VOZ PASSIVA. 134
António Telmo e a História Secreta do Figurado de Estremoz
Mara Rosa
Imagem: Amor é cego, de Afonso Ginja. Colecção particular. Foto tirada daqui.
Gramática Secreta da Língua Portuguesa foi o primeiro livro de António Telmo de que tive notícia, cujo título bastaria para percebermos, na sua escrita, a qualidade de unir numa simbiose perfeita os predicados Razão e Mistério.
De então para cá, uma década de permeio paulatinamente desvela aos meus olhos um ser raro, dotado de uma prodigiosa arte poética que alia a uma imaginação criativa. A sua narrativa é simultaneamente clara e profunda, transversalmente plural e universal.
Assim como as tradicionais narrativas míticas, os contos de A. Telmo de certa forma reproduzem o nascimento do cosmos, na medida em que transformam “o tempo, o espaço e o mundo”. Ainda a par com o mito, as suas histórias, plenas de signos muitas vezes associados a realidades arquetípicas, têm sempre um fundamento moral, no sentido heterodoxo da palavra, que induz à reflexão.
Por fim, Telmo cristaliza na sua escrita as paisagens afins, físicas e mentais. Penso em Almeida, a fortificada paisagem raiana aberta a planaltos a perder de vista, berço que o recebeu à nascença, ou Sesimbra que lhe semeou na alma o génio de uma filosofia atlântica... Mas penso sobretudo em Estremoz, terra em que o visionário assentou arraiais, terra da Rainha do culto do Espírito Santo, edificada com o gélido mármore arrancado ao solo, terra de pequenas nascentes e de barrocais, cavados à enxada pelas “bonequeiras”, mulheres sem profissão reconhecida que deram à luz os Bonecos de Estremoz.
E aqui me detenho. Não nas figuras religiosas que no séc. XVI, pelas mãos de plebeias mulheres de parcos recursos, inauguraram a condecorada tradição artesanal estremocense. Detenho-me nas figuras profanas (ou carnavalescas) dos Bonecos de Estremoz, surgidas já no séc. XVIII: O Amor é Cego, o púcaro ornamentado e A Primavera (para a temática do figurado de Estremoz, ver estudos de Azinhal Abelho, Joaquim Vermelho, Hernâni Matos, Hugo Guerreiro).
Detém-me esta tríade plena de carga simbólica, como me deteve quando, em 2019, folheei o livro História Secreta de Portugal (A. Telmo, ed. Zéfiro, 2013). Neste livro, onde o seu autor alude ao hermetismo simbólico do Mosteiro dos Jerónimos e à sua relação iniciática com a figura de Nicolau Coelho, encontrei múltiplas relações com estas três imagens do figurado português, onde facilmente caberia incluir, num trabalho com outra amplitude que não esta pequena evocação, os elementos simbólicos da figura cerâmica da Rainha Isabel de Aragão.
Nas páginas desta História Secreta de Portugal encontramos os nós manuelinos modelados nas botas de O Amor é Cego, o coração ferido por 3 lanças ( p. 53 do livro) e a cornucópia de flores, ambos os elementos seguros nos braços do Amor, junto ao peito; nas páginas deste livro vislumbramos ainda a mais badalada das figuras da barrística de Estremoz, sempre representada de venda nos olhos, na seguinte passagem: “o busto de um homem, visto de frente, com os olhos atados por fios (...)” (p. 66).
Nesta obra, que tanta informação condensa em escassas páginas, também os escudos dos Jerónimos esculpidos em pedra, contendo as cinco chagas de Cristo (p. 53), remetem ao figurado, nomeadamente à Primavera, com a sua semicircunferência em arame, contendo comumente sete ou nove escudos feitos em barro, embora os mais recentes aparentem representar uma flor, são circulares, e têm 5 pontos no interior que podem ser pétalas ou chagas.
Por fim, no púcaro ornamentado com flores e uma espécie de avental, temos o ônfalo do mundo, referido pelo autor em passagem sobre a iniciação, mas nele também temos, simbolicamente, uma fonte (p. 66).
Fica assim evidente, a partir das pistas já abordadas que António Telmo deixou na sua História Secreta de Portugal, uma forte ligação entre os elementos do figurado de Estremoz acima expostos e os vários estágios da iniciação de um cripto-judeu — apresentados na obra consultada.
25 de Agosto de 2023