VOZ PASSIVA. 22

20-05-2014 17:56

As ideias são comunicadas pelos anjos[1]

Rui Arimateia

 

António Telmo nasceu em Almeida, Distrito da Guarda nos idos anos de 1927, a 2 de Maio. Chegou com as Maias, poder-se-á dizer.

Andarilho por meio mundo, por ele peregrinou com grandes da Cultura, da Filosofia, do Pensamento Português. Desde Agostinho da Silva a Eudoro de Sousa, de Álvaro Ribeiro a José Marinho, entre muitos outros que com ele privaram e com eles António Telmo ajudou a re-construir a Pátria da Língua Portuguesa, parafraseando o poeta Fernando Pessoa.

Refere José Marinho na sua obra “Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo”[2]:

 

Nos pensadores que contamos entre os responsáveis no próximo futuro pelo destino da filosofia entre nós, quatro se nos impõem: Alberto Ferreira, António Telmo, Eduardo Lourenço e Orlando Vitorino. Em todos eles despertou o sentido d’«o que mais importa», pois nos aparecem intimamente atentos com diversa explicitação ao imperativo dizer de Plotino.

 

É realmente este sentido d’«o que mais importa» que vemos continuamente a ser alvo das preocupações literárias – e a Literatura é aqui usada enquanto veículo de transmissão de mensagens – de António Telmo. E é interessante o facto dele próprio se considerar um esoterista. E encaremos este termo sem cairmos em pré-conceitos, e se lhe dermos a dimensão de Schwaller de Lubicz penso que entenderemos um pouco melhor a obra de António Telmo.

Sobre o significado de Esoterismo refere então Schwaller de Lubicz:

 

O Esoterismo não possui nada em comum com uma vontade de segredo, isto é, de um segredo convencional.

(…)

A criptografia e o enigma, na composição de um texto sagrado, não têm senão por objectivo, o de acordar a atenção do leitor, acentuar um ou outro aspecto do texto, enfim, guiar na direcção do carácter esotérico. (…)

O esoterismo não pode ser escrito, nem dito, nem, por consequência, ser traído. É preciso estar preparado para o compreender, o ver, o entender – como o escolherdes. Esta preparação não é um Saber, mas um Poder, e não poderá senão adquirir-se pelo esforço da própria pessoa, por um combate contra os seus obstáculos e uma vitória sobre a sua natureza animal-humana

Existe uma Ciência Sagrada, e após milénios, inumeráveis curiosos em vão tentaram procurar penetrar-lhe os “segredos”. Era como se, com uma picareta, eles quisessem cavar um buraco no mar. A ferramenta deverá ser da mesma natureza da coisa em que se quer trabalhar. Só se encontra o espírito através do Espírito, e o Esoterismo é o aspecto espiritual do Mundo, inacessível à inteligência cerebral.

(…)

O Iniciado verdadeiro poderá guiar um aluno dotado para lhe fazer percorrer o caminho da Consciência mais rapidamente, e o aluno, chegado às etapas da Iluminação pela sua própria Luz interior, lerá directamente o esoterismo de tal ensinamento. Ninguém o poderá fazer por ele.[3]

 

É uma obra complexa a de António Telmo – A Arte Poética (1964), História Secreta de Portugal (1977), Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981), Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982), Filosofia e Kabbalah (1989), O Bateleur (1992), Horóscopo de Portugal (1997) e agora estes Contos – para só referenciar os livros publicados e passando por cima dos muitos artigos espalhados por importantes Revistas principalmente ligadas com a Cultura, a Filosofia e a Língua Portuguesas, tais como as Revistas “57”, “Leonardo”, “Cultura Portuguesa”, para só citar algumas.

Diz-nos Pinharanda Gomes no seu “Dicionário de Filosofia Portuguesa”[4] que:

 

O centenário do nascimento de Sampaio Bruno (1957) ficaria assinalado pelo aparecimento do jornal 57 que dimensionava a problemática da filosofia portuguesa em termos de movimento de intervenção social e cultural. O 57 reivindica uma genealogia espiritual (Aristóteles, a Bíblia, Dante, Conimbricenses, Hegel, Bruno, Leonardo Coimbra…) e congrega jovens pensadores todos eles, cada um a seu modo, destinados a uma presença consistente. Mencionando apenas os discípulos [de Álvaro Ribeiro ou José Marinho] da primeira geração, entre eles (…) António Telmo (filologia e simbologia) (…). O 57 tem um vector polemizante: quer suscitar o debate das ideias, e este debate provocará algum radicalismo, mas sem ele o movimento teria ficado fechado em si mesmo.

 

É interessante referir que este jornal se insere num movimento de cultura portuguesa, cujos mentores e impulsionadores foram Álvaro Ribeiro, José Marinho, António Quadros, Afonso Botelho e Orlando Vitorino. Vejamos um pequeno excerto do «Manifesto de 57» publicado no seu primeiro número:

 

Nós somos solidários desses milhares de jovens indiferentes à cultura, que enchem os estádios, os cinemas e os cafés. Nós somos solidários dos que viraram as costas a esses brilhantes aparatos racionais e abstractos, os sistemas metafísicos; que viraram as costas às grandes promessas utópicas, brilhantes na sua argumentação falaciosa e desligados das condições humanas e naturais quando não trans-naturais da realidade; que viraram as costas a todos os dogmatismos, contrários à simples prova de reflexão individual e buscando coarctá-la na sua liberdade interior; que viraram as costas a todas as formas da mentira, mesmo quando esta se reveste das aliciantes da beleza ou do bem comum.

 

Não nos podemos esquecer que quando este «Manifesto» é escrito estamos em pleno Estado Novo e com certeza não seria fácil a qualquer movimento de libertação – cultural, filosófico, ou outro – transmitir e fazer valer a sua mensagem de “ruptura” …

Afinal toda a busca do Homem em geral e neste caso concreto, em particular, a busca de António Telmo, penso ser a da VERDADE. Agora: como procurar essa Verdade? Como a descobrir e a desocultar? E como saber se a Verdade que encontrámos é a VERDADE que pensamos adivinhar no Arquétipo? Lembro-me continuamente daquela deliciosa história narrada por Almada Negreiros sobre a Verdade, escrita em 1921:

 

Eu tinha chegado tarde à escola. O mestre quis, por força, saber porquê. E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa tomei um carro para vir mais depressa, mas, por infelicidade, diante do carro caiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.

O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!

E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa… minha mãe tinha um irmão no estrangeiro e, por infelicidade, morreu ontem de repente e nós ficamos de luto carregado.

O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! Diga a verdade!!

E eu tive de dizer: Mestre! quando saí de casa… estava a pensar no irmão de minha mãe que está no estrangeiro há tantos anos, sem escrever. Ora isto ainda é pior do que se ele tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de luto carregado ou não.

Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? Diga a verdade, já lho disse!

Fiquei muito tempo calado. De repente, não sei o que me passou pela cabeça que eu acreditei que o mestre queria efectivamente que lhe dissesse a verdade. E, criança como eu era, pus todo o peso do corpo em cima das pontas dos pés, e como o coração à solta confessei a verdade: Mestre! Antes de chegar à Escola há uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida de cor-de-rosa! A boneca tinha a pele de cera. Como as meninas! A boneca tinha tranças caídas. Como as meninas! A boneca tinha os dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha os dedos finos…[5]

 

A uma pergunta feita pela jornalista Antónia de Sousa[6]: Qual a génese das ideias? Como nascem as ideias? Responde António Telmo muito simplesmente: «As ideias são comunicadas pelos anjos! Só que há quem as pense e quem as não pense. O pensamento é que é nosso.»

Já Agostinho da Silva se “queixava” que uns lhe chamavam heterodoxo, outros lhe chamavam ortodoxo, contudo o que ele realmente reivindicava era o estatuto de ser paradoxo, de viver no paradoxo…

Atentemos mais uma vez no pensamento de António Telmo, desta feita através de uma entrevista à jornalista Antónia de Sousa.

 

António Telmo faz uma afirmação surpreendente. «Eu acho que os meus livros sabem mais do que eu. Muitas vezes, ao ler alguma coisa que escrevi, fico surpreendido perante o anúncio de um conhecimento e de uma sabedoria que eu não possuo e que tenho de aprofundar como qualquer outro leitor.»

Telmo não nos diz como é isso possível. Mas afirma-nos: «O Universo não é racionalista, nós é que o devemos ser. Aquilo por que me esforço sempre nos meus escritos é por pensar o irracional. Na minha opinião, isto é que me caracteriza e me distingue e julgo também que é o que suscita o interesse das pessoas. É uma vivência pessoal, mas é também o esforço de não perder a razão perante aquele mundo misterioso. Estou convencido de que toda a gente tem a experiência deste irracional, mas resolvem os conflitos de vários modos. Ou negando esse irracional, ficando preso aos limites de uma razão estreita, ou aceitando esse irracional e perdendo a razão.» Há, porém, outra alternativa que é, segundo diz, a de «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real». E acrescenta: «No fundo, é por onde eu ando.»[7]

 

Penso ser isso que António Telmo realiza através da sua obra: trabalhar o paradoxo, trabalhar nos limiares da língua, do pensamento, das ideias, fornecendo-nos de certo modo a chave para entrarmos noutra dimensão que não a dimensão meramente analítica, normalizada, feita a esquadro. Desafia-nos a dar um passo em frente, a pegar no compasso e desta vez sair da rectilinearidade para nos embrenharmos numa circularidade de uma compreensão e de um pensamento mais abarcante, mais totalizante – «construir o Todo Completo, que é a verdadeira imagem do Real…no fundo é por onde eu ando.»[8]

 

 

OS CONTOS

 

Em relação aos CONTOS de António Telmo, que em boa hora a Editora Aríon quis publicar, dão-nos realmente a dimensão do artífice da palavra que é o seu Autor. O estudo da palavra como a aprendizagem de um mistério, foi uma das ideias que me vieram ao espírito após ler e reler os Contos.

Gostaria somente de referir meia dúzia de sublinhados de alguns dos Contos, pelo menos para vos aguçar os apetites literário, poético, filosófico, místico até, para que não deixem de ler a obra.

 

O TREVO

E encontramo-nos no imaginário da criança que habita em todos nós… A partilha da palavra, a conversa, serve «para estabelecer as bases de uma procura que levasse cada um a realizar em si próprio o Homem de Luz».[9]

 

TRABALHO DE GRUPO

«… nos longos anos em que frequentei a tertúlia da filosofia portuguesa, sempre me foi reconhecida a independência de pensar por mim próprio, não me teria submetido às novas condições de trabalho se não esperasse conseguir, através dele, um mais alto grau de liberdade.»[10]

Contudo António Telmo, fazendo jus à sua liberdade de pensamento e de consciência, teve “desvios doutrinais”, como, a certa altura nos conta, a abordagem aos ensinamentos de Georges Ivanovitch Gurdjieff, referindo nele:

 

O que aprendi nesse período creio que ficará para sempre ligado à minha memória permanente. É por isso que somente o confiarei àquele que possa vir a considerar o amigo da minha essência.[11]   

 

Dá-nos conta, neste conto, de ter contactado de perto com reconhecidos pensadores da Filosofia Portuguesa, entre os quais ressalta a figura de Álvaro Ribeiro:

 

Até aos meus trinta e seis anos foi meu Mestre aparentemente só na arte de pensar. Digo aparentemente só, porque essa arte, se for bem exercida, irá transfigurar a nossa vida emocional, e até a nossa vida vegetativa, dando aos nossos automatismos a forma da liberdade.[12]  

 

Este é, no fundo, um Tratado de bem aprender a filosofar, que nos apresenta, como pedras fundamentais – Álvaro Ribeiro que nos ensina a pôr em prática uma autognose, uma metodologia para abordar a Filosofia; Leonardo Coimbra apresentando o criacionismo como resultado último da Inteligência e da Vontade Humanas. 

Duas pequenas frases, ou máximas, poderão sintetizar a riqueza filosófica, simbólica deste conto:

 

– Buscai e encontrareis. Chamai e abrir-se-vos-á.

– Saber: Ousar; Querer; Calar-se.

 

A CONFERÊNCIA

Põe no papel, recriando-os literariamente, factos, acontecimentos verídicos [na boca do povo], de cariz fantástico e sobrenatural.

Acerca de “verdades” que circulam pela boca do povo, gostaria de fazer um pequeno parêntesis sobre aquele costume de não ser politicamente nem socialmente correcto perguntar as horas em Aguiar…[13] A história subjacente todos nós conhecemos, terei inclusivamente conhecido algumas pessoas que me afirmaram terem por sua vez falado com alguns intervenientes nesse “drama”… Assim, num opúsculo publicado na “Revista Lusitana”[14], nos inícios deste século pelo Professor Doutor José Leite de Vasconcellos, denominado “Tradições Populares Portuguesas do Século XVIII contidas nas poesias (impressas) de Miguel do Couto Guerreiro”, mais precisamente nas “Satiras”, por sua vez publicadas em Lisboa no ano de 1786, assim reza:

 

Vem cahir sobre mim uma tormenta

Mais atroz, mais cruel e mais violenta,

Do que se eu perguntasse a sangue frio

Ou por Pedro Machado ao de Palmella,

Ou por Manuel de Arês a toda aquella

Pessoa que em Alcacer habitasse;

Ou se lá em Vianna perguntasse

(a de Alentejo) se era ella de Alvito;

Ou se assanhasse o povo tão maldito

De Aguiar, perguntando que horas eram?

Todos estes irados me não deram

Corrimaça maior………………………….[15]

 

NO HADES OU O ANTIQUÁRIO DE ESTREMOZ

Faz o Autor uma incursão explícita ao complexo universo da Cabala, da Filosofia, da Linguística e da Poética. Realço mais uma vez contínuas referências e apelos ao Autoconhecimento e à Liberdade de cada um perante tudo e todos.

Somente por uma demorada acção sobre si próprio no domínio da imaginação poética, é possível ao homem adquirir a virtude régia que lhe permite passar o grande abismo…[16]

 

O BATELEUR

Segunda edição de um livro saído na editora Átrio, antecessora directa da Aríon, em 1992. Trata de uma viagem filosófica ao mundo do Tarot, da Cabala, de Platão e de Aristóteles. É favor de lerem e seguirem Tomé Natanael.

 

 

INFLUÊNCIAS E CITAÇÕES

 

Só nesta edição dos CONTOS António Telmo cita acima de cinquenta autores, além de efectuar citações da Bíblia (Antigo e Novo testamento), da Kabbalah, do Zohar e do Corão, assimilando as três Religiões da Península: a Judaica, a Cristã e a Muçulmana, num sincretismo que se denota por toda a sua obra, contudo sem efectuar juízo de valor de uma em relação a outra.

Plotino, Hesíodo, Empédocles, Anacreonte, Safo, Platão, Aristóteles, são alguns dos Clássicos referidos. Qotboddîn Shîrazî, Joaquim de Flora, Dante, Espinoza e mais modernamente Augusto Comte, Kant, Goethe, Milton, Marx e Darwin. E ainda outros como William Blake, Teillard Chardin, Heidegger, Dostoiewsky, Lawrence, Aldous Huxley, Henry Corbin, Max Hölzer, Georges Ivanovitch Gurdjieff, René Guénon, Denis Seurat, James Joyce e Paul Claudel. Continuando com autores não nacionais temos ainda referências a Emílio Benveniste, Franz Bopp, Jacobson, Noam Chomsky, Benjamin Lee-Worf, Eduardo Sapir, G. G. Scholem, Diels, Ferdinand de Saussure e S. Freud. Em relação aos portugueses temos: Camões, José Marinho, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, Delfim Santos, Cunha Leão, Eudoro de Sousa, Almada Negreiros, Jorge de Sena, Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno, Fernando Pessoa, Rodrigues lapa, Thereza de Melo e António Cândido Franco. 

Influências? Apesar das influências e das assimilações culturais e literárias e filosóficas que realizamos continuamente, consciente ou inconscientemente, a originalidade e a criação acaba sempre por vir ao de cima. É o que acontece com António Telmo.

Finalmente, gostaria de mais uma vez agradecer a António Telmo o facto de ter feito o favor e reencarnar nesta época, dando-nos o privilégio de com ele convivermos, conversarmos e partilharmos estas coisas tão extraordinárias que são as palavras e os pensamentos, complicadas in extremis por esta tramada idiossincrasia portuguesa.

 


[1] Comunicação apresentada no lançamento dos CONTOS de António Telmo (Aríon Publicações, Lisboa, 1999), realizado em Évora, na sede da Sociedade Harmonia Eborense, no dia 8 de Dezembro de 1999.

[2] Lello & Irmão Editores, Porto, 1976. Referência na Capítulo III – “Conceito de razão e formas da filosofia”, na página 218.

[3] R. A. Schwaller de Lubicz – PROPOS SUR ÉSOTÉRISME ET SYMBOLE, Col. Mystiques & Religions, Dervy-Livres, Paris, 1989 (p. 9, 11 e 12).

[4] Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1987, página 109, artigo sobre a ‘Filosofia Portuguesa’.

[5] José de Almada Negreiros – POESIA, Col. “Obras Completas”, n.º 4, Editorial Estampa, lisboa, 1971 (pág. 179).

[6] “DN Magazine”, 25 de Agosto de 1991, pág. 27.

[7] Entrevista a Antónia de Sousa, in “DN magazine”, n.º 256, de 25 de Agosto de 1991.

[8] Idem.

[9] Pág. 56.

[10] Pág. 65.

[11] Pág. 67.

[12] Pág. 68.

[13] O relógio de Aguiar é uma história picaresca…

[14] Vol. VI.

[15] Págs. 205-206.

[16] Pág. 126.