VOZ PASSIVA. 129

17-05-2023 11:31

Na foto, da esquerda para a direita do leitor: Paulo Brandão, Pedro Martins, Deolinda Fernandes e José Faro, durante a sessão de lançamento de A Glória da Invenção, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, no passado dia 2 de Maio, na ESMTC - Escola de Medicina Tradicional Chinesa, em Lisboa 

 

 

Apresentação de A Glória da Invenção – Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro

José Faro

 

Boa tarde

Cumprimento os autores do livro hoje apresentado e todos os presentes.

Aos autores confesso que fiquei sensibilizado com o convite para ser o apresentador – seguramente que é do seu conhecimento a minha profunda impreparação para o efeito, o que demonstra o seu corajoso à vontade perante o paradoxo e a sua estrutural segurança perante o risco, o imprevisível e imponderável. O livro que geraram, em qualquer caso, saberá apresentar-se e defender-se a si mesmo, saberá encontrar o seu próprio caminho.

Saúdo ainda os presentes pelo elevado nível da sua noção de permanência do objeto e pelo elevado grau de inefabilidade abstrata de alguns dos seus objetos de consciência.  Eu explico. Piaget falava deste género de coisas. Começámos todos, no berço, com o pânico da nossa mãe ter deixado de existir de cada vez que desaparecia, por exemplo, por ter saído da sala. Com o tempo descobrimos que ela, afinal, era permanente. Por extensão, a pouco e pouco, vimos a aceitar que todas as coisas existem persistentemente mesmo quando não as percecionamos. Muito mais tarde, parte de nós aplica esse axioma da permanência ontológica das coisas a objetos que nunca passaram pela perceção sensorial. São elementos intra-psíquicos, axiomas, crenças, intuições que nos habitam. Alguns são autênticas pedras de fecho estabilizando as cúpulas dos nossos processos interiores. Inefáveis, bem longe, lá no alto, mas tão concretos, tão sólidos, tão permanentes, muitas vezes tão indispensáveis para que a vida e o mundo nos mostrem sentido.

Fernando Pessoa escreveu algures “O mito, esse nada que é tudo”. Eu acho que filosofias que tentam verdadeiramente penetrar o desconhecido que ainda parece nada, como a de António Telmo, se enquadram entre os nadas candidatos a tudo. E, por isso, considero admirável estarmos aqui reunidos em torno de nada, um nada que sentimos como sendo ontologicamente concreto e talvez mais permanente que o resto. Na verdade, reunidos na mítica soleira de um pórtico antigo e invisível que, como se nada fosse, se abre escancaradamente para o tudo.

Voltando ao elemento terra.  Ao livro. Os autores colocam uma escrita maravilhosa ao serviço duma reflexão informada, simultaneamente abrangente e do mais exigente detalhe. Dez sonetos da Risoleta Pinto Pedro mapeiam elusivamente tesouros escondidos no mundo de Telmo e desenham numa neblina esboços de seres que o habitam. São sonetos que sabem a soneto: filosoficamente densos, com finais afinados em clave conclusiva, mesmo quando rematados em acordes de espanto ou em semibreves perguntadas. Perguntamos nós se foram construídos a propósito de Telmo ou se emanaram da mesma fonte que dessedentou o filósofo.

Na distância, Aquilino Ribeiro escuta, com deleite, o ranger ritmado da pena de Pedro Martins. A riqueza do vocabulário é posta ao serviço duma semântica fina, apta a ser expressão correta dos dados resultantes da pesquisa histórico-filosófica prévia, que tece e fundamenta uma rede interativa de conceitos e significados.

Lembrei-me de que tenho grande consideração e amizade pelo casal autor deste livro, que hoje veio à luz, mas que traz luz sobre muita coisa. Tenho de ser cuidadosamente objetivo, até por se tratar de um livro que, como vimos, e de um certo ponto de vista, tem como marca de água, o nada. O tal do Fernando Pessoa.

O trabalho de recolha e revelação (como nas fotografias antigas), anos a fio, de documentos da obra de António Telmo, ou dos muitos a ele referentes é, nos factos, uma tarefa pesada como o chumbo, que ensombra os que ousam a investigação histórica rigorosa. Mas, tanto quanto se sabe, Pedro Martins e Risoleta Pedro (reparem: quase faz capicua) deitaram juntos mãos a essa obra (reparem: música! Piano a quatro mãos) e transformam esse plúmbeo e amalgamado início em reluzentes pepitas editoriais como a que hoje é lançada ao mundo. É por isso que, a propósito deles me tenho lembrado ultimamente de Nicolas e Pernelle, famoso casal de alquimistas da história da Alquimia. É que, disse-me uma vez um alquimista, no laboratório só há uma coisa melhor do que trabalhar bem sozinho: é trabalhar bem acompanhado.

A composição em dez ensaios, sobre temas distintos ainda que relacionáveis torna a leitura do livro particularmente acolhedora. Dessa pluralidade não resulta a sensação de ser basculado de supetão um tema para outro sem relação na passagem de ensaio para ensaio. Cada ensaio é completo e chega-se ao fim com o prazer de ter concluído um caminho. Mas, mal se começa a percorrer o ensaio seguinte, logo se descobre-se que é uma continuação do caminho anterior. O resultado, para mim, foi uma leitura muito absorvente. “Bem, é só mais um ensaiozinho”, e assim sucessivamente. E parar antes do fim do livro? Claro que o momento presente me esperava. Mas o facto permanece – foi duma assentada e com sublinhados.

O que é apresentado é muito interessante. Na verdade António Telmo é um ponto focal duma vasta rede de simbiose teórica entre personalidades estruturalmente cúmplices no desvendamento filosófico do mundo mas, ao mesmo tempo, com individualidades muito marcadas. Como os designar coletivamente? Filosofia Portuguesa? Filosofia Marrana? Paracletismo? Filosofia Operativa? Ignoro e os especialistas que resolvam isso. O facto é que é praticamente impossível compreender qualquer deles sem falar muito dos outros, quer nas concordâncias quer nas discordâncias, quer sejam síncronos ou assíncronos. O facto é que eles se reconheceram uns aos outros e se reconheceram melhor a si mesmos  no conhecimento dos seus pares na aventura filosófica comum.

Por essa razão, ao longo dos seus ensaios, Pedro Martins faz o gesto olímpico e ancestral do mercante de feira que desdobra uma manta para mostrar o esplendor da vista de conjunto do estampado ou do bordado. Neste caso, numa visão abrangente de águia, o rendilhado incrível com que os bilros da história teceram a história dos que, por estes lados, usaram o pensamento filosófico inspirado como ferramenta para transformar o pensador, trabalharam numa síntese espiritualmente operacional dos aspetos mais relevantes, desse ponto de vista, das religiões abraâmicas, e procuraram, nos jogos de luz e sombra da história do nosso povo, os contornos duma alma nacional contendo os segredos do melhor do nosso passado e o mapa do nosso destino comum. A visão de conjunto, a pluralidade desvendada das articulações teóricas, históricas e pessoais, a fundamentação documental exaustiva levam-me, naturalmente a recomendar a sua leitura.

E agora, sendo eu alguém que, do tal ponto de vista acima apresentado, esteve a falar de nada, ou a falar do nada, é de considerar que já falei o suficiente.

Mas, a título de post scriptum: cruzei-me uma única vez com António Telmo e tudo entre nós se resumiu a uma troca de olhares. Mas que olhar tão doce, tão dirigido e tão atento. Que olhar tão de menino em alguém que, evidentemente, já era menino há tanto, tanto tempo. Ainda hoje recordo esse olhar que, há 25 anos atrás, durou um segundo, se tanto.

A minha admiração e reconhecimento para os autores, cordiais saudações para todos os presentes.