VOZ PASSIVA. 143

21-08-2024 00:00

Partir antes de si mesmo

Risoleta C. Pinto Pedro

O capítulo “O Esoterismo d’Os Lusíadas” do III volume das Obras Completas, onde António Telmo afirma, sobre Camões, que «nasceu depois de si próprio», é como muitas outras páginas, de uma actualidade impressionante. Transcrevo o que acrescenta:

«Vê claramente a decadência da Pátria. Espalha pelas estrofes de Os Lusíadas a crítica à nobreza, ao clero e à “plebe ruda”. Chega a pensar numa expedição do Amor e das suas várias potências, à terra portuguesa dos homens, que curasse pela medicina das chagas ou da iniciação, de acordo com as possibilidades de cada um («conforme a qualidade for das chagas»), uma sociedade em que, já como hoje e ontem, todas as leis eram feitas contra o povo. Ter-se-á associado clandestinamente a outros, tentando voltar as coisas. As prisões, o exílio, a perseguição a que foi sujeito no Oriente, ainda não receberam uma explicação correcta, mas podem recebê-la, a partir de agora, se soubermos decifrar nos devidos termos o seu amor com Natércia. Com Natércia ou Catarina, a Pura.»

Não confunde com o povo, contra quem «todas as leis eram feitas», a «plebe ruda» e realmente não são o mesmo. A «plebe ruda» faz parte da «sociedade corrupta, semimorta, sem ideal, apagada, vil e austera» formada a partir de 1513. O povo é, como hoje, algo distinto. Esta descrição que faz da sociedade de então parece assustadoramente actual.

A minha grande interrogação é: como é que Portugal ainda resiste? Talvez por ter como Velho Testamento, como alguém disse, Os Lusíadas: cristão, judeu e árabe, apesar de «os judeus que não fugiram do país» terem tido de se converter ao catolicismo. «Entre as duas crenças» reinou a inquietação, o temor e a divisão.

E se a Inquisição considerava a inteligência «o principal indício de judaísmo», Telmo considera-a, em outros textos, o principal indício de bondade.

Partiu num dia 21 de Agosto, há catorze anos, antes de si próprio, o filósofo que também chegou depois de si mesmo.

E «viu claramente a decadência da Pátria».

 

21 de Agosto de 2024