VOZ PASSIVA. 137

11-10-2023 10:25

Aproximações ao pensamento poético de António Telmo - notas iniciáticas

Francisco Soares

 

 

 

‘‘language was not a

mere string of words. It had a suggestive power well beyond the immediate

and lexical meaning. Our appreciation of the suggestive magical power of

language was reinforced by the games we played with words through riddles,

proverbs, transpositions of syllables, or through nonsensical but musically arranged words...”

(Ngugi wa Thiong’o, Decolonizing the mind, 1986)

 

 

 

Nota pessoal

António Telmo viveu em Moçâmedes (Namibe), cerca de cinco anos, na primeira infância. Nesses casos é comum que o sol do deserto sul africano fique para sempre dentro da cabeça das crianças. 

Conheci-o pessoalmente em Portugal e nunca falámos disso. O que na sua obra me interessa é a definição de pensamento poético e a consequente Arte Poética - mítica, heterodoxa, cabalística e intimista (numa aceção muito particular). Andando com ela, experimento um caminho diferente do que os meus leitores habitualmente percorrem nestes ensaios. 

Não me interessei nunca por filósofos e poetas que não conheceram nem experimentaram a vida, a surpresa, o desafio de peito aberto ao perigo. Acho que falsificam a vida, logo a verdade. São filósofos de chinelas e poetas de pantufas. Não querem sentir a temperatura sequer. Mas agora me despeço do sátiro. Usarei palavras sérias.

 

Começo pelo jogador, pelo caçador, pela experiência do perigo e do faro. Refiro-me a que António Telmo era jogador exímio (de cartas, snooker e bilhar), a par de caçador intuitivo e doutrinado. Por isso vou seguir atrás dele, eu, minha pessoa, ao mesmo tempo cão e macaco. Porque era António Telmo um notável contista? O que vou ler-vos procura uma resposta. 


Abro parêntesis para uma nota confessional. Entre os pensadores mais elevados do movimento da Filosofia Portuguesa, identifico-me bastante mais com José Marinho, procuro seguir “a via iniciática de olhos bem abertos”. Está na base do anarquismo místico e da monarquia poliglótica esta postura. São duas emanações de que o nosso evocado e invocado me parecia dar nota subtil: anarquismo místico e monarquia poliglótica. Torno minhas as palavras do arqueólogo Manuel Calado: “se tivesse de definir as posições políticas do António Telmo, eu diria que ele foi, sem o assumir, um libertário”. Percebo, talvez mal, que Telmo nunca tenha explicitado isso: era demasiado restritivo para um verdadeiro libertário do pensamento. 

Fecho parêntesis para uma última nota: o texto a seguir é uma continuidade do que fui lendo. Uma prossecução criativa, por um processo de que também falamos adiante. 

 

Arte poética

Também na caça e nas cartas houve silêncios, intuições e mestres (irmãos mais antigos). Aos pés do Mestre as duas colunas do Trono, sendo Leonardo o Trono, Marinho e Álvaro as colunas (porque um se nomeia pelo apelido e outro pelo nome próprio? Não consigo intuir). Álvaro Ribeiro, o aristotélico, e José Marinho, o neoplatónico. 

“Os dois defendiam, porém, o valor da imaginação e da intuição, e ensinavam que o princípio da filosofia é a ideia de Deus.” Experimentada? “A ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria” – diz Telmo que segundo Leonardo Coimbra.

 

A teoria poética (de criação, pensamento e leitura) de António Telmo vai, portanto, alicerçar-se na imaginação e na intuição, tendo sempre como sombra tutelar e alimento “a ideia de Deus”, ou seja, “o princípio”, a cabeça, a Arka. E trazendo-nos sempre o marulhar obscuro e estruturante dos ritmos, das vibrações sonoras, marimbas e flautas.

Sendo a sua uma poética libertária do conhecimento e o conhecimento sendo poético, pelo peso de ouro que liberta as visões e os escravos, “a analogia é o método ocultista de conhecimento, ao pretender pensar o invisível pelo visível, encontrar a espécie e o género”. É o que faz a arte poética através da palavra.

 

O que é a palavra? Palavra como captação, palavra enquanto energia e trânsito.

Cito o nosso recordado e relembrado António Telmo: “as palavras, como forças de incorporação e de subtilização, atuam no plano mental, substantivando e verbalizando as energias.”

 

Como lavrar a palavra?

Essas palavras poéticas existem por ritmos, como tudo na vida, desde o imensurável ínfimo à relação inédita com o superior imensurável que é a transcendência. Por esse “tudo na vida”, ritmado, a poesia serve a recordação, a lembrança, a saudade. Do mais ínfimo acidente ou pormenor, elas nos levam para algo extraordinário: a presentificação.

 

O uso doutrinado dos ritmos ativa as imagens do pensamento e do movimento, organizadas por uma gestalt holística. “Dupla é, pois, a função do ritmo: – de invocação e de sugestão” (Arte poética, p. 40). As oscilações rítmicas articulam a poesia, a palavra-verbo, com as energias subtis e fundamentais cujas variações, mínimas, estruturam a vida no universo-multiverso e, portanto, no nosso corpo-memória, que é a sinédoque do mundo animado.

Essa articulação é uma concordância dinâmica, simultânea à nobreza da perceção da música dos mundos. A simpatia de que fala Telmo, penso que se sustenta no acordo rítmico, na oscilante e contínua vibração que perpassa por nós todos, aqui, por exemplo.

 

Há que pensar ainda o ritmo sonoro, das alternâncias entre sons e pausas, e o da luz, ou das alternâncias, aparentemente contrastivas, do luminoso e do obscuro. Ou seja, levar em conta o ritmo das imagens a par e de cordo com o dos sons, ambos articulados pela verbalização, no alentado sentido ‘télmico’ da palavra. A verbalização, simultaneamente, apaixona e ativa.

 

Matéria e memória, a poesia deriva “daquela preexistência visionária” que é a verdadeira origem da única Poesia. “A oposição adâmica de um nome a um ser torna-o exterior a nós, mas designá-lo pelo verbo equivale a captar por dentro a energia interior que nele se manifesta, a vê-lo interiormente, como se fosse uma emanação do nosso próprio ser.” (Arte poética, p. 35) Neste apurado sentido ascético e sensível, o poeta é um possesso e um visionário, inspirado e fantasmático, ativando potências e potenciando o que parecia acidental por reconhecimento, ou nobreza na via da máscara, da pessoa. O nobre poeta, o único poeta verdadeiro, aquele que não é de papel, conhece, por relação, o que se esconde e o que se mostra, seu ouvido interno captando o marulhar das águas primordiais ao mesmo tempo em que alumbra.

 

A palavra-verbo incorpora, por tanto, a imagem. A imagem pode ser a pedra filosofal: o poeta lhe dará música. “As imagens são dispositivos de captação de energias subtis”. (Arte poética, p. 44) Alquímicas palavras.

A analogia é também um complexo de imagens, ou, se preferirmos, uma imagem composta e complexa. Importa, portanto, considerar, a relação entre a palavra-verbo e a imagem – na esteira do que ele próprio fez ao longo da vida.

 

Entretanto, “superior à analogia é, para Bergson, a visão direta, ou a consciência direta”.

O que pode ser a consciência direta? A morte viva. A morte vivida em nós ao mesmo tempo que a vida.

“Não significa isso que queiramos propor uma poesia filosófica, mas temos de dizer uma filosofia poética.” – ou seja: ativa e meditativa, secreta e patente no mesmo passo. Criatividade inesperada, atenção dinâmica. Ir por aí. Verso, inverso e converso.

        

“Todas as manhãs” acordava antes de nascer o sol, procurava um lugar isolado para meditar: “harmonizar a luz refletida do sol com a minha essência.” Repito uma pergunta antiga: o que fazer?

A negação do mundo intermediário, da sua realidade, existência e objetividade, pela sua conexão com a fantasia, a mística, a intuição e o irracional, teria como consequência, a tornar-se completamente vitoriosa, a ruína da poesia e da filosofia e a suspensão do movimento essencial da alma que aspira à verdade. Esqueçamo-la, como quem vê uma figura envolta em mantos a sumir-se na poeira do caminho longe. Esqueça esse homem. Mate-o. Harmonize a luz refletida do sol e a sua essência caminhando.

 

A leitura

Ler é colhêr, com acento circumFlexo. O ato criativo é, simultaneamente, emergência e imersão, movimento que supera a nítida perceção do mesmo e do outro, como se a própria vida compusesse um oxímoro. Suportamos, carreamos, levamos, transportamos, neste mundo vivo, por intuição e perceção, o outro mundo, que está aqui, no meio de nós, connosco, reunidos em seu Nome, o que não conseguimos dizer nunca.

“Há uma constante nas sete bizarras interpretações, o serem todas de desvendamento do que está à vista e que por estar à vista ninguém vê.” Portanto ninguém nomeia (O livro das minhas invenções).

 

Como ler? – ao “realizar em nós um estado de vivência interna da natureza”, a Obra presente, a partir da qual sentimos a natureza como o «Todo Um»”, o “Caos-Mundo”, o único multiverso. A leitura anuncia, denuncia e constitui aquela 

 

 

Mágica serpente que infinitamente se devora a si própria (Arte poética, p. 70).

 

 

A experiência da serpente é também a experiência da colheita, a leituria. A compreensão da Obra enquanto manifestação e transmutação da Alma ou pela Alma, sob o sopro do Espírito, de que só nos apercebemos errante, fugidio, depois de ele passar, quando as folhas tremem ou vibram e nem sabemos bem porquê, sopro subtil que já se não vê, mas opera.

 

Perguntam-me os fantasmas que há em mim: então mas o ritmo, as imagens? Acho que nos falam da fixação e do movimento, poesia-relação que, animada, aviva “o sistema ósseo, o sistema nervoso e o sistema sanguíneo sempre postos em correspondência com determinadas formas do mundo subtil e psíquico.” (Arte poética, p. 71).

 

Em Antero de Quental, a imagem não é vivência ou símbolo, mas alegoria. O exemplo mais alto de filosofia poética é o de Leonardo Coimbra, aliás o pensador mais odiado por Sérgio e por Salazar. Nele, a ideia é a flor enorme que abre na floresta esplendorosa da imaginação; a ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria. E o ritmo estrutura a prosa por uma prosódia que propaga, aconchega e toca, obscura, por em, comunicante.

 

Nessa poética, e gnose, da leitura, a interpretação nunca perde o sentido do nome e do verbo, da etimologia e da filologia.

 

Por exemplo a sua recomposição do episódio do Adamastor a partir da bizarra etimologia do nome do Titan: Adão Astral. Intertextualiz0:

As três estrofes finais do Canto IV de Os Lusíadas, por essas e por outras, contendo as últimas imprecações do Velho do Restelo, que são a outra face da moeda em que está o Adamastor. Faz-nos pensar, esta leitura.

 

O Velho (Ancião?) invoca a sua Lei, a Lei justa, para condenar o Titanismo, dando como exemplo negativo o de Prometeu, roubando o fogo do céu para o meter no coração do homem. Fogo de altos desejos que move o coração onde arde. Faéton, que roubou o carro alto do pai (Apolo, o Sol) e Ícaro procurando atingir o Céu voando para fora do labirinto da vida, são segundo e terceiro exemplo do que não se deve fazer, cometimentos que vêm na esteira do pecado original de Adão, seduzido por Eva, seduzida pela serpente, a colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Altos e nefandos são, segundo o Velho, tais cometimentos. Paradoxalmente, altos e nefandos.

 

Todavia, a Nova Lei que veio ou virá substituir a Velha Lei, é a da Graça e traz em si o movimento para o Amor. As imprecações do Adamastor coincidem com as do Velho. O Amor é sempre adolescente.

O Velho do Restelo como o Velho Testamento, em contraposição com os desvendadores do futuro. Uma sabedoria respeitável e ressequida contraposta à aventura do perigo e da experiência.

O Amor é a invenção por analogias e osmoses, avivando em nós a vocação de religar, unir, reunir, apaixonarmo-nos.

Aqui se manifesta o que vinha oculto no meu texto: o Amor, o que religa. Nessa exata medida, pitagórico e religioso.

Outros dois exemplos ainda para a ativação da teoria da leitura de António Telmo. O superior: O Bateleur. Não nos assustemos: o inferior (o que vem de baixo para cima): a interpretação da fotografia, depois da última lição de Leonardo Coimbra, na introdução inédita à Filosofia e Cabala. Por arrastamento, no mesmo texto, a interpretação do fresco de Rafael: A Escola de Atenas.

  

Fui

Falei do que me interessa. O caminho que percorri, lacunar e voluntário ao mesmo tempo que inesperado, acaba aqui, dando sinal de “onde o infinito se recolhe em si”. 

 

 

(o sítio Voz passiva: António Telmo Vida e Obra foi muito consultado para compor este texto. Além dele, dois livros do autor foram várias vezes lidos: Arte poética e Le Bateleur. Outros também, mas menos vezes - com particular intensidade, entretanto, Filosofia e Kabbalah Seguida de "Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica" e Outros Estudos)