VOZ PASSIVA. 12
A foto, ainda inédita, da autoria e do arquivo pessoal de Paulo Samuel, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra, mostra-nos António Telmo, no uso da palavra, e Pinharanda Gomes numa das mesas do Colóquio "Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa", que se realizou no Porto em 1993. O ensaio, que agora publicamos, de Pinharanda, reflecte a comunicação de encerramento por este apresentada ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", promovido em 14 e 15 de Fevereiro de 2011 em Lisboa pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Amplamente informado, trata-se, do ponto de vista da biografia de António Telmo, de um documento da maior importância, mormente no que toca às raízes raianas e beirãs do filósofo. Ao longo de 2014, publicaremos nesta página o que Pinharanda escreveu sobre Telmo e as páginas que este dedicou ao condiscípulo, autor do Dicionário de Filosofia Portuguesa.
No signo da Raia
J. Pinharanda Gomes
1. Que António Telmo era meu compatrício de Riba Coa e, portanto, lustre das terras arraianas entre a Beira e Castilla/ Léon, só vim a sabê-lo depois de 1969, e julgo ter a prova substanciada em omissão. Durante o ano anterior, e pelo menos até meados do ano seguinte, procedera à montagem e elaboração do Dicionário de Escritores do Distrito da Guarda (Ed. Pax, Braga, 1969). De e não dos, por estar ciente de que os recenseados seriam apenas uma parte do todo. Apesar do apelo publicado em vários jornais, e do considerável afluxo de informação recebida, incluíndo livros de natureza regional (que depois doei à Biblioteca do Sabugal), nem todos os vivos deram sinal de vida.
Ora, em Almeida, o decénio que vai de 1920 a 1930 ficou assinalado pelo nascimento de pessoas que se notabilizaram, entre elas o humanista Américo da Costa Ramalho (1921), o compositor e salmista Bernardo Terreiro (1921), o filósofo Orlando Vitorino (1922), o professor e ensaista Eduardo Lourenço de Faria (nascido na freguesia de S. Pedro do Rio Seco, 1923), o poeta e psicólogo Sá Vieira/ Álvaro Terreiro (1925) e, enfim, António Telmo (1927), irmão de Orlando. Com este, beneficiara do estabelecimento de relações, pelo que teve lugar no Dicionário. António Telmo e Eduardo Lourenço foram omissos, por carência de atempada informação, o que deveras lamentei. Houve mais casos, infelizmente, e, depois, pelo menos durante alguns anos, juntei novas entradas biográficas à obra que, na falta de reedição, depositei para consulta no Arquivo Distrital e na Biblioteca Municipal em fotocópia.
No caso de Eduardo Lourenço, não tinha dele pessoal conhecimento, a Telmo conhecia-o pelo menos da época em que publicara a Arte Poética (por ela me foi dado escutar garbosos elogios ao Autor), mas a sua origem não veio à conversa. Na ignorância, parecia não haver motivo para indagar se ele era do Distrito, de resto, pela minha parte havia algum pudor em fazer perguntas biográficas nas “conversas de café”, desde que, certo dia, a alguém que desejava saber algo da sua biografia, Álvaro Ribeiro replicou que, naquela tertúlia não se tratava de vidas pessoais.
No entanto, em 1983, no inventário intitulado A Imprensa da Guarda, abrangendo a maior parte dos concelhos distritais, já Telmo aparece referenciado e como irmão de Orlando Vitorino. Mais tarde, de ambos, redigi as respectivas breves notícias bio-bibliográficas, por deferência do Doutor João Bigotte Chorão, para a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo (Volumes 20 e 21). No ensejo, sugeri que fossem noticiados outros autores, como Marinho, Quadros, Sant’Anna, Cunha Leão, Dalila, Alexandre Coelho, todos nomes da “Filosofia Portuguesa”, tendo o Dr. Bigotte Chorão acedido à ideia. Tais artigos, alguns actualizados, foram recuperados para a edição Século XXI da mesma prestigiada Enciclopédia.
A vila de Almeida era, então, uma decadente vila raiana. Já iam longe os fastos e nefastos dias da sua história militar como fortaleza estratégica, sobretudo durante as Invasões Francesas. Habitada por pequenos agricultores, pequenos comerciantes e funcionários públicos, a vila era sede concelhia e, portanto, local de referência e passagem. Os quartéis, que haviam feito a sociedade e a economia da vila, estavam devolutos. Perto, beneficiando da passagem da ferrovia internacional, um lugarejo, Vilar Formoso, elevado a posto alfandegário, entrava em crescimento económico e social. Vilar Formoso de um lado, e Fuentes de Onõro de outro, ascendiam a principais povoações.
Quanto à vila, consultando os jornais da época (primeiro trinténio do século XX) é possível dispor do elenco dos principais empresários. Entre eles, os Estabelecimentos de Joaquim Carvalho dos Santos, cuja Família era a mais importante da vila, com seu comércio geral, abastecedor de todas as freguesias. Joaquim Carvalho dos Santos aderira ao partido afonsista, tendo sido Vice-Presidente da Câmara. De imprensa, o mais notório é a sequência de três jornais com o mesmo título – O Almeidense – o segundo tendo como proprietário um rico “brasileiro”, ardente propugnador republicano. Neste jornal, um colaborador assina apenas Carvalho dos Santos, que escreve artigos em prol da “revolução social”. Quinzenário, deixou de se publicar em Abril de 1913, mas, em Fevereiro desse ano, um jurista, natural de Campo Maior que, pela idade era, ela por ela, da geração integralista e poeta, de nome João António Diniz Victorino, chegou à vila, a tempo de ainda assinar uns poemas no dito quinzenário, o primeiro deles sendo a apologia da árvore, cuja festa fora criada nos alvores da República, festa essa em que as crianças das escolas, descalças na sua maior parte, participavam em ardente cortejo, por vezes abrindo com alguma brigada dos “voluntários da República”, uma espécie de “legião portuguesa” para apoio ao novo Regime.
Numa entrevista concedida (2004) ao actor e poeta Américo Rodrigues, António Telmo menciona o avô, o pai, e os tios (seu pai casou com uma senhora da Família Carvalho dos Santos) – Ernesto, José e Teófilo, irmãos de sua mãe.
Na família salientou-se, ainda jovem estudante, José (1893-1967), Director de uma “folha quinzenal académica”, de que foi co-proprietário com Augusto Coelho, A. Silva Pereira, Fausto de Abreu e Aurélio Barros. A “folha” tinha a Redacção julgamos que em casa de algum deles, na Rua D. Diniz 18, junto à Praça Velha, na Guarda. Publicaram onze números desde Dezembro de 1911 a Junho de 1912 (afinal um ano lectivo!) sob o lema “Verdade. Justiça” e pretendia que os estudantes fossem menos oprimidos pelos superiores (do Liceu). José assinava, ora com o pseudónimo Nic Carter, ora com o anagrama Olhavrac. Cremos ser este a quem Telmo considerava o “cérebro da família”, que trabalhou em Angola, foi deputado e ensaísta, sendo de amena leitura o livro Roma. A Mulher e o Amor, obra tardia (1964), e tem lugar no nosso citado Dicionário. Também fundou e dirigiu um quinzenário de transportes, a Revista Portuguesa de Comunicações (Lisboa, 1929-1937). Álvaro Ribeiro ainda colaborou nesta Revista, com um artigo intitulado Páginas dum Caderno Democratista (N.º 96, 1934) excerto de um ensaio que preparava no âmbito da doutrinação do movimento “Renovação Democrática” – A Cultura Dirigida, contra o dirigismo cultural do Estado. Lembremos, de passagem, que Orlando Vitorino foi opositor ao dirigismo, combatendo a política de subsídios governamentais a iniciativas artísticas porque subsidiar geralmente implica ingerir.
Regressando a O Almeidense. Extinto o segundo, doze anos se passaram até que, em Novembro de 1925, o título ressurge, quinzenário, em iniciativa estruturada por membros da família Carvalho dos Santos: Joaquim e, depois, Ernesto, como proprietários; Diniz Victorino como Director, a que sucedeu Ernesto, que também exerceu funções de Editor e de Redactor. O jornal durou até Agosto de 1931, tendo em dada altura passado de quinzenário a trimensário, sedeando por norma na Rua do Convento, a mesma onde Telmo nasceu. Deste jornal quase houve dois perfis diferentes. Enquanto Director, o Dr. Victorino pôs a tónica na defesa dos interesses regionais, evitando cores políticas: “Não é azul nem vermelho, não é branco, nem preto”, escreveu. Apenas defende os interesses de Almeida.
Tendo saído para Moçâmedes, o seu lugar veio a ser ocupado pelo cunhado Ernesto, que repôs o selo ideológico. Suspenso entre 1927 e 1929, já o Dr. Victorino ausente. António Telmo nasceu no ano de aparecimento do segundo modernismo, corporizado na revista coimbrã Presença, muito mais próxima da lirica da “Renascença Portuguesa” do que alguns supõem, apesar de para alguns o nome presença estar carregado de anti-saudosismo.
Ernesto e Teófilo envolveram-se noutro projecto, A Defesa do Concelho de Almeida (1927-1928), que se bateu pelo retorno das forças militares à vila, pois elas eram um importante esteio da vida económica e política da vila fortaleza.
Depois, em 1929, A Defesa suspensa, O Almeidense reapareceu, dirigido por Ernesto. Então, e por curiosidade, a imprensa regional desafecta às ideias do jornal, quando o criticava, citava-lhe o título, seguido de três pontinhos, na forma maçónica.
Anoto, de passagem, que Telmo considerou ter aprendido a clarificar a sua posição face à Igreja e à Maçonaria na esfera de influência de Álvaro e de Marinho, no entanto, curiosamente, seu tio Teófilo, que se distinguiu como activíssimo político, era um homem de uns vinte anos quando Telmo nasceu. Segundo Oliveira Marques, no seu Dicionário, Teófilo ter-se-ia iniciado na Maçonaria, em Lisboa, no ano de 1931. Segundo lemos num jornal de Alenquer, pelo menos nos anos de 1930/1940, costumava recrear-se em tempos livres, numa Quinta na freguesia de Merceana (Alenquer). Não temos por certo se, além de Azambuja, Telmo também passou tempos na Merceana.
O jornal em vista, teve óbvias relações com a Federação da Imprensa Republicana Portuguesa, e divulgou artigos transcritos da revista Seara Nova e de outras publicações. De José Marinho transcreveu um artigo por este publicado na revista portuense Princípio, dirigida por Álvaro Ribeiro, Manuel Maia Pinto e Adolfo Casaes Monteiro. Vivia-se o movimento renovacionista-democrático.
Este longo e maçador registo serve para apenas olhar a paisagem que acolheu a vinda de Telmo ao mundo. Se, nas datas indicadas, Orlando já andava nos 6 ou 7 anos, seu irmão Rui não sei, António era apenas uma criancinha, de pouco, julgamos, se lembrando desses dias, tanto mais que saiu bem cedo da vila, onde esteve algumas vezes, a última das quais por voltas de 1984. Segundo declarou a Américo Rodrigues, na data em que fizera 77 anos, terá vivido 64 em Portugal e os restantes em Angola, Brasil e Espanha, revelando-se literariamente sobretudo a partir de 1957, editando o 1.º livro em 1963, na idade de 36 anos.
A título porventura irrelevante, António Telmo ainda frequentou estudos liceais na época de ascenso do problema da “Filosofia Portuguesa”, (que se reivindicava da herança e sucessão do magistério de Leonardo Coimbra), na Escola Nacional, sita no Largo da Anunciada (Lisboa) junto do Elevador do Lavra, que uma vez subiu com seu irmão Orlando e com Álvaro Ribeiro, a quem, por então, conheceu. A Escola Nacional tinha sido fundada em 1917 pelo então Coronel José Vicente de Freitas (fal. 1952) que também foi Director dela.
Vicente de Freitas presidiu ao Ministério que, por Decreto de 12 de Abril de 1928, sendo o portuense médico José Alfredo Mendes de Magalhães (fal. 1957) Ministro da Instrução, extinguiu a Faculdade de Letras do Porto, criada por Leonardo em 1919. Numa página memorial, António Telmo situa a extinção da Faculdade no signo do “salazarismo”. De facto, Salazar já se tornara financeiro apetecido pelos militares da Ditadura, mas só entrou para o Governo, (Ministro das Finanças) em 27 de Abril, acedendo a Primeiro Ministro em 1932. Sob a sua anuência orçamental, a Ditadura consentiu que a Faculdade funcionasse até à finalização das licenciaturas dos alunos existentes, o que se verificou em 1931.
2. Após a passagem de alguém que se estima para a vida renascida, constitui quase um impossível abordar esse alguém sem compulsivo recurso à autobiografia. Não se trata de nos situarmos no centro da memória, mas apenas de vermos de que modo viajámos com o protagonista.
Nascido no vizinho concelho do Sabugal em 1939, nessa data, nascido em Almeida, António Telmo perfazia os doze anos. Quando obteve a licenciatura (1957), ainda o evocador destas lembranças, por diversos motivos, respirava os ares liceais na Guarda. O conhecimento de Telmo não levou a uma convivência tão frequente como a havida depois de 1960 com os demais da “Filosofia Portuguesa”. O nosso convívio foi espaçado, intermitente, com longos hiatos, derivados das ausências de Telmo noutras terras – Sesimbra, Redondo, Brasil, Estremoz.
Tanto quanto nos lembra, pela mão de Luiz Zuzarte e também por motivação de Afonso Botelho (que conhecera na Causa Monárquica) terei tido a graça de conhecer António Telmo tempos antes da Arte Poética. Luis Zuzarte suspendera os estudos na Faculdade de Direito por motivos de saúde e publicava, de conta própria, uns opúsculos, em papel pardo, com poemas e aforismos poéticos, felizmente reunidos pós-mortem por sua prima Maria Helena em livro. De Telmo e de Zuzarte recordo que tinham algumas divergências, mas a minha impreparação de jovem chegado da província não deu para entender os motivos, embora fosse evidente que um provinha de um ambiente republicano com algum pendor laicista, e outro provinha de famílias monárquicas e tradicionalmente católicas. Zuzarte seguiu uma doutrina como a do personalismo cristão, promovido pela revista coimbrã, católica e integralista Cidade Nova, cujo personalismo defendia, não por influência francesa, mas por recepção da doutrina de Tomás de Aquino.
Quando pude ler com mais assiduidade os escritos de Telmo, e depois de ter visto os meus provincianos horizontes mais abertos, aquando do colóquio O que é o Ideal Português (1962) era impossível não considerar a ascendência de Telmo sobre a ignorância de quem estas linhas escreve. Já conhecera e ouvira Álvaro e Marinho, mas foram as lições de António Quadros, Francisco da Cunha Leão, Fernando Sylvan, António Braz Teixeira, Luis Espírito Santo, Fernando Morgado, Alexandre Coelho, que ajudaram a compreender o significado dos ideais da “Filosofia Portuguesa”, ainda o 57 se publicava com o título Movimento da Cultura Portuguesa.
Se com os outros convivi, com Telmo o convívio escasseou, compensado então pela leitura de escritos (nem todos, por desconhecimento) de sua autoria. Manda a verdade confessar, sem pejo de desprimor, que muitas vezes não me foi dado atingir, por manifesta carência da virtude de discernimento, (que é diacrítica e diagnose) o íntimo significado de seus enigmas, gnomas e figuras de estilo. Só podia considerar Telmo como mestre, com implícito reconhecimento de ser seu discípulo, mas a prudência mantinha a reserva, perante a questão: – Aceitar-me-ia ele como discípulo? E mais: poderia, sem temor, estar certo de que atingira a plenitude dos carismas do discipulato?
Esta evocação está possuída por um apelo à memória das etimologias da vida, que etimologia também significa raiz, a das nossas origens na pequena pátria raiana que, apesar da proximidade espanhola, não perdeu o sentido da portugalidade.
Almeida é berço do mais polémico intérprete da história arcaica de Portugal, que a olhou através de um prisma simbólico-teológico e providencialista – Bernardo de Brito. Assinale-se então o facto de Telmo, com seus próximos pensadores já citados, ter assumido a emergência de Portugal como tema e problema de filosófica, e não apenas política, intencionalidade.
Guardo a esperança de que Almeida saiba acarinhar a memória e a obra deste seu filho (e também dos outros que subscreveram a portugalidade: Orlando e, os irmãos Terreiro) mesmo considerando que fez vida longe do berço. Estes escritores honram a história de Almeida, história essa que é mais ampla do que a debatida história dos (in) sucessos bélicos.
Telmo nasceu na Raia. Repousa em Estremoz. Fez, da especulação secretista, a arte cabálica de mostrar, jamais ocultando. Como se reza no Salmo 138: “A noite brilha como o dia/ e a escuridão é clara como luz”.