VOZ PASSIVA. 132

21-08-2023 00:00

Quem pode dizer que conheceu, verdadeiramente, António Telmo?

Maria Sarmento

 

Conheci o António Telmo pelo que se mostrava de enigma e, simultaneamente, de natural humanidade. Quem pode dizer que conheceu, verdadeiramente, António Telmo? Encontrámo-nos e convivemos várias vezes em circunstâncias ligadas ao pensamento e ao debate de ideias, na companhia de amigos comuns, em tertúlias e encontros de amigos de Évora, de Vila Viçosa e de Estremoz; em visitas a nossa casa, em Évora, para falar com o António sobre as suas pinturas e a leitura simbólica que António Telmo fazia de alguns dos trabalhos do António (Couvinha). Estivemos juntos em conferências e lançamentos de livros, em eventos académicos, maioritariamente ligados à Poesia e à Filosofia dos autores da sua e da nossa preferência, de que cito e destaco: Teixeira de Pascoaes, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva.

Sempre que amigos comuns se encontravam em Évora, uns porque aqui viviam, outros que aqui se deslocavam para um ou outro evento, nomeio aqui o nosso querido António Cândido Franco, o amigo e na época meu Professor, Francisco Soares, o saudoso José Manuel Capêlo, o Manuel Calado, o António Couvinha, a Paula Costa e o Carlos Dutra, entre outros. Sempre que havia esses encontros, dizia, a presença de António Telmo era uma agradável constante. Muitas vezes, sem querer, porque era mesmo assim a sua força catalisadora, a nossa admiração e afecto centrava-se na sua misteriosa pessoa com uma curiosidade muito atenta.

Posso dizer que “conheci” António Telmo mais pelos seus silêncios do que pelas suas falas. Fazia-se muitas vezes acompanhar de homens que lhe eram dedicados e por ele nutriam admiração profunda. Homem de silêncios prolongados pelo sorriso desafiador, por vezes provocador de controvérsias, com que parecia deleitar-se. Esse silêncio era um questionamento mudo.  Tornava-se, em cada um de nós, voz interior e, tantas vezes, um misto de profunda admiração e perturbação, em alguns casos. Eu, nem tanto assim, que à época tinha (e ainda guardo) aquela postura de menina caeiriana a quem era “permitido” pregar partidas e desafiar os sábios. Estar com o António Telmo era nunca esperar pelo que podia acontecer depois desse silêncio e dessas escassas palavras, quase sempre interrogativas ou espaçadamente sentenciosas. O Silêncio que se seguia à interrogação, era diálogo interior, vontade de acertar e, confesso por mim e arrisco pelos outros, desejo de sermos acolhidos pelo seu espírito.

Foram vários os episódios que se passaram directamente comigo e de que guardo grato e misterioso eco e lembrança. Vou relatar apenas dois deles, para não tornar o texto muito extenso. Estávamos numa situação de escolha de uma fotografia minha para a capa do meu livro “O Silêncio e as Vozes”. Sentados à mesa de um café com esplanada, em Évora, estava o José Manuel Capêlo, editor da Árion que iria editar o meu livro, o António Telmo o António Couvinha e eu, Maria Sarmento. Eu tinha pedido ao amigo, galardoado com o ‘Prémio Pessoa’, o fotógrafo José Manuel Rodrigues, que me tirasse uma foto para a badana do livro. Fizemos, na casa dele, uma sessão que, na verdade, resultou numa série de retratos muito sóbrios, a lembrar Florbela Espanca dos quais trouxe os negativos para a escolha da foto que melhor se adequava ao efeito. Mostrei ao editor os negativos e este mostrou-os ao António Telmo. Qual não é o nosso espanto quando este sentenciou, muito sério: “Esta não és tu.” Silêncio. Tudo bem. Tinha razão! Todos concordámos. Mas como dizer ao fotógrafo que não escolhemos nenhum dos negativos e que seria necessário fazer outra sessão? Salvou-nos um pouco do embaraço a amizade de longa data entre nós e o fotógrafo e lá tirámos outras fotos, completamente distintas, num cenário mais natural e descontraído e com uma expressão minha, outra. Pois mandou o destino ou alguém por ele que nos encontrássemos na mesma mesa do café umas semanas depois com outros negativos. O mesmo procedimento. Quando António Telmo os viu. Acenou e sorriu. Soubemos, então, que aquela era eu. Dei-lhe toda a razão e lá escolhemos um dos negativos, o que saiu na badana do livro, editado em 1999.

A outra história sucedeu num evento académico de homenagem a Teixeira de Pascoaes, organizado por António Cândido Franco, Professor na Universidade de Évora, cujo reitor era, à época, outro amigo de António Telmo, o Professor Ferreira Patrício. Cândido Franco tinha-nos convidado, a mim e à Margarida Morgado, como já tinha sucedido em outras iniciativas, para lermos textos do “Verbo Escuro”, creio. Encontrámo-nos, eu e a Margarida, para escolhermos os textos e quem ia ler o quê. Eu escolho um longuíssimo texto que era um elogio ao mar, uma elegia que, lembro, dizia “Ó mar à luz da lua …” Assim que o li, escolhi o tom em que o deveria dizer e não saí dele, tornando-o uma imitação sonora do marulhar do mar, numa nota bem funda, como convinha ao texto. O texto era enorme, a leitura foi monocórdica, a meu ver, e o silêncio na sala foi absolutamente total. Se dormiam todos, nunca o soube bem, mas que seguiam embalados por aquele longo e fundo som, isso pude observar nos olhos de António Telmo e do grupo que o acompanhava. Terminada a função, em conversa com o Telmo, perguntei: «Gostou da leitura?» – Segredou-me ao ouvido: «Cantaste muito bem». Pensando que o meu ilustre amigo não tinha percebido a pergunta, voltei a perguntar, insegura: “Mas li bem?” Obtive a mesma resposta. Compreendi que António Telmo tinha percebido desde sempre o tom menor que eu tinha escolhido para o texto. Fiquei impressionada e encantada. Sempre foi assim, entre mim e António Telmo: uma admiração profunda. Só muito mais tarde, comecei a espreitar e a abrir o véu de alguns dos seus textos.

 15-08-2023