VOZ PASSIVA. 135

30-09-2023 12:09

António Telmo, memórias do tempo da Revolução

Manuel Calado

 

Tive a sorte de conhecer o António Telmo, nos finais de 1973, no Redondo, quando já se sentiam os ventos da mudança que, como uma bênção, aos meus olhos juvenis, chegaria, meses depois. No Redondo, onde ambos fomos parar, inaugurando a Escola Pública, na vila, na onda da reforma Veiga Simão. Ele, como director da Escola Preparatória, eu, como professor na Secundária, que tinha como Director outro personagem notável, o Manuel Patrício. Eu, ainda quase imberbe, saído pouco tempo antes das fraldas da serra d'Ossa; o Patrício, vindo do Liceu de Évora, onde tinha ganho notável estatura como professor de Filosofia. O Telmo, vindo uns anos antes, de Brasília, onde foi assistente de Agostinho da Silva. Nos três anos em que fui professor no Redondo, onde criei, aliás, raízes fundas, aprendi muito com vários outros personagens interessantes: lembro, sobretudo o Armando Carmelo e o Vicente Roma, ambos colegas na Secundária. Fora da escola, o clã Salomé Vieira estava, nessa época, muito ativo, no Redondo. O Vitorino, já artista bem conhecido, ia e vinha, mas todos os outros ainda por lá andavam. Desse caldo, me alimentei com gosto e proveito, mas o prato forte foi, sem dúvida, o António Telmo.

Antes do 25 de Abril, retenho dois episódios, algo humorísticos, de que o António Telmo foi protagonista e que me deixaram muito impressionado. Era habitual, nesse tempo, os professores almoçarem nas cantinas, no mesmo espaço que os alunos. O vinho à refeição não era permitido. O António Telmo, como diretor da Escola Preparatória, decidiu substituir os jarros e os copos da cantina, que eram de vidro, por outros, de loiça do Redondo. O objetivo oculto, obviamente, era os professores poderem beber vinho, sem os alunos se aperceberem. Escusado será dizer que eu passei a almoçar na Escola Preparatória, apesar de dar aulas na Secundária.

O outro episódio que me marcou e que, aliás, impressionou profundamente a vila do Redondo, foi protagonizado por um transeunte que teve o azar de ir a passar na rua, quando um miúdo, por brincadeira, cuspiu de uma janela de sacada do primeiro andar e lhe acertou em cheio. O bom do homem foi imediatamente queixar-se ao Senhor Director que, contra todas as expectativas, lhe deu um raspanete, perguntando-lhe se nunca tinha sido criança...

Quando veio Abril e o golpe dos militares, lembro-me da alegria genuína que o António Telmo manifestou, em sintonia com a maioria do pessoal. Criámos, logo a seguir, um grupo de “intervenção cultural” que fez várias tournées na região. Juntávamos música popular (com o Vitorino e o Janita à cabeça), artes plásticas (eu convidei o António Couvinha e o António Cabeça), com alguma intervenção política revolucionária (a Luar estava, nessa época, bem implantada no Redondo). Um desses espectáculos foi organizado pelo António Telmo, em Sesimbra, numa Sociedade Recreativa local. Nessa noite, o Cante alentejano ressoou pelas ruas da vila. Apesar do entusiasmo inicial, o António Telmo rapidamente se desinteressou da política em curso...

Agradeço-lhe ter recebido dele o primeiro aviso contra o arrebanhamento em que, de formas muitas vezes primárias, as forças políticas estavam empenhadas. Manifs e slogans deixaram de fazer parte da minha postura. De resto, se tivesse de definir as posições políticas do António Telmo, eu diria que ele foi, sem o assumir, um libertário.

Mais tarde, já em Estremoz, o Mestre frequentava os dois cafés principais da cidade, nesse tempo: o Águias de Ouro e o Alentejano, cujos clientes se arrumavam, quase sem excepções, à direita, no caso do primeiro, e à esquerda, no segundo. O Telmo frequentava os dois e gostava de armar em comunista, nas conversas com os fascistas e vice-versa. Para o António Telmo, a meu ver, a política era um parente pobre da metafísica. Mais do que intervir no mundo, ele queria pensá-lo e, talvez, entendê-lo. Durante cerca de uma dúzia de anos, frequentei, intermitentemente, as tertúlias que ele promovia, no Alentejo, em Sesimbra ou em Lisboa. Nelas e nas conversas de café, aprendi muito do que gosto de pensar que sei. Sobre isso, que foi o mais importante, tentarei escrever ainda um testemunho.