livro Confissão de um Homem Religioso, diz-nos que «durante anos vivi numa espécie de labirinto quanto a vida religiosa. Isto não é só porque em mim se digladiavam a razão e os sentimentos obscuros, profundos, mas também porque a própria razão se contraditava a si mesma, usando de argumentos contrapostos uns aos outros, e se contrariavam os próprios sentimentos profundos e me atraíam a posições opostas ou diversas».
Régio foi de algum modo atraído ao movimento da filosofia portuguesa. Elogiou a Faculdade de Letras do Porto como base para uma universidade reformada e moderna, referindo as suas amizades vindas algumas de tempos mais recuados. Fala de Leonardo Coimbra como «poderosa personalidade» à volta da qual todos gravitavam, filósofo que aliás interrogou Régio num exame, tendo-lhe atribuído uma boa classificação. Nesse ambiente, como sabemos, cresceram José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos, Casais Monteiro e Santana Dionísio, entre outros. Cabe aqui referir um episódio que atesta bem a personalidade do poeta, conforme as suas palavras: «Uma vez, José Marinho, com quem eu mantinha um estreito convívio que me foi muito fecundo, pois me ajudou a desenvolver-me sem me alterar, ofereceu-me esse belo livro injustamente mal conhecido que é A Alegria, a Dor e a Graça com a seguinte dedicatória: Ao Reis Pereira (eu ainda não era o José Régio) do Mestre para o futuro discípulo. E eu escrevi ao lado, a lápis, esta coisa ingénua e pretensiosa: O Reis Pereira não quer ser discípulo senão de si mesmo.» Ora, o sucedido mostra-nos por um lado uma certa faceta do poeta e por outro que José Régio sempre esteve mais próximo da poesia do que dos trilhos da filosofia propriamente dita.
Assim, seguindo rumo até à cidade do Mondego, escreveria mais tarde «nem o prestígio de Leonardo nem a perspectiva de camaradagem de estes meus amigos me desviaram da opção por Coimbra». Deste modo, passaria na rota da grande maioria dos poetas portugueses, numa época em que surge o movimento Presença, criando o ambiente literário que o poeta desejava. Todavia, há que dizê-lo, dele depois se afastaria, desse ambiente académico que ao poeta já não preencheria verdadeiramente a alma, pois, ele próprio o diz «Creio ter sido durante esses anos de Coimbra que a minha religiosidade se manifestou mais superficialmente». Todavia surgem nesse tempo Poemas de Deus e do Diabo, Sonetos de Biografia, Romance da Cabra Cega e vários poemas de As Encruzilhadas de Deus, obra que seria concluída em Portalegre.
Podemos dizer que As Encruzilhadas de Deus existem em toda a obra do poeta e não apenas no livro que tem este título. Mas é neste que a sua poesia tem porventura o seu Getsmani, ou seja, a não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, se quisermos, do erro como meio de salvação. E nisto podemos ver a antítese do nirvana oriental. Teria sido interessante que Antero tivesse conhecido Régio, ou vice-versa, porque essa tensão do nirvana anteriano com as preocupações sociais e políticas do mesmo Antero fariam um bom diálogo com os contrários de Régio, a tal «razão que se contraditava a si mesma» e «os próprios sentimentos profundos» que o «atraíam a posições opostas ou diversas». A assunção do corpo, como instrumento sagrado para transmutação ou retorta para alquimia é um dos traços que distinguem a via do discípulo ocidental do discípulo oriental, e foi a luta que, enquanto poeta, Régio sempre travou em si. Este cume é atingido no «Poema da Carne-Espírito», quando escreve «Sonho-te! Para te humilhar/ E me vingar da tua ausência,/Nesse instante supremo, estrídulo e vulgar,/ Em que o delírio atinge o cúmulo da urgência. (…) Evadir-me-ei, então, por sei lá bem que espaços,/ Cego de raiva e de ternuras loucas,/ Eu, com duas cabeças, quatro pernas, quatro braços,/ E só uma língua em duas bocas! (…) O não te desejar é impossível/ Porque tu sabes, sempre moça e eterna amante,/ Pairar!, virgem suprema!, inatingível e intangível…,/ Prostituída a cada instante.»
Todavia, encontramos também em Régio uma necessidade e quiçá redenção dir-se-ia pela mediação, na figura da mulher Eva e de modo mais elevado no feminino transcendente ou Virgem Maria. No primeiro caso, escreve o poeta «Mulher, como o universo/ Cabe nos seis centímetros de um verso,/ Em ti, nossos sentidos,/ Os conhecidos e os desconhecidos,/ Sentem caber, reunida, a natureza inteira./ Nesses regatos, nessas sombras, nesses altos, nessas praias, /Meu corpo, quando desmaias,/ Não escutes os meus gritos!/ A ti, Deus ensinou-te a resolver os meus conflitos. (…) Compreenderás/ Que em toda a terra há céu atrás!/ Alma e corpo em um só, então, um Eu maior/ Transponha, Deus lho ensina!, / A síntese do amor, /Este abismo que sempre há-de permanecer/ Entre estes pobres dois: eu homem, tu mulher…» Mas é na excelsa figura da Mãe de Jesus que o poeta encontra uma mediação superlativa ainda que na imagem de uma «Nossa Senhora de madeira/ Arrancada a um Calvário de Capela» (…) «“Porque choras, Mulher?” – docemente a repreendo./ Mas à minh’alma, então, chega de longe a sua voz/ Que eu bem entendo: -“Não é por Ele”... / “Eu sei! Teus filhos somos nós».
No que falei há pouco de um dos traços da poesia de Régio, o da não recusa da matéria, do sensível, daquilo que amarra o homem, mas também o pode libertar, cabe aqui citar de novo António Telmo em Arte Poética ao dizer que «o movimento da filosofia deverá consistir, pois, não em fugir para um mundo suprassensível, mas em tomar consciência da imensa força na qual vivemos e somos, - em encontrar o dissolvente universal.» Ora, este assumir a condição mais difícil do ser humano em trânsito, a sua passagem neste mundo, traz-nos ainda as palavras do filósofo de Estremoz que amava Sesimbra, ditas numa conferência na Faculdade de Psicologia de Lisboa, 1996 «Também (...) a gnose hebraico-portuguesa se distingue da gnose oriental valorizando a palavra sobre o silêncio, procurando no silêncio, não o pensamento que se torna inefável, mas o pensamento que se transforma em palavras que iluminem a treva em que vivemos».
Se tempo houvesse, agora e aqui, alargaríamos a nossa análise, partindo do outro lado da obra de Régio, de traços irónicos, lúdicos e até humorísticos, para chegarmos a uma poesia de ascese feita oração, que fere benignamente esse silêncio – repito que fere benignamente - para iluminar a treva do poeta e do próprio mundo, ao mesmo tempo que nessa ascese surge a nota dissonante de certo sentimento de culpa entranhado não só no poeta, como em todo o nosso inconsciente, fruto de momentos históricos que todos conhecemos.
Caros amigos, não venho dizer nada que já não tenha sido falado, nada que já não se saiba, mas apenas recordar um poeta português tão caro a António Telmo e Álvaro Ribeiro, entre outros. A sua poesia que teve que lutar para não se perder no efémero de cada época, na chamada “intervenção”, conduz-nos para a poesia enquanto caminho e matéria de transmutação e redenção pessoal, nesse andar no caminho quando «Deus esconde a Sua face». Neste sentido importa sobremaneira a poesia como profecia, anunciando o que ao Homem falta colher da «árvore da vida». Assim, penso que a propósito dos tempos que vivemos, onde para além da patologia do «politicamente correto» se pretende impingir também o «literariamente correcto», e o «artisticamente correcto» (basta ver os apadrinhamentos oficiais), e para concluir estas minhas palavras, nada melhor do que um contraponto no tempo, de António Carlos Carvalho para José Régio, ou vice-versa, do presente para o passado, ou o contrário, o que dá no mesmo. Diz António Carlos Carvalho na introdução da obra A Profecia dos Papas de S. Malaquias «O fim da profecia não é, não anuncia, o fim da História – em termos de exegese judaica da Bíblia. Aliás, segundo o Zohar, quando a profecia se cala, o céu fala pela voz dos sábios, à falta de sábios o sentido das coisas é revelado nos sonhos, e à falta de sonhos pode-se tê-lo no piar dos pássaros… ou então o espírito profético continua vivo nas crianças e nos loucos…» Palavras estas que se irmanam com as de José Régio quando escreve «na crise espiritual deste nosso mundo moderno em que todos os mais permanentes princípios morais, religiosos, até estéticos (independentemente da sua cor) tantas vezes são atropelados ou se representam por letra morta, - ainda é talvez nos desgraçados, nos miseráveis, nos repelidos, nos malfadados, nos ignorados, nestes e não nos felizes superficiais, não nos príncipes de quaisquer poderes, não nos reconhecidos e constituídos valores sociais de qualquer ordem, que melhor perdura o eterno germe da redenção do homem; que sobrevive a mais autêntica virtualidade da Graça».
Nesta pátria desgraçada que é Portugal (se é que ainda há pátria), com esta graça ficamos ou a esperança paraclética que sopra sempre onde lhe apraz, sejam quais forem os desmandos dos homens, e permanece por todos os tempos, além das estatísticas e planos previsíveis.
Biblioteca Municipal de Sesimbra, 25 de Maio de 2013