VOZ PASSIVA. 131
António Quadros e António Telmo: um diálogo entre livres-pensadores[1]
Pedro Martins
1. «Lá para Outubro, vou-me embora. Não deixe que me convertam». Estas são palavras de Álvaro Ribeiro para Francisco Sottomayor, a quem as ouviu António Telmo. Foi deste que as escutei e não podem deixar de evocar a tentativa de confissão, por um sacerdote, de um Sampaio Bruno às portas da morte, prontamente repelida pelo portuense ilustre. A conversão aventada refere-se ao catolicismo e só quem estiver desatento ou pensar com a vontade poderá persistir na ideia de que Álvaro tenha observado qualquer ortodoxia, mormente a da Igreja de Roma, ele que, em A Literatura de José Régio, confessa aos seus leitores que «em vão formulou novo pedido de aliança ou de casamento» por, entre as razões apresentadas para as recusas recebidas, se deparar com esta: «ainda não se convertera à religião da maioria». Vale a pena a demora numa página memorial daquele livro:
«Fascinado efectivamente pelo patriotismo eloquente e apostólico de Leonardo Coimbra, hesitava eu todavia em segui-lo, intimidado perante a leitura de seus livros incomparáveis, onde se efectuava a polémica mais notável contra todas as doutrinas que erroneamente assentam na falsa hipótese de que no princípio era o cáos. Acontecia, porém, que a minha alma sempre preocupada com a vida religiosa, que sobrepunha à cultura filosófica e à curiosidade literária, estava então incapaz de compreender a historificação positivista da teologia francesa em três capítulos, três estados e três factos correspondentes à tríade Deus, Cristo, Igreja. Cansado de ouvir ou ler, nas orações homiléticas e nos artigos jornalísticos, as frases contundentes de que a Igreja proíbe, a Igreja reprova, a Igreja condena, perguntava-me perplexo se tal ignorância era professada por homens católicos e por mulheres católicas, consultava e estudava a documentação eclesiástica, recorria a livros estrangeiros, e no fim verificava que as ciências proibidas não iam contra a vontade da Igreja, a doutrina de Cristo, a ideia de Deus.
A heresia, significando etimologicamente procura de outra fé, deixou de me intimidar, quanto mais o exemplo de Leonardo Coimbra nos assegurava confiança no melhor caminho, já que o filósofo, relacionando sempre a liberdade com o amor, nos dava uma interpretação do cristianismo que transcendia os limites da dogmática católica.»
Só na aparência me afastei do tema proposto, que abordarei do prisma do livre-pensamento religioso. António Quadros e António Telmo, de quem Álvaro Ribeiro foi o primeiro mestre, souberam-no cultivar.
2. A conversão de Leonardo abalou alguns espíritos. Pela inoportunidade do momento político em que ocorreu, Pascoaes viu nela a obra do diabo. E, sem jamais pôr em causa a sinceridade do mestre, Álvaro Ribeiro, passados já dez anos sobre a morte daquele, podia afirmar:
«Quanto a mim, confesso que divergências profundas, especialmente em teologia, me impedem de estudar a obra de Leonardo com aquela sincera adesão que me levou a receber e a admirar o seu magistério filosófico.»
Na geração seguinte, Telmo sugere que o regresso de Leonardo à religião da infância, se interpretado pela parábola do Filho Pródigo, haveria, possivelmente, de se traduzir num enriquecimento do cristianismo exotérico patenteado na ortodoxia católica, pela vivência experiencial do martinismo que o filósofo re-velara nalgumas obras da sua fase criacionista, mormente em A Alegria, a Dor e a Graça.
A hipótese é plausível. Álvaro Ribeiro lembra que «a conversão é sempre integrativa e integrante». E é significativo que o faça num escrito de imprensa em que afirma ter sido Bruno «o nosso primeiro filósofo, ou seja, o nosso primeiro-livre pensador», para, em seguida, demonstrar que livre-pensador, verdadeiramente, só o poderá ser o pensador religioso.
Definindo a liberdade como a «coexistência pacífica dos diferentes», Álvaro afirma também que «o livre-pensador, ao contrário do positivista, avança por um domínio delimitado pelos escolásticos, mas acelera a evolução espiritual da Humanidade».
A derradeira frase consente versão para a teurgia martinista. E é ainda, uma vez mais, com Álvaro Ribeiro, agora em Apologia e Filosofia, que a hipótese de Telmo se robustece. Pois não será o itinerário espiritual vislumbrado no trajecto de Leonardo uma modelar realização operativa da escala triádica em que, pela mediação do pensamento sófico, o pensador ascende do plano gnósico ao plano pístico? É que sem essa mediação, no caso leonardino assegurada pela experiência martinista, a tentativa de relacionar directamente a razão com a fé nunca desenvolveria as virtudes nem suscitaria as graças que os crentes esperam da apologética religiosa, como Álvaro observou. E por isso o livre-pensador vai para além da escolástica: avança no terreno que esta delimita, mas acelera a evolução espiritual da humanidade, como da lição alvarina se poderá ainda retirar.
3. «O António Quadros foi o único e creio que eu também um pouco que viu serem inseparáveis a Igreja de Pedro e a Igreja de João.» Assim escreve Telmo ao amigo em carta de 2 de Junho de 1986. Logo no ano seguinte, a 22 de Janeiro, afirma-lhe noutra missiva: «O António Quadros é dos que restam, o único que não «repele» a minha Teima ocultista, que não a teme, que a inclui numa das direcções da sua vida espiritual». E em Março de 1990, em novo lance epistolar: «De facto, há entre nós dois uma fidelidade ao ensino que recebemos que tem muito de comum: daí o sermos, sobretudo, hermeneutas.»
Constituem estas últimas palavras uma resposta à pergunta que Quadros, dias antes, em carta de 27 de Fevereiro, lhe dirigira:
«Sei que você andou muito por baixo, e creia que pensei muito em si. Afinal de contas, mesmo pesando todas as diferenças, não seremos nós dois, os mais afins de entre os discípulos de A. [Álvaro Ribeiro] e M. [José Marinho], da primeira geração? De certo, eu sou mais “ortodoxo” (talvez por falta de ousadia intelectual interior), decerto, você foi sempre mais fundo do que eu, em todas as vias por que enveredou. Você tem a capacidade de ir ao âmago dos problemas e de estabelecer sínteses fulgurantes, em palavras concisas. Será de fogo, o seu signo? Se não é parece. O meu é claramente aquático, o caranguejo: derrama demasiada literatura, embora, como as ondas do mar, bata sempre as mesmas praias, com certa monotonia. Você atinge verdadeiramente um conhecimento hermético, ajudado pela cabala e pela associação, singular entre nós (rara alhures) entre o esoterismo e a filosofia. Eu permaneço nos arredores, fascinado do lado de fora, sem contudo atravessar o umbral da porta. Você conseguiu concentrar-se, meditar a sério (tudo isto são afinal observações sugeridas por Filosofia e Kabala), enquanto eu navego como posso em águas de uma média cultura, de uma pequena capacidade de filosofar e (o que me vale) de uma certa intuição e encarniçamento relevando mais do dever do que da arte de pensar.
Apesar destas diferenças, em ambos há o interesse pela poesia e pela simbólica artística, pelo oculto e pela filosofia em todas as suas formas (mas sobretudo por uma filosofia do Espírito), sendo também de notar que, ao contrário da maioria dos nossos companheiros, reconhecemos os mesmos mestres, Leonardo e Bruno, Pascoaes e Pessoa, Álvaro e Marinho, integrando-os, com as suas antinomias, na nossa vivencialidade gnósica.»
Importa recordar que Quadros, ao contrário de Telmo, não era um iniciado. Mas a iniciação parecia sobre ele exercer um fascínio que, não raro, o levava a colocar-se na posição do esoterista. Ao amigo, em carta de 29 de Janeiro de 1997, dirá: «Não tenho pois nenhuma vocação para esotérico, embora tenha uma grande inclinação para todas as formas de esoterismo, que não só constituem um desafio, como prometem um saber outro do que o daqui, só daqui».
Para melhor se compreender o posicionamento de Quadros, importa considerar que, na mesma carta, se irá definir como «um católico liberal». Estamos, na verdade, diante de um livre-pensador religioso:
«Não me sinto no mínimo inibido, em minha liberdade espiritual. Nem clericalista nem anti-clericalista. Faço hoje uma vida de sacramentos, embora o meu espírito flutue muito e se dirija para paragens aventurosas, faço-o fundamentalmente porque os sinto como constituindo laços vivos, concretos, tradicionais com o sagrado, com Deus, exigindo da nossa parte reverência e humildade, uma aproximação do povo, dos simples que só por aí acedem a uma vida de espírito superior à dos interesses quotidianos. Como o pão que Cristo partilhou com os apóstolos e sinto-me sentado à sua mesa. Ajuda-me a vencer o egocentrismo e a sujeição aos interesses próprios.»
Linhas depois, em passagem do maior significado, afirmará:
«Concebo um Deus-Espírito, muito superior às nossas pequenas contabilidades e prejuízos terrenos. Muito superior às nossas estreitas ortodoxias, que aliás já foram heterodoxias e heresias para outros, ou são-no.»
É justamente aqui que a sua atitude de aproximação ao esoterismo melhor se define, por admitir um Deus que transcende as diversas religiões. Não fora outro, de resto, o desígnio do Império segundo Avis, como no Livro II de Portugal, Razão e Mistério se pode verificar. Tal
«era o projecto político da sinarquia templária, herdada pela Ordem de Cristo, o Império (do Espírito Santo) acima dos Reinos e dos vários Cultos de origem bíblica monoteísta e até dos pagãos. Mas tal projecto só seria verdadeiramente viável através de uma teoria laicista, qual a preconizada por um Dante, que sob o domínio carismático de um Imperador directamente ungido e coroado por Deus-Espírito, pudesse esbater o poder radicalista das ortodoxias religiosas. Se todo o domínio espiritual fosse destas, o diálogo tornar-se-ia impossível devido ao rigorismo teológico dos eclesiásticos. Mas se, mesmo com o predomínio religioso do Cristianismo, o acento recaísse sobre o Espírito Santo, sobre a Terceira Pessoa, sobre o Quinto Evangelho ou sobre o Evangelho Eterno, quiçá fosse possível aceder à concepção de um Deus / Homem de outro Deus maior, no verso de Pessoa, de um Deus-Espírito no qual coubessem o Deus trinitário do Cristianismo e ainda Jeová e Alah, e mesmo o Deus Desconhecido ou aqueles Deuses únicos e recônditos cujo Mistério subjaz a todos os Politeísmos.»
A carta de Janeiro de 1987 reflecte em vários aspectos a passagem agora transcrita. O que não surpreende. Quadros concluíra já o segundo volume da sua obra-prima, e daí que naquela deixasse transparecer o entusiasmo com a próxima aparição desta. Pela conjugação de ambas se comprova que o desígnio ecuménico do filósofo firma raízes no esoterismo templário da Ordem de Cristo.
É ainda naquela missiva que anuncia a Telmo:
«Você verá talvez melhor a minha posição no vol. II de “Portugal…”, onde defendo um trinitarismo de predominância paraclética, mas… sem heresia, como penso que foi o de Dinis e Isabel, dos franciscanos espirituais e da Ordem de Cristo. Coincido pois com o que você diz sobre os templários e sobre a aproximação do catolicismo e do ocultismo – pelo menos do ocultismo de sinal cristão, isto é, não oriental –, embora eu penda pessoalmente mais para um criacionismo cristão-liberal.»
É de crer que Quadros se encontre a meio caminho entre o profetismo místico e ecuménico do Agostinho da Silva de Educação de Portugal, e o desígnio unitário revelado nos derradeiros parágrafos de A Literatura de José Régio, em que a angelologia judeo-cristã de Álvaro Ribeiro encontra cabal expressão, ou no fundo espiritualismo maçónico que viria a culminar, como corolário, a obra de António Telmo.
4. Em 1998, a iniciação de Telmo no Rito Escocês Rectificado foi, pela própria natureza deste rito, um acto de coerência de quem, na senda de Bruno e de Álvaro, exaltara o martinismo. Deste prisma, será muito significativo que, na já citada carta de 22 de Janeiro de 1987, tivesse escrito:
«Não que não me toque de profunda emoção religiosa o supremo Esplendor da Igreja de Cristo em que todos nós fomos criados, mas em cuja doutrina, dogmas, sacramentos, ritos não vejo incompatibilidade com a «cabala» martinista pensada pelo nosso primeiro Mestre. Se não fosse assim, a obra de Joseph de Maistre, um dos chefes ocultos da maçonaria martinista, onde usava o nome, veja o António, de Josephus a Floribus, teria sido uma impossibilidade.
Não vejo ninguém, a não ser o António Quadros, capaz de acompanhar Álvaro Ribeiro e de comigo o seguir neste ponto crucial. Ocultismo sem catolicismo, como talvez o entendesse F. Pessoa, não está dentro dos planos da «Ordem Templária», a que ele dizia pertencer. O prestígio que se fez à sua volta e o silêncio tumular que sempre se faz à volta de Álvaro Ribeiro explicam-se, talvez, assim. Afigura-se-me impossível separar dois relativos: a ortodoxia e a heterodoxia.»
Reconhece-se a doutrina alvarina. Mas será mesmo assim? Não haverá incompatibilidade entre a doutrina católica e a «cabala» martinista pensada por Álvaro Ribeiro? A resposta, de extrema dificuldade, dependerá do modo de entender o exoterismo da enunciação dogmática…
Não obstante, farei notar que o Tratado da Reintegração dos Seres, de Pascoal Martins, principal fonte do martinismo, acolhe essencialmente a cristo-angelologia ebionita do Verus Propheta, conforme a lição de Robert Amadou. Nenhum papel desempenha ali, ainda, o dogma da Encarnação, absolutamente impensável para o cristianismo originário da comunidade de Jerusalém, anterior às enxertias helénicas e romanas, e portanto goim, de Paulo e de Constantino.
A entificação do Absoluto, como demonstrou Henry Corbin, é pura impossibilidade lógica. Não será outra a doutrina d’A Literatura de José Régio. Álvaro não aceita a divindade de Jesus, de quem, com significativa insistência, afirma ser um profeta religioso, ou sagrado, para o comparar a Moisés e a Maomé:
«Enviado de Deus, profeta, comparável a Moisés, Cristo usufrui de um atributo mais dignificante. Toda a messiologia se nos afigura como campo deficientemente cultivado pela responsabilidade dos teólogos. Se, conforme a tradição judaica, espírito messiânico só poderá ser espírito superior, ou espírito angélico, então compreenderemos certas feições extraordinárias da figura que de Jesus nos apresentam os evangelistas, e compreenderemos que Cristo haja sido, nos momentos altamente religiosos da sua vida na Terra, perfeitamente assistido pelos anjos.»
Por mais de uma vez se refere ali Álvaro Ribeiro a Jesus Cristo como «o último profeta». A expressão, que evoca irresistivelmente a noção islâmica do selo da profecia, melhor esclarece qual seja o atributo mais dignificante de Cristo perante Moisés: o primeiro, sobre ser profeta, é também o Messias, mas jamais Deus encarnado. Nesta encruzilhada se define o judeo-cristão em que Álvaro, converso sefardita, se projecta.
Na senda da apologia feita por Bruno, constitui-se o martinismo como o fundo secreto da ideação alvarina, com o que porventura se desenha uma cadeia tradicional viva e actuante. Sibilinamente, lembra Álvaro Ribeiro em A Literatura de José Régio que os gnósticos ainda existem na actualidade. Não quaisquer, mas à guisa dos ebionitas, como gnósticos dessa nova gnose que n’A Ideia de Deus Bruno nos apresentara: uma gnose eminentemente judaica com uma soteriologia propriamente gnóstica, nas palavras de Corbin.
Não será de crer – e ele próprio o admitiu – que Quadros pudesse levar tão longe o seu pensamento. A ênfase paraclética do seu cristianismo é um limite intransponível de onde, porém, dada a unidade essente do Espírito – se quiserdes, do Espírito Santo –, se vislumbra já o monoteísmo puro de um Álvaro Ribeiro, ou o teomonismo de um Henry Corbin.
Em 7 de Abril de 1987, escreve-lhe Telmo: «Entre “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” refiro-me ao Paracletismo de Joaquim de Flora e aí aproveitei a ocasião para lhe mandar um recado.» O recado pode ser lido em Filosofia e Kabbalah:
«Quanto a Joaquim de Flora, cremos que ao leitor inteligente não escapou o que há de significativo no facto de Joseph de Maistre ter escolhido como nome iniciático Josephus a Floribus. Tanto basta para estabelecer uma relação suficiente com tudo quanto escrevemos. Aliás, a presença do paracletismo italiano em terra portuguesa foi já largamente estudada ou reflectida por Agostinho da Silva ou António Quadros, para cujos notáveis estudos remeto o leitor interessado. Há, porém, que distinguir entre os autores que são atraídos para certas doutrinas cristãs pelo seu subconsciente hebraico e aqueles que as perfilham com inteira e clara consciência da relação.»
5. Entre estes dois espíritos de escol houve, por certo, alguns desencontros. Pouco importa.
Cristão liberal, Quadros propugna necessariamente a «coexistência pacífica dos diferentes»; e releva, por certo, de uma exemplar saúde moral e ética a condenação, em Portugal, Razão e Mistério, do «odioso Tribunal do Santo Ofício», um símbolo do «contra-reformismo estreito, fanático, racista, intolerante», próprio da «clerocracia» entre nós instalada com D. João III, e «que quase ia queimando, nos seus Autos-de-Fé e na sua psicologia inquisitorial e delatora, se é que não a devorou de forma irreparável, o espírito da nação portuguesa». É reconfortante poder citar António Quadros, nestas passagens daquela sua obra, com o antigo Palácio dos Estaus e a Igreja de São Domingos tão próximas, aqui ao lado…
E das diferenças dirá Telmo, na História Secreta de Portugal, que «sempre constituíram a base e a condição do que será, para a Ordem do Templo e de Cristo, a conversação universal dos espíritos»; e daí que alerte para o facto de estarem «sendo desfeitas pelo que aparece como o intento de produzir a homogeneização geral das matérias».
Exemplar diálogo entre livres-pensadores religiosos foi o destes espíritos de escol. Receio bem que se trate, em nossos dias, de uma conversa acabada.
[1] Comunicação apresentada, em 13 de Julho de 2023, no Palácio da Independência, em Lisboa, ao Congresso nos 100 anos de António Quadros.