VOZ PASSIVA. 13
O bilhar
António Cagica Rapaz
O bilhar era o cartão de visita do Central, sendo o patrão Arménio um fino executante, embora lhe faltasse fôlego para disputas sérias. Exibia-se de vez em quando, com o seu taco e as suas bolas, jogava sempre em casa, ao seu ritmo tranquilo, por prazer, ciência compassada, tacada suave.
Achava graça aos meus onze ou doze anos e à paixão pelo jogo da carambola, e chegou a dar-me algumas lições que saboreei como dádiva rara, embora o meu verdadeiro mestre tenha sido o Tó, o filho do doutor do Registo…
O bilhar seduziu-me cedo e comecei a praticar no Chagas, por bondade do João do Hospital que simpatizava comigo e me deixava jogar clandestinamente de graça, andava no primeiro ano do colégio do Dr. Costa Marques e só tinha aulas de tarde.
Por isso, às nove e meia lá estava caído no Chagas onde ninguém jogava de manhã. Abria a janela que dava para a cocheira do Fartura, tirava o pano que cobria o bilhar e começava o treino. Depois de me passar as bolas através do postigo, o João ia deitar um olho à Pensão Chic onde trabalhava uma moçoila com quem viria a casar. Entretanto já tinha acendido a telefonia para ouvirmos, a partir das dez, “O Talismã, o seu programa da manhã”, produção associada de Armando Marques Ferreira e Gilberto Cotta. Ao microfone, o próprio Armando e a Eugénia Maria. Mas também por lá passaram o António Miguel e o nosso Vítor Marques, do Forno. Era o tempo dos românticos sul-americanos, Ivon Curi, Lucho Gatica e Lorenzo Gonzalez. De tanto treinar, acabei por ganhar algum jeito e chamei a atenção do Dr. António Telmo, o Tó, que teve a gentileza de me ensinar a jogar com preceito, com os efeitos adequados e, sobretudo, a juntar. Fiz grandes progressos e pratiquei com gosto e proveito, ganhando uma experiência que viria a servir-me, anos depois, em Coimbra, para ganhar uns oportunos patacos, no snooker, na cave do Café Montanha…
Para além do patrão Arménio, também os empregados praticavam. O António Luís jogava bem, embora fosse pouco concentrado, o Cândido tinha bom toque de bola, mas o Hernâni, o saudoso inspector Cachopa, era melhor no ping-pong do que às três tabelas.
Da freguesia habitual, ficaram-me na memória as impagáveis partidas entre o Zé Romão, pequeno e risonho, e o António Casa Pia, cheio de retórica, passes de tauromaquia, verónicas e chicuelinas, acompanhando o movimento caprichoso das bolas, trejeitos e requebros, uma coreografia notável à volta da mesa. O Orlando, dos táxis, chorava-se muito, só jogava pela certa, para ganhar. Do mesmo estilo era o Pai do Céu que ganhava quase sempre ao Leste, apesar de o bom Daniel ter melhor técnica. Porém, abusava da fantasia, da tacada artística, e acabava por encostar a barriga ao balcão.
Mas os mestres incontestados eram o Tó e o Chico Cagica. Dotado para todos os desportos, talento inato, o Chico era um bilharista admirável. Nas raras vezes em que jogava, o Central em peso vinha assistir, apreciar a facilidade dos predestinados, a fluidez, o engenho, jogo corrido, com o taco a transformar-se em varinha mágica, sortilégio raro…
O Tó era um filósofo, um poeta, um artista que cultivava a arte pela arte, queixo esticado, gesto ousado, em busca incessante do lance de génio.
Os bons jogadores de bilhar adaptaram-se facilmente ao snooker que consideravam como arte menor e a que só a novidade deu algum interesse. Os menos hábeis jogavam na retranca, sem arriscar, com o único objectivo de ganhar, ao passo que outros davam largas à imaginação e à ousadia em partidas memoráveis como as que opunham o Tó e o Nicola filho. Eu ficava todo contente quando o Tó ganhava.
O Cândido folgava à quarta-feira e ia à pesca. O António Luís também. Eu permanecia fiel ao Central, até a minha mãe me chamar para jantar…
1982