VOZ PASSIVA. 127

30-04-2023 16:46

O meu encontro com António Telmo

Francisco Soares 

Triplo lançamento dos livros O Bateleur, de António Telmo, Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, e  Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, na Galeria Nasoni, em Lisboa, no dia 10 de Dezembro de 1992, com a chancela da editora Átrio, de José Manuel Capêlo. Da esquerda para a direita da foto, estão António Cândido Franco, Afonso Botelho (que apresentou O Bateleur), António Telmo, Artur Anselmo (que apresentou Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa), Francisco Soares (que apresentou Eleonor na Serra de Pascoaes) e o editor José Manuel Capêlo.

 

 

O meu encontro com António Telmo,

começou por uma indicação de um amigo, o Pedro Isidoro, relativa aos Teoremas de teatro. O livro, como se diz no Brasil, impactou-me! Até hoje. Como os bois e algum Nietzche, fiquei a ruminar: em silêncio. Mas não olhava para um palácio, olhava para um templo relativamente pequeno, entre a penumbra a proteger do excesso de luz, talvez um pequeno templo rural.

Depois li a História secreta de Portugal, livro com o qual mais me debati, encontrando clareiras, divergências, a par de afinidades até de pesquisa. E ficou tudo no ar, ainda hoje, falta-me tempo para respirar, o livro está ao lado do António Quadros e vocês calculam de qual título, sobretudo o primeiro volume.

Sigamos. Tendo a fugir de pessoas conhecidas e fiz o mesmo com António Telmo. Aliás, fugir não é o termo, nem ele nunca me procurou nem me pôs em situação de ter de fugir. Isso vocês conhecem, sabem que não era possível nem faria sentido. Evito, evito por mim, por timidez, para dialogar apenas com as obras, porque as pessoas, ah as pessoas cada uma são vários mundos e eu nunca sei muito bem qual, dos meus, há de encontrá-las e temo chocar-me, não ter as atitudes e falas adequadas. Além disso, a minha sensibilidade me torna muito frágil e turva-me, por vezes. A menos que esteja disposto a lutar, outra forma de amor que, no entanto, mal envolvida e sem se perceber, gera mortes. Aproveitando que falamos de um português e deste português concreto, ocorreu- me até pensar que D. Afonso Henriques amou a mãe e, se a prendeu, foi porque momentaneamente confundiu amor e posse.

Retornemos. O António Telmo um dia apareceu na livraria Universo, num dos eventos promovidos pelo João Carlos Raposo Nunes e aos quais acorria sempre com boas expetativas, nunca saindo fraudado. Pareceu-me ter um corpo estreito, magro mesmo, não muito alto e estar em torno dele aquele pequeno templo em que a penumbra não só protege como esclarece o excesso de luz. Eu vou também falar-vos, porém, de outro Telmo. Não sei se nesse evento, creio que em um posterior, ele disse-me que gostava de me ver, achava-se um bom português, dos antigos – e eu não percebia qual o ponto irónico onde ele queria que eu chegasse. Com aquele sorriso típico, de jogador de bilhar e de sábio discreto, onde a ironia era um dos rostos da bondade, ele me ajudou: “sempre que o vejo vem com uma nova mulher. E bonita!”. Rimo-nos os dois. Eu não me ri do elogio ao macho, ri- me da agilidade percetiva e do recado que vinha nas palavras e da amizade da achega. “E bonita” ele disse para ser também simpático à mulher que no momento me acompanhava. Mais tarde falou-me, em Estremoz, do José Manuel Capelo e percebi as virtudes que nele apreciava para além dos defeitos, apesar dos defeitos, que todos temos mas em pessoas como o Capelo são sempre mais visíveis, mais evidentes.

Outro dia, em Setúbal também e por ocasião de outro evento na Universo, fez-me umas breves perguntas sobre a Fábula da captação do elemento desvairado, uma pagela que o mesmo Capelo me publicou e talvez seja o único livro interessante que dei a ver, até pelo seu barroco, pela rudeza com que lá pus o começo e o fim das reflexões. Aquilo era para mim uma teoria do conhecimento e a parceira teoria política, pois o conhecimento e a política, tanto quanto o rito e a lei, não vivem separados. Um conhecimento etimologicamente etimológico.

O António Telmo, começando por muito me elogiar, perguntou-me do que resultara o livro. Eu fui-lhe respondendo, com metafísicas palavras pelo meio, o que tornava a resposta nublada em excesso. Ele sorria com aquele sorriso irónico e benévolo de parceiro mais velho. Logo em seguida, precisava a interrogação: mas eu perguntava-lhe era mesmo como foi que o escreveu, em que momento, estava sentado, em pé?, o que tinha feito nesse dia ou nesses dias, quando é que lhe ocorreram as primeiras linhas? E deu-me duas possibilidades. A segunda – os críticos literários dirão que era a da inspiração – ele a narrou com pormenores muito concretos: era a exata narração do que sucedera. Surpreendi-me. Como é que ele podia saber disso tão bem? Conseguindo repor-me e voltar ao diálogo, contei-lhe o que a memória guardou desse breve processo, com os pormenores que me pareceram momentaneamente pertinentes (lembro-me de que isso incluía a lua, a noite, essa noite específica e física, ou ambiental). Ele recolheu o rosto, sério, e murmurou: pois, era o que eu imaginava. Era mesmo. Depois ainda me perguntou: e o Francisco não pensa mexer nesse livro? Disse-lhe que não, que por insegurança quanto aos resultados, era melhor não mexer. O que ficou no ar, ou no silêncio e no olhar dele, acho que foi um percurso que eu me recusei, sem bem saber, a palmilhar. Um dia, um discípulo do António Telmo, que vi ocasionalmente em Vila Viçosa, disse-me, amigável, a mão sobre o ombro sem que isso me parecesse paternal (pelo contrário): “o Francisco também já é nosso”. Por um dos contextos da conversa, pensei que ele falasse dos alentejanos. Ele acrescentou: “não é propriamente nosso irmão, mas um parente muito próximo, digamos, um primo chegado.” Depois cada um seguiu o seu rumo.

Não vos venho, portanto, falar do sábio, não tenho competência para tanto. Comecei, confesso, a interessar-me pela pessoa. A pessoa dele era, para mim, simultaneamente, um mais velho e um lutador com sentido do jogo que é a luta. Vocês lembram-se da Natália Correia? O José Manuel Capelo falou-me da relação dele com ela por termos de domínio: cada um tentaria dominar o outro, ser preponderante sobre o outro e essa luta é que lhes dava gozo. Não se passava propriamente isso entre mim e o Telmo, passava-se quase o oposto: eu fugia (não é o termo certo, mas ainda não achei o trunfo), se eu fugisse ele acariciava, elogiava, chamava, dizia coisas interessantes, eu percebia o ardil do jogador e atirava-lhe perguntas que me inquietavam, ele percebia o ardil do tímido e respondia que essas perguntas requeriam (digo nos meus termos) uma aprendizagem e um convívio diferentes. E silenciávamos. Ele encontrou um ponto de contacto entre nós, a partir da geografia. Eu tinha ido morar muito próximo de Evoramonte e, a propósito disso e do facto de ter eu também ascendentes judaicos, ou hebreus, ou semitas, falou-me brevemente da origem possível daquela pequena vila, talvez um núcleo de marranos. Falou-me do ferreiro, que por acaso conheci e com quem conversei um pouco mais depois desta conversa. Homem de suas sombras e discrições, falando pouco e deixando no silêncio os recados. Mas a conversa vinha dar a um padeiro e, por ele, à arte de fazer o pão. Disse-me que me queria apresentar o sr. Inácio Ballesteros (acho que era Inácio). Pessoa doutrinada, cortês, discreta, com o sentido espiritual do pão. Conheci-o e gostei muito de o conhecer, embora tivesse convivido pouco, falado pouquíssimas vezes com ele. Curiosamente, as poucas vezes em que nos vimos cumprimentávamo-nos primeiro com os olhos, por um olhar quase cúmplice, familiar também. Depois o resto eram palavras breves.

As minhas conversas com o António Telmo andavam também por aí: pessoas concretas, comentários – nunca maldosos, mas por vezes maliciosos e sempre deixando reticências que me levavam a pensar, não nos enredos e nas intrigas, mas nas pessoas e na simbologia possível dos acontecimentos em que se manifestavam. Isso, porém, eu já pensava sozinho, quero dizer em silêncio, mas parecia-me que ele se apercebia e que me deixava ficar assim. Raramente esperto (quero dizer: esperto como raros o são), perspicaz, aquele filósofo-jogador – amigo da sabedoria, conhecedor do desconhecimento, ou do acaso caso prefiram. Talvez eu lhe tenha pedido para me falar mais dele como jogador. Eu sempre apreciei pessoas para quem a sabedoria nunca está separada da vivência. É como a hipótese e a experiência na metodologia científica de Popper: anda-se entre as duas constantemente aprendendo. Se quisermos aprofundar, é como o sujeito e o objeto do conhecimento na filosofia de Leonardo Coimbra: interpenetram-se, influenciam-se e conhecem-se melhor por isso mesmo. Disse-lhe que apreciava nele a ligação do sábio e da vida, a vivência do sábio nas atividades comezinhas, aparentemente insignificantes, ou nas distrações para, aparentemente, matar o tempo. Nem nos apercebemos da importância desta frase que agora me veio aos lábios e aos dedos: matar o tempo.

Bom contador, como demonstrou no Bateleur publicado pelo Capelo, sempre falando com pausa e sublinhando com o tal sorriso irónico mas amável, em tom baixo ou moderado me contava curtos episódios locais, com traços mínimos retratando personagens. Como quando lançava chistes, eram contações que deixavam no ar qualquer coisa. Mesmo a simples nuvem que passa deixa – quantas vezes? Inumeráveis (e não pela quantidade) – sim, deixa no ar qualquer coisa. É como o Espírito. Será que ele me falou disso também? Toca e só depois de nos tocar e ter ido nos apercebemos (bruscamente?) de que passou por nós algo não definível.

Nos curtíssimos contos, alertava-me para a perspicácia, o bom jogador, o bom caçador, não têm só pontaria no gesto, mas, antes e durante, pontaria na perceção do ‘inimigo’, do ‘rival’, do ‘outro’, da ‘caça’ ou do ‘parceiro’, da ‘manha’ (falou- me da etimologia de ‘manha’ e de ‘mania’), da simulação. Será que isso acontece nas touradas? Por acaso foi comentando as touradas que me falaram pela primeira vez no António Telmo. E depois ouvi-o falar nas touradas, ao vivo recolhi essa tradição de que elas ocorrem somente em países onde há tremores de terra. Não quer dizer que há sempre touradas em países onde a terra treme, mas que sempre treme a terra nos países onde se fazem, por tradição, touradas. Como é meu hábito, joguei-lhe alguns exemplos opostos. Ele explicou-me pacientemente que eram episódicos e impostas as touradas lá politicamente, a partir de fora. Eram, de facto, eu só lhe joguei uma simulação escorregadia como todo o jogador costuma fazer para testar o adversário. Não foi nunca falta de respeito, mas sentido de que a aprendizagem é também desafio, incluindo o desafio do aprendiz ao mestre. Porém, não me considerava um aprendiz, apenas um companheiro muito novo, um miúdo, perante um mais velho bastante sábio, que eu nunca venceria fosse qual fosse o jogo – o que mais ainda me estimulava.

Fomos jogando assim na vida, esporadicamente pois era raro nos vermos. Essa brincadeira de simulações e de avanços e de recuos (esses os meus) era a nossa brincadeira. Entretanto, ele desapareceu. Alguns tempos antes, eu dizia-lhe que o sentia (depois de uma crise que teve) como se renovado, o olhar mais vivo, mais brilhante, sentia-se uma energia rejuvenescida, falei-lhe nisso acompanhando o seu passo já pouco ágil e menos vigoroso do que o do caçador. Caminhávamos naquele extenso parque de automóveis naquela tarde sem carros, em frente à Câmara de Estremoz. Havia aquela bela Igreja do lado oposto à Câmara, com a porta grande voltada para Évora-Monte (mantenham a maiúscula do meio e o hífen, por favor), e dois cafés-restaurantes onde habitualmente nos encontrávamos, à direita do parque quem viesse da Igreja e de Évora, à esquerda quem viesse de Espanha e da Câmara Municipal. Mas isto não seria simbólico para mim. Sentia só, fisicamente, um excesso de luz e pensei que fosse de estar o parque deserto e brilhar um sol esplendoroso num céu limpo.

Sabem o que ele me respondeu? Fecho com isso o meu reles depoimento, aliás de jogador eterno aprendiz porque nunca cheguei ao fim de nenhum jogo. Ele disse: “sabe, Francisco, o corpo vai decaindo, conforme a alma se torna mais ágil.” E partiu. No sentido estrito em que nunca mais o vi. Para um bom jogador, o corpo é inseparável da alma, pelo que deduzo que ela o transporta consigo e não há razão para entulharmos os ossos num cemitério.