VOZ PASSIVA. 21
TELMO, António, Contos, Lisboa, Aríon, 1999, 186 pp.*
Pedro Sinde
António Telmo surpreende-nos agora com um livro de contos. Cada um destes contos surge como aquelas casas antigas dos aldeões portugueses: a partir de um centro, que era a cozinha, onde se mantinha aceso o fogo do lar – como as Vestais no templo sagrado – ia-se acrescentando, ao longo das gerações, novos compartimentos, resultando o conjunto num edifício harmonioso, como se uma só pessoa o tivesse projectado e edificado. Assim, colocado mesmo no centro da casa, vai o olhar de António Telmo (o “olhar místico” como o caracterizou António Quadros) espraiando-se sobre as diferentes personagens dos contos, partindo esse centro comum a todas elas.
Cada personagem julga-se sozinha até encontrar esse ponto comum que a une a uma série de outras personagens; aí ela percebe que os acontecimentos são regidos e unificados por algo que a transcende e orienta pelo meio de “acasos” que passam a ser vistos como efeitos.
Há um jogo mágico de forças que, antes de se realizarem como destino, são pensamentos. São forças que atam e desatam as pessoas umas às outras, forças sempre precedidas por sinais anunciadores dos acontecimentos, sinais que são a linguagem do mundo – por exemplo o trovão em Os Dioscuros ou, no mesmo conto, o facto de Tiago pensar, a certa altura, constantemente em Jacinta, e esta lhe aparecer logo de seguida; é o caso ainda da coincidência de, em A Arte de Olhar, o protagonista se ter visto privado dos óculos, mesmo no período em que lhe é dada a oportunidade de experimentar o método do Dr. Bates. A linguagem do mundo aparece (de) cifrada de modo claro em A Minha História. Que o leitor leia atentamente este relato verdadeiro. Nestes contos há sempre uma íntima união entre as personagens e o que as rodeia, como se tudo convergisse para o mesmo, para a realização do mesmo, como no lar a cozinha.
O mesmo fio misterioso que perpassa os seus livros de Filosofia Cabalística, perpassa aqui estes contos. São experiências, vivências e pensamentos que nascem ora sob a forma de ensaio ora sob a forma de contos, como se estes últimos fossem o laboratório da luz filosófica, onde as concepções de António Telmo se testassem. Por isso nos seus livros de filosofia se entrançam já contos com ensaios – por exemplo Filosofia e Kabbalah ou o Horóscopo de Portugal.
O conto é, tantas vezes, a melhor forma de transmitir doutrina, porque aí os conceitos são obrigados a sair do mundo noético do espírito quase puro para incarnarem, como o Verbo exemplar, e ganharem vida terrena. Esta herança do Álvaro Ribeiro de A Razão Animada é aqui praticada pelo seu discípulo, conforme se diz no Prolóquio a Filosofia e Kabbalah: “No Liceu Aristotélico, que funcionava na Brasileira do Rossio, Álvaro Ribeiro ensinava, no ano simbólico de 1957, que a filosofia é uma arte, a Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela, o que pode explicar também como, num livro de Filosofia e Kabbalah, apareçam poemas, aforismos, contos.”
Mas António Telmo não escreve os contos como quem ensaia em laboratório. Os contos surgem da sua vida pelo ímpeto criador, voluntário ou involuntário; surgem como surge o céu e a terra e as flores nela, nesse palco incomensurável de comédias e tragédias. Assim vão sendo dados ao autor, vivendo na sua alma em gestação para serem depois concebidos e incarnarem no corpo estreito ou largo (depende do leitor) das letras.
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*Publicado em Teoremas de Filosofia, n.º 2, Outono de 2000.