VOZ PASSIVA. 23
Contos de António Telmo*
Avelino de Sousa
I
De acordo com Álvaro Ribeiro, a perscrutação de uma obra literária coloca em movimento ou pede o exercício de três capacidades fundamentais da mente: «a judicidade que caracteriza o crítico, a compreensão que caracteriza o psicólogo, e a generalização que caracteriza o filósofo». Na ausência ou na insuficiente maturação de cada uma dessas faculdades, melhor seria o intérprete abster-se de comentários escritos, guardando para si próprio as impressões recebidas na leitura de qualquer obra de imaginação, como é o caso dos contos reunidos por António Telmo em volume com o mesmo título. A isto me sentindo impelido, acabei no entanto por aceitar o convite que me foi endereçado para participar nesta singela homenagem a alguém que desde há muito prezo como pessoa e como escritor. Como também há muito que perfilho ou partilho daquela posição de Rilke, que escreveu «as obras de arte são de uma solidão infinita: para as abordar, nada pior do que a crítica», não poderia nunca ser nessa qualidade que me abalanço agora a lançar ao papel estas palavras, mas apenas mas na de amigo do autor. E é somente nessa condição que desejo deverem ser lidas estas linhas que se vão seguir.
Quis António Telmo dar ao seu livro de contos o simples, recto e justo título de “Contos”, sem aposição de outro qualificativo que nos esclarecesse que contos são esses, de que tratam, para que fim existem ou, porventura, a quem se dirigem. Procedeu, a meu ver, acertadamente, pois caberá de preferência ao leitor interessado inteirar-se ou aferir por si mesmo desses motivos, quer dizer, daquilo que terá movido o autor quando os concebeu.
A nudez da designação talvez oculte já, ou embora, o propósito da significação. Se focalizarmos a atenção num pequeno detalhe, constatar-se-á que a palavra “contos” está muito próxima da palavra “cantos”, variando apenas a primeira vogal. Deste pormenor aparentemente anódino, mas significativo, se atendermos a que António Telmo se estreou em livro precisamente com uma “Arte Poética”, quer dizer, com uma reflexão sobre a criação e os seus processos, poder-se-á talvez inferir que estes contos podem ser vistos simultaneamente cada um deles como um canto, do ‘canto maior’ que seria o conjunto de todos eles. E se ‘quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto’, não haverá canto sem encanto. Esse encanto surde como murmúrio de regato no canto de água límpida e pura que atravessa todo o fio narrativo, pontilhando estes contos de reflexos com todas as cores do arco-íris.
Caberia neste momento interrogar qual o estatuto que poderia apresentar um género de obra como esta, de contos, num autor que à meditação filológica e filosófica, aos artistas do pensamento e da palavra, tem dedicado o melhor do seu mester de escritor. Caberia isso interrogar, se não soubéssemos de antemão que para António Telmo é artificial a separação dos géneros literários, derivada de uma classificação em grande medida convencional, exclusivamente por motivos funcionais, próprios de uma necessidade taxiológica do espírito humano. E é por essa mesma razão que a sua obra vem sendo capaz de albergar no seu seio, de forma dispersa mas não díspar, antes formando uma plena unidade, aforismos, contos, histórias, poemas, ensaios, interpretações, filosofemas e outros textos de difícil classificação, se bem que em todos eles se possa constatar a “valorização do pensamento sobre o sentimento” (cf. p. 75), cara ao autor.
Por outro lado, numa hipótese puramente poética, a palavra portuguesa ‘contos’ contém em si, descontada a letra c, o termo grego “oνtωs (óntos), substantivo feminino para dizer a realidade, cuja forma verbal, tα̃ων ou tα̃ “oνtα̃ significa as coisas existentes. Neste sentido, esta obra, estando longe de ser um estudo ontológico ou tratado acerca do ser, mas porque o ser se diz de diferentes modos ou em diversas categorias, não deixa de constituir uma indagação das “coisas existentes” sob a esfera celeste. Mais concretamente da realidade do homem, e do homem situado, pelo que pressupõe a construção de personagens diferenciados em que a tessitura psíquica e lógica, ou psicológica, dos mesmos é pacientemente urdida. O mistério do princípio de individuação sempre há-de interpelar o escritor que se propõe perscrutar a fundo a natureza humana. Vários dos contos aqui reunidos testemunham esse mesmo intento – com especial relevo para o primeiro deles, intitulado “Os Dioscuros” ou mesmo “Doutoramento e Incesto” –, se bem que sob perspectivas ou pontos de vista diversos.
Fiel à tese alvarina, segundo a qual «a literatura, para não dizer a escritura, tem por missão revelar aos homens os acontecimentos de ordem preternatural e sobrenatural», objectivo esse a que o conto, de resto, se presta de forma excelente, pois se caracteriza, no dizer de Álvaro Ribeiro, «pela presença colaborante ou neutralizante de seres sobrenaturais», António Telmo será dos poucos autores vivos que dessa máxima soube extrair todas as consequências. Nos “Contos” se arquitecta uma obra de imaginação de impressiva sugestão sobre os espíritos, que da interrogação sobre as causas dos acontecimentos procuram fazer regra de vida, e da meditação pão quotidiano. Por aqui se vê que estes contos não são especialmente dirigidos a crianças, embora também elas possam lê-los com proveito, educando a imaginação, já que a imaginação futurante e adivinhante do que é ou se mantém incógnito, antecede o movimento da intelecção como factor gnósico e desperta na alma daquelas a perspicácia e o desejo de conhecimento, num trânsito do desconhecido para o conhecido ou, melhor dito, num movimento que está implicado ou implícito no acto de conhecer.
De resto, e será bom dizê-lo neste momento, face ao materialismo estéril e indigesto e à sociologia barata de que boa parte da literatura portuguesa contemporânea está cheia, mesmo aquela de autores tidos como “consagrados”, os quais antes deveriam ser considerados como profanadores da arte de bem escrever, que frescura e limpidez se desprendem destas páginas, em que os diálogos e as descrições, a clareza da linguagem e a variedade de meios expressivos, emprestam ao acto de bem dizer e contar um aroma de rara especiaria e lhe conferem um estilo cuja sublimidade está ao alcance de poucos.
II
Segundo testemunho oral do próprio António Telmo, os contos seriam «a filosofia servida á mesa do pobre», o que talvez possa significar o seguinte: mediante a arte narrativa do conto, sob o véu das imagens e do jogo de relações que as personagens entre si entretecem, qualquer pessoa medianamente culta que os leia poderia aceder, ainda que simbolicamente, ao plano de certas ideias que lhe são dadas de modo translato, como que metaforizadas em elementos sensíveis ou que se apresentam de modo concreto.
Mas esta dialéctica descendente – para utilizar uma terminologia platónica – em que o escritor faz descer a ideia do “céu” dos inteligíveis à “terra” do sensível ou experienciável, encarnando-a em pessoas e acontecimentos visíveis ou audíveis, não se faz sem a correspondente dialéctica ascendente que é a de suscitar no leitor o percurso inverso: levá-lo pela palavra a acordar o poder da imaginação e a conceber na sua alma «a figura do que apenas tem forma», para recorrer uma vez mais a uma expressão de Álvaro Ribeiro. Esse mesmo é o sortilégio da faculdade imaginativa, se entendermos este conceber não tanto como raiz da conceptualização lógica e abstracta, mas como concepção maternal ou matricial, em que o gérmen, ponto ou ideia inicial se vêem envoltos progressivamente, e em simultâneo, da criação “espiritual” (oferecida pelo escritor, em acto de dádiva ou de graça) e da compreensão “subtil” a ser conseguida pelo leitor, mediante um esforço de elevação desde a concreção “carnal” do texto que lhe é dado ao plano ou esfera ideal que, ínsito, nela cripticamente se insinua ou significa.
Se há ou pode haver um convite à decifração que o escritor dirige ao leitor avisado, nem por isso deixa de haver também um convite ao simples leitor, para que imagine qual possa ser o sentido ou trama da história que se lhe apresenta. É a este segundo tipo de leitor que convirá o epíteto de “pobre”, a cuja mesa a filosofia se serve. A subentendida metáfora do manjar ou da degustação – e repare-se que aqui não se fala de banquete, imagem mais apropriada para os iniciados na filosofia, mas de «mesa do pobre» – imediatamente nos coloca na conta de que estes contos, na mestria do seu lavor, são como que um alimento que tanto se pode pôr à disposição do vulgo como, sobretudo, dispensar aos alunos dele necessitados para sua instrução. Porque pelo sabor se pode aquilatar do caminho a percorrer ou que para o saber converge. O que acaba de dizer-se pode ter alguma relação com esta sibilina afirmação do filósofo de “Escritores Doutrinados”: «O dar às obras de arte como títulos, e não como subtítulos que designem o género literário, as palavras contos ou histórias é já uma indicação». Os contos seriam, portanto, uma forma discreta mas eficaz de mapear rotas; de pontuar e apontar caminhos para solver os enigmas de quem se depara com a perplexidade das encruzilhadas, de cruzes silhadas ou tão-só de seladas ciladas.
Não se estranhe por isso que, com este mesmo objectivo, um livro chamado de “Contos” tanto possa conter histórias, que propiciam a evasão, como memórias mais ou menos ficcionadas, como é o caso dessa que se apresenta sob o título de “Trabalho de Grupo”, ou ainda momentos de suspensão e de advertência, como aquela apresentação que surge a páginas 81-82, antecedendo o conto “A Dama de Ouros” e onde se podem ler estas palavras significativas: «Na profundidade de cada um de nós, que é a profundidade de todo o desconhecido, há uma Dama de Ouros. Ela é também aquilo que, em cada um dos restantes contos, se procura. Daqui o poder ter chamado a este livro A Dama de Ouros, se não houvesse os outros a protestar». Pergunta-se: quem ou o quê são os que protestam? Os outros indivíduos, pessoas, amigos, ou os outros contos, se tal fosse possível, porque, cientes da singularidade ou da unidade do seu núcleo expressivo, não veriam de que modo poderiam subordinar-se a um título de apenas um deles, por mais que o autor diga o que diga.
Como julgo já ter referido o que me interessava assinalar a propósito dos “Contos” de António Telmo, e não me assistindo particulares qualificações exegéticas ou interpretativas, não irei entrar pela análise dos mesmos, o que seria errático e fastidioso. Prefiro deixar ao cuidado de cada leitor o escrutínio dos títulos e ver por si como cada um deles se adequa plenamente ao conteúdo das histórias narradas, bem como a eventual relação que estas poderão ter com a “bordadura” das doze gravuras do Zodíaco que as encimam ou ainda ao exame da disposição geral dos contos.
Para pôr fim a este meu excurso, um pouco a voo de pássaro, pela obra, não quero deixar de referir que aos acima mencionados doze contos inéditos, entendeu o autor agremiar uma outra obra anterior, “O Bateleur”, que se vê assim reeditada em diferente contexto, também ele como que uma história, mas desta vez em nove pontos ou capítulos ordenada; terminarei todavia citando um excerto do conto “O Trevo” que bem pode ser considerado a vários títulos exemplar da qualidade intrínseca e da beleza que anima estes contos de fio a pavio. É que esta colecta de histórias-ensinamento, como as da “Mil e uma Noites” ou as histórias da tradição sufi, são mais um dos odoríferos frutos da casta soberba de uma prosa que dir-se-ia tocada pelos fulgores de aurora da Língua, colheita essa que sem exageros e poderia qualificar de paradisíaca, e a que António Telmo, escritor doutrinado, desde sempre habituou os seus fiéis leitores.
«Em dado momento (que momento!) suspendeu a leitura e deixou cair o olhar sobre um tufo de trevos que crescia à volta de uma roseira. Meio alheado do que lera, passou-lhe pelo espírito uma cena de infância. Ia com os outros rapazes para o campo à procura de um trevo de quatro folhas. Tinham-lhe dito que tinha o Dom de dar a quem o encontrasse a perfeita felicidade. Crianças que eram, embora não sabendo ainda o que é a infelicidade, acreditavam, sem a menor dúvida, no poder de tal planta. Procuravam-na, porém, não porque desse a suprema felicidade, mas obedecendo àquele instinto da alma pelo qual ela sente que no excepcional reside o segredo da vida.
De súbito, não soube se estava a ver bem. Tinha diante dos olhos um trevo de quatro folhas. Levantou-se da cadeira e aproximou-se da roseira. Não havia dúvida. Um pouco acima dos outros, estava ali, como que por milagre e sem que tivesse sido deliberadamente procurado, um belo trevo de quatro folhas. Murmurou para si: “Meu Deus, o símbolo da Tétrada e logo no meu quintal!» (cf. pg. 56-57).
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*Publicado em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003, pp. 155-161.
Nota: Excepto as citações dos “Contos” de António Telmo feitas neste texto, as referências a Álvaro Ribeiro são extraídas de duas das suas obras, a saber: A Razão Animada (1957) e Escritores Doutrinados (1965).