VOZ PASSIVA. 18
Editado com a chancela da Átrio (José Manuel Capêlo), O Bateleur de António Telmo foi lançado no dia 10 de Dezembro de 1992, na Galeria Nasoni, em Lisboa (na Av. Columbano Bordalo Pinheiro), tendo sido apresentado por Afonso Botelho. Viria, mais tarde, a ser incluído nos Contos, saídos a lume na editora Aríon, do mesmo Capêlo, em 1999.
Naquela sessão, e também com a chancela da Átrio, foram ainda lançados os livros Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, apresentado por Artur Anselmo, e Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, apresentado por Francisco Soares.
Então jornalista do Diário de Notícias, António Carlos Carvalho, que esteve presente na sessão (tal como, por exemplo, Natália Correia), escreveu de O Bateleur:
«Le Bateleur» é a primeira carta do Tarot, como se pode ver na capa do livro de António Telmo. E constitui a chave que foi dada ao autor (pelo seu «alter ego» Tomé Natanael) para decifrar o famoso retrato de Pessoa feito Almada Negreiros. Todo o texto (apenas meia centena de páginas, mas deliciosas de ler e profundas nos conhecimentos que encerram e nos transmitem) conduz o leitor a domínios que são caros a António Telmo desde há muitos anos e que fazem dele o mais esotérico (e por isso mais interessante), discípulo de Álvaro Ribeiro, sendo assim o mais original pensador das últimas gerações da Filosofia Portuguesa (que existe e recomenda-se), como salientou Afonso Botelho na apresentação do livro. Um texto de um filósofo do espírito para despertar os que conseguiram sair do adormecimento encantatório em que foram mergulhados pelo chamado «mundo moderno».
É o texto da apresentação de O Bateleur, de Afonso Botelho, que dedicou a António Telmo -- “Ao António Telmo com um abraço do amigo Afonso Botelho” -- o respectivo original dactiloscrito, hoje guardado no espólio do filósofo, que em seguida se publica.
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Lançamento de O Bateleur - Dez. 92
Afonso Botelho
Primeiro o Autor. Porque a obra que hoje aqui apresentamos, não obstante a forma narrativa por que se exprime, constitui uma teoria de todos os seus trabalhos anteriores. O leitor que não lhes apreendeu o sentido tem, se se deixar conduzir pelo Bateleur, a oportunidade de agora o apreender. E se o seu espírito não se satisfizer, poderá ainda continuar viagem com este barqueiro em direcção ao próximo livro de António Telmo, já que um conto exemplar não se esgota por ser exemplarmente contado.
Por mais do que uma via, o símbolo pictórico ao significado ideal, António Telmo recupera a figura do Bateleur, trasladada pelo negativo para o retrato de Fernando Pessoa. E recupera-o como Hermes-Mercúrio, conciliador em si mesmo das oposições, mítica personalidade que tanto pode significar o poder, a vontade firme, como as máscaras do ilusionista.
No seu labor criativo, o nosso Autor tem andado sempre próximo do deus hermético, compreendido na sua complexidade; Almada Negreiros seguiu de perto o ilusionista, o bateleur saltimbanco, no duplo sinónimo que encontramos em qualquer dicionário Francês-Português.
Voltemos, porém, ao Autor, para dizer dele o que nenhum crítico literário está em condições de dizer: Das últimas gerações da Filosofia Portuguesa ele é o pensador mais original. E com este juízo não o estou valorizando mas apenas caracterizando-o entre os seus pares. Digo que é o mais original, como poderia dizer que António Quadros é o mais inspirado, Orlando Vitorino o mais racional ou António Braz Teixeira o mais essencial. Tais atributos só fazem sentido, todavia, desde que os consideremos à luz de um movimento que tem o pensamento em língua portuguesa como o mais filosófico dos pensamentos. Bastaria, portanto, a dedução deste universo do pensamento para que a originalidade que atribuímos a Telmo tomasse um sentido oposto ao que o uso literário lhe fixa e para o qual a origem se restringe à causa imediata da mudança, ao aparecimento do diferente, da imagem fugidia e efémera.
A origem que alimenta a narrativa, agora apresentada, não é causa imediata de mudança alguma que os nossos olhos possam detectar. É, pelo contrário, a fonte que nasce entre a imagem primeira, do uno e eterno, e a sua expressão metafísica. Ela manifesta-se ao nosso olhar, desenganando os nossos olhos.
Tal prodígio explica o comportamento dos livros de António Telmo nas nossas bibliotecas pessoais. Tenhamos a coragem, de confessar que as suas lombadas, quase sem espessura, brilham e sobressaem entre os costados volumosos e baços dos tratados ou manuais, parecendo até que tudo o que eles tratam e nós manuseamos pede constante socorro àquelas “miniaturas preciosas”, como chamava Sánchez Albornoz aos livros de Merêa, porque nelas está escrito o que ainda não tinha sido dito nem tratado, sendo verdadeira a secretude que anunciam para a História de Portugal, para a Gramática da Língua Portuguesa, para os Lusíadas ou para a Filosofia e Kabbalah.
É como se nessas poucas páginas se inscrevesse um roteiro de tesoiro escondido, é como se nelas encontrássemos as regras de um jogo humano-divino, que tanto pode valer uma liturgia religiosa, em que o logos inteiramente substitui a vontade, como um jogo de cartas regido pelo best, que tudo ou nada vale.
Ao primeiro jogo escusam-se os moralistas, que preferem a decisão judicativa à liberdade de espírito; ao segundo furtam-se os racionalistas extremos, que a tudo querem atribuir valor imutável, ou os materialistas, que não admitem carta principal em nenhum jogo humano.
No entanto, nestes livros se compreende que não existe qualquer saber lúdico, ou do espírito, sem padrão que assuma o Nada, nem valor que não gere infinitas combinações.
Esta plurivalência dos termos, regra de oiro do secreto, cumpre-se ao longo do texto que hoje vem à luz, ou da Luz, a começar pelo primeiro conto, que emerge da sentença popular: “quem conta um conto acrescenta um ponto”. E o ponto desdobra-se em vários sentidos, que não lhe alterando a essência, lhe permitem que seja contado infinitas vezes, como se novidade fosse de cada vez. Este é o ponto que acrescenta ser ou o renova – é o ponto da tradição, guardado na gaveta do Antiquário, Tomé Natanael e entregue depois ao hermeneuta, cujo nome descende etimologicamente de Hermes, cristianizado e santificado.
Ponto será também o grau de conhecimento a que o iniciado se eleva. Ponto é com certeza o excesso de luz que o narrador deixa no conto de novo narrado, e, igualmente, a situação do olhar – o ponto de vista – do que narra, propõe ou argumenta. Ponto é um sinal de escrita que dá termo visível a um conceito; ou é sinal inefável que dá início à geometria sagrada, de interpretação infinita e oculta.
Mas o ponto-chave do Bateleur é aquele que medeia os dois grandes temas deste livro, os quais, por essa mediação ou iniciação se transformam nos dois seguintes filosofemas: a magia da primeira carta do Tarot, trasladada para o retrato de Pessoa deu o poder criador do hermeneuta; a unidade essencial da Cabala e das Categorias de Aristóteles deu a adunação do pensamento grego à tradição sófica hebraica através da língua portuguesa.
Estes dois mundos de conhecimento apresentam-se em continuidade temática e, por integração, acabam completando um só universo.
O primeiro, através de subtil dedução etimológica, faz participar o Autor do poder mágico de Hermes, e o hermeneuta, de intérprete de enigmas, passa a ser ele mesmo criador de enigmas.
Embora vários e aparentemente díspares caminhos sejam percorridos, desde o científico ao onírico, desde o lógico ao intuitivo, desde o teatral ao rigorosamente filosófico, todos concorrem para tornar exemplar e único o segundo filosofema.
Interpretado do ponto de vista do drama existencial do Autor, isto significa que, desde a Gramática Secreta, em que está meridianamente proposta a Cabala de Portugal, como síntese da hebraica e da cristã, António Telmo vem percorrendo a sua estrada de Santiago, na demonstração de que o português tem a energia que promove o encontro do pensamento grego com o pensamento do Ocidente, corrigindo assim a ideia de Heidegger de que só “a técnica constitui o verdadeiro triunfo da metafísica ocidental”.
Tal como outros pensadores do centro da Europa, este filósofo não interpretou a afinidade que perdura no mistério da civilização mediterrânica e no qual a luta religiosa entre judeus e cristãos esconde uma conciliação subjacente dos mútuos saberes, que a língua e filosofia portuguesas singularmente consubstanciam.
Conhecendo esta fonte viva do pensamento não será efectivamente possível afirmar que a técnica é o triunfo da metafísica ocidental, nem que seja inviável uma irmandade dos povos no Espírito, superadora da linguística que concebe a fundação exclusiva do ser pela palavra, como propõe aquele pensador germânico.
O convívio espiritual dos idiomas, e por ele o convívio dos saberes, está secretamente guardado na tradição, da qual os livros de António Telmo levantaram o primeiro véu.
Decerto o Autor desejaria que mais leitores tivessem merecido os benefícios da revelação completa, cônscio da missão que cabe aos que pensam em língua portuguesa, missão que ele assumiu desde que em 1964, no seu primeiro livro, começou a dar-nos o resultado de uma reflexão funda e iluminada sobre os mistérios do falar e pensar humanos.
Possivelmente sentindo aquela solidão para que a sociedade portuguesa remete os filósofos do espírito, António Telmo dispôs-se a fazer mais uma tentativa de encontrar novas vias de acesso às verdades que se ocultam na nossa tradição judaico-cristã e elegeu o conto como o género que mais adequadamente poderia transmitir-nos essa mensagem porque tradicional é a sua própria voz.
Lendo o Bateleur confirmaremos como resultou benéfica essa tentativa.
Lisboa 3/12/92