VOZ PASSIVA. 136
A anteceder a sessão “António Telmo em Évora”, que se realiza no próximo sábado, dia 7, a partir das 15:30, no Auditório do Convento dos Remédios, em Évora, publicamos hoje o testemunho que, sob a forma de uma carta ao filósofo da razão poética, Armando Carmelo nos deixou de António Telmo.
Telmo e Carmelo conheceram-se em 1965, em Estremoz, numa tertúlia sediada no célebre Café Águias d’Ouro; mas foi no Redondo, a partir de 1971, que ambos estreitaram decisivamente os laços da sua amizade, empreendendo a criação da Escola Preparatória do Redondo, “a primeira escola democrática de Portugal, antes do 25 de abril”, no dizer de Telmo, que foi o seu primeiro director.
O texto, inédito, que hoje se publica foi lido pelo seu autor em 15 de Novembro de 2014, durante a sessão de apresentação de Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo na Biblioteca Municipal de Redondo, sediada no belo edifício da primeva Escola Preparatória desta vila alentejana. Agradecemos a Elísio Gala, membro do nosso Projecto, a obtenção, junto da família de Armando Carmelo, do respectivo manuscrito e da autorização para a sua publicação e o auxílio que nos prestou na fixação do texto.
Armando Carmelo, sentado, durante a apresentação de Cartas de Agostinho da Silva para António Telmo, em 15 de Novembro de 2014, na Biblioteca Muncipal do Redondo
Carta para António Telmo
Armando Carmelo
Meu caro António Telmo
Imagina lá para o que hoje me havia de dar… Escrever-te uma carta como sempre desejei fazer a dar-te conta dos meus pensamentos e a lembrar-te da nossa aventura conjunta de fazer uma escola na Vila de Redondo.
Conhecemo-nos nos inícios dos anos 60 do século passado. Sítio? Uma mesa no Café Águias de Ouro sede de uma alegre tertúlia que se dedicava à leitura, à conversa, à troca de ideias e a estranhas incursões no campo das artes divinatórias.
Do grupo, faziam parte, além de nós dois o Malaquias Pimenta, ao sábado, quando se deslocava a Estremoz para dar consultas de odontologia, o escultor Rocha Correia que te acompanhava nas tuas aventuras cinegéticas, o advogado Rodrigues Pereira, especialista em grafologia e em hipnotismo (tinha mesmo um hipnotizado de serviço que nas horas vagas se entretinha a arranjar aparelhos de rádio), o Rui Pacheco que nos intervalos da venda de carros se dedicava à fotografia, o Aníbal Alves meu especial companheiro e amigo, homem de sete ofícios e livreiro encartado.
Tu dedicavas-te mais ao domínio das palavras, escrevias livros de leitura atraente e encantatória. E pensavas em silêncio. Por vezes com tanta intensidade que não precisavas de falar para dares a conhecer os teus pensamentos.
Por essa altura, a actividade do meu grupo restrito de amigos dedicava-se de corpo e alma ao estudo e divulgação da nossa actividade cineclubista. O grande impulsionador dessa actividade frenética fora o Tiago Janeiro Acabado, professor da Escola Secundária que nos tinha levado à criação do Cineclube de Estremoz que não limitava a sua actividade a meras sessões de cinema para sócios mas antes a alargava a exposições, conferências, encontros, edição de escritos e participação activa na imprensa local – Brados do Alentejo, Jornal de Estremoz e Eco de Estremoz.
Não me lembro de ter encontrado em ti grande entusiasmo pela arte cinematográfica e poucas vezes incluí o meu entusiasmo pelo cinema nas nossas conversas.
Falámos, isso sim, muitas vezes e com muito interesse teu no estudo da ASTROLOGIA.
Chegaste mesmo a fazer-me a minha carta do Céu com base na qual o José Luís Conceição Silva, grande entendido em astrologia e a meu pedido, me predisse que eu faria muitas pequenas viagens e nenhuma viagem de vulto. E como sabes assim aconteceu, pois passei trinta anos da minha vida a trabalhar numa biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian e todos os dias eu fazia uma pequeníssima viagem.
Um dia, em 1966 partiste rumo a Brasília. Por convite de Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva foste passar cerca de três anos como docente do Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília, donde regressaste em 1969.
No dia 28 de Fevereiro desse mesmo ano houve um sismo intenso que nos encheu de pavor, a mim em Estremoz onde continuei a viver e a ti em Lisboa para onde já tinha regressado.
Voltaste a Estremoz e procuraste encontrar-me para me falar desse susto que também a mim me tinha perturbado. Fomos a Cáceres em passeio. Eu, o Aníbal e tu.
Conversámos sobre a vida e sobre o muito que se passara durante esse interregno e recordo-me de te ter falado do cansaço que me avassalava numa actividade que embora com um importante papel no panorama cultural do País se ia tornando pouco a pouco demasiado cinzenta.
E foi então que, como por artes mágicas, me propuseste colaborar contigo nessa empresa aliciante de fundar uma nova escola na Vila de Redondo.
Com que alegria eu aceitei o convite!
A empresa envolvia alguns riscos. Mas amparámo-nos mutuamente na sua resolução.
Os poderes instituídos locais torciam-nos o nariz. Dois desconhecidos “barbudos” encarregados de abrir uma escola oficial? Que estranhas modernices iriam implantar e que velhos interesses não iriam confrontar?
A escolha do edifício obrigou-nos a vários passos e muitas preocupações.
Com algumas ajudas já nos veio parar às mãos este velho palacete pombalino situado na antiga Rua de Évora com traça do arquitecto-brigadeiro Manuel da Maia, engenheiro do Reino em 1754 e co-autor de entre outras grandes obras – as do Aqueduto das Águas Livres e as da cidade de Lisboa destruída pelo terramoto de 1755. Casa senhorial que ultimamente servira de habitação ao antigo Director da Torre do Tombo, o redondense Dr. João Martins da Silva Marques.
Nada mau. Porem, como transformar tulhas para armazenamento de cereais e adegas térreas carregadas de antigas talhas para armazenamento de vinho em salas de aula?
As obras que logo começaram e se prolongaram pelo largo período estival proporcionaram soluções de consenso entre as várias partes – tu como futuro director da Escola, os mestres de obras e os elementos da comissão de pais de alunos que entretanto tinha sido criada. Uma azáfama de todo o tamanho.
Pouco a pouco tinha sido formado o quadro do pessoal docente da futura escola. Recordo os seus nomes: D. Maria Ângela Quintas, Maria Angélica Palmeiro, D. Maria dos Anjos, D. Maria Emília Caeiro, Padre Póvoa (ou o petranca[1]) Padre João de Deus, D. Maria Luísa Silva, D. Celeste Marouvas, D. Ana Barradas, D. Preciosa, D. Olga e Maria José Cardoso e como professor de História o Dr. Teófilo Costa, o prof. Fonseca e o prof. Soares.
E já agora para que fique exarado em carta e não em acta o pessoal da Secretaria – Maria Antónia Figueira e Adelina, as cozinheiras D. Ana Rosa e a Leocádia e as ajudantes de outros serviços: a Balbina, a Manuela e a Mariana Rita.
E os nossos alunos de que quero lembrar alguns nomes: - O Marovas, o Chico dos Foros, o Dominique, o Domingos Sarnadinha, a Joana Mataloto, a Maria do Céu Gamé, a Júlia Basílio, a Zeza Portel e tantos outros de que não me é possível lembrar os nomes.
Lembras-te dos trabalhos em que nos vimos metidos a comprar o fogão industrial para a cozinha da cantina, os partos e os talheres. E dos trabalhos em que nos vimos metidos quando fizemos sentar na mesma sala para refeições conjuntas alunos e professores?
E as marcas secretas de que só nós sabíamos o significado e a existência. A estrela de David inscrita no chão do piso térreo e a árvore sefirótica com a indicação das várias disciplinas e a grande roda de carro de parelha suspensa da parede da escada de acesso à área nobre do edifício qual carta do céu gigantesca que marcava os destinos da Escola.
O REDONDO É UMA RODA
A ESCOLA UM MOVIMENTO
A nossa escola, a escola do Redondo foi um mundo renovado que conseguimos abrir no seio de uma sociedade medieval de senhores e servos onde ainda imperava o castigo corporal como método de repressão às liberdades.
De vez em quando Sesimbra chamava por ti. E o apelo era quase sempre irresistível. E lá íamos. De uma vez levaste-me ao Castelo. Aí me deste a conhecer um dos teus grandes amigos – o castelão Rafael Monteiro.
Na volta e depois de refastelados com um belo bife de espadarte (no restaurante de um amigo que, de quando em vez, aparecia no Redondo onde vinha comprar vinho que consumia no seu estabelecimento), na volta, dizia, passávamos grande parte do caminho a cantar as velhas modas que ambos conhecíamos.
Quero ainda recordar-te dos passeios que dávamos aos domingos na Serra d’Ossa onde íamos de quando em vez dar liberdade aos teus cães de caça e apanhar espargos que depois cozinhávamos com ovos na cantina da escola.
Hoje, 15 de Novembro de 2014, estou no velho edifício da escola que ajudámos a pôr de pé, agora transformada em Biblioteca Municipal, a evocar a nossa amizade numa sessão dedicada ao estudo das cartas que Agostinho da Silva te enviou.
Ele também visitou a nossa escola. E soube por ti que também ele elogiou o trabalho que aqui desenvolveste.
Tenho saudades do nosso velho convívio e do tempo que aqui passámos juntos.
Ao longo dos anos muitos dos nossos antigos alunos me têm falado da escola que frequentaram e do respeito e amizade que nutrem por ti. Julgo que te vai saber bem, leres isto.
Teu velho amigo de sempre
Armando Carmelo