VOZ PASSIVA. 119
O filho de Orfeu[1]
[Gramática Secreta da Língua Portuguesa][2]
António Cândido Franco
Mestre, as coisas do Céu são belas e difíceis e fazes bem em apontá-las aos outros homens, mas eu prefiro estudar e descrever as coisas da Terra.
António Telmo, 1992
A poesia de Guerra Junqueiro condensa o momento culminante da poesia portuguesa do século XIX. Antero, com as Odes Modernas, em 1865, garantira para a poesia uma nova seriedade de pensamento, mas sem depois explorar a fundo, quer nos sonetos, quer na prosa de ideias, a profundidade desse livro. A poesia de Junqueiro condensa, assim, a experiência poética mais completa do seu século português e representa o momento privilegiado da condensação do moderno entre nós, ao mesmo tempo que se mostra o momento em que o moderno se assume como um projecto de expressão do espírito.
Junqueiro pertenceu, como de resto Antero, à primeira geração que se pretendeu crítica em Portugal e uma boa parte da atenção com que olhamos para o trabalho dessa geração vem dessa pretensão. A poesia de Junqueiro não se limita, porém, a fazer a crítica do criticado, mas passa com ele a interrogar uma possibilidade de libertação. É por isso que a poesia de Junqueiro, ao nível da sua energia significativa, nos parece muito mais viva do que a dos seus companheiros da geração de 70, incluindo o Eça naturalista. Junqueiro quando fala do criticado – Deus, Pátria e Rei – procura sempre descondicionar as formas rígidas, passíveis de crítica, libertando-as do peso da sua ignorância, o que acontece, por exemplo, com o cura do poema O Melro, tão diferente do irremissível Amaro queiroziano, ou com o Portugal crucificado do poema Pátria, irreconhecível também no Portugal sem remédio de Antero ou Martins. A poesia de Junqueiro realiza, nas palavras de José Marinho, a catarse da matéria aprisionada na sua própria solidez.
Fica a dúvida como é que uma poesia tão vigorosa como a de Junqueiro, constituindo a cumeada do nosso século XIX, pode ser hoje preterida a favor de poesias muito menos significativas, ainda que por vezes formalmente mais perfeitas, como é o caso das de Cesário Verde e Camilo Pessanha.
Cesário Verde e Camilo Pessanha são líricos com um sentido pessoal da elegância do verso e da perfeição formal do poema, mas a sua poesia raramente atinge aquela dificuldade de descondensar a matéria ou de coar o espírito que se confundia em Antero e Junqueiro com o nascimento do espírito moderno em Portugal, e a que a poesia de Gomes Leal ou o pensamento teodiceico de Sampaio Bruno também deram continuidade.
A condição da modernidade tal como Antero a colocou punha o valor significativo do poema, a sua operatividade espiritual no plano da expressão, acima de qualquer perfeição rígida formal. O espírito moderno de que aqui falamos prefere no verso a imperfeição das formas à ausência de profundidade espiritual. A significação em jogo não actua na superfície do discurso, dando-lhe uma elegância contida e regulada, mas revolve as camadas mais profundas. A palavra destes poetas remove, mesmo à custa de enxurradas retóricas, ou imperfeições de forma, a falta de alcance catártico da palavra vulgar, ainda quando passe por elegante ou mesmo por eloquente.
Longino, no capítulo XXVII do seu Tratado, dizia ser preferível um sublime com partes defeituosas a um medíocre com todas as parcelas perfeitas; Sófocles, apesar da ardência inútil para onde se deixa arrastar, será sempre um poeta muito superior a Ion, pese embora a certitude e a perfeição da escrita deste último. Também a grandiloquência de Junqueiro não tem paralelo na elegância de Pessanha ou na correcção de Cesário. Se a obra toda de Ion não chega a valer uma única de Sófocles, como o Édipo Rei, também os versos todos em conjunto de Cesário e Pessanha não podem ser comparados, ao nível profundo da sua significação dramática, com a Pátria de Junqueiro, com o Anti-Cristo [1886] de Gomes Leal ou com esse sublime poema trágico em prosa que é A Ideia de Deus [1904] de Sampaio Bruno.
A elegância do verso lírico dá lugar a poesias debruçadas sobre a medida, que só através da saturação da música verbal conseguem uma marca de sobrenaturalidade, atingindo esferas de descondensação somática; o verso como expressão do sobrenatural dá, por sua vez, lugar a poesias centradas na imaginação, que tendem sempre ao desenvolvimento de expressões complexas e sublimes que compensam imperfeições de forma. O moderno com Antero, Junqueiro, Gomes Leal e Sampaio Bruno passou a ser uma demanda expressiva do mundo invisível, que é o mundo espiritual a ser imaginado ou o mundo material a ser diluído. Foi esse entendimento da finalidade poética como imaginação da dissolução material do mundo físico ou da coagulação do espiritual que tornou a poesia mais que ornamento formal, entretenimento inócuo ou comércio vulgar.
A experiência poética de Junqueiro, naquilo que tem de decisivo, de superior ou anterior a todas as experiências dos seus contemporâneos, aprofundou-se depois na poesia da Renascença Portuguesa ou saudosista. Esta poesia acrescentou à necessidade de interrogação e à intenção resolutiva um sentido universalista e visionário, traduzido na construção de grandes narrativas poéticas em torno de mitos universais, como Adão e Eva ou Apolo e Jesus. A par das formas líricas, que são porém tão livres como as outras, a poesia da Renascença cultivou, na linha de Hesíodo, o poema cosmogónico onde se visionam as lutas da criação original, como acontece nos versos de Corrêa d’Oliveira e Pascoaes, mas também na prosa versicu lar de Leonardo Coimbra, aprofundando a vertente anterior e dando lugar a uma ciência poética do mito que interessa como fundo criador.
Os poetas e pensadores da Renascença Portuguesa, onde se entalham os discípulos directos de Leonardo Coimbra, todos eles activos na última fase da Renascença, desenvolvem na linguagem, mesmo quando se mostram indiferentes à versificação, uma energia de evaporação ou condensação, que é o aprofundamento lúdico do sentido decisivo da libertação da matéria aprisionada herdado da poética junqueiriana. Trata-se, com saudosismo e criacionismo, de desenvolver uma visão daquilo que nos rodeia, capaz de perceber aí mais do que habitualmente se vê. Nesta poética é preciso alterar a percepção imediata do mundo, substituindo-a por outra mais difícil e muito mais profunda, que apresente a capacidade de ver com o pensamento, alcançando assim o invisível.
É por isso que Pascoaes vê numa folha que tomba, uma alma que sobe. A visão é aí uma ideia, a ideia duma compensação entre a matéria e o espírito, a vida e a morte, o alto e o baixo. A folha vesperal que se volatiza em alma ascendente traslada o mundo exterior, imediatamente visível, numa significação metafórica interior, que só os olhos da mente podem alcançar. O que este propósito nos diz é que, no saudosismo, o acto poético é já por si um acto do espírito, um afinamento da percepção do mundo pelo desenvolvimento da imaginação. Mas isto não nos deve levar a olvidar que o apuramento do espírito se faz pelo exercício da linguagem verbal, o que, dito doutro modo, quer dizer que qualquer acto do espírito é, por excelência, um acto poético verbal. A imaginação é sempre, além do fermento que faz levedar a desocultação do invisível, uma questão de expressão.
Daí a possibilidade de considerarmos poesia e pensamento na Renascença Portuguesa como linguagens da imaginação, interessadas em percepcionar níveis invulgares ou ocultos de realidade, e desenvolvendo para isso uma visão, ou construção imaginativa, que tanto garanta o espírito enquanto operação verbal como a poesia enquanto acto ou sentido espiritual. Esse sentido espiritual foi a penetração da linguagem poética na esfera volátil do mundo invisível, fazendo da poesia uma questão de revelação, e não de crítica ou de rigor formal. A poesia consolida-se, com o saudosismo, como uma operação do espírito, mas o espírito também se faz, nesse movimento da matéria para si, uma questão de palavras. A tinta, como suco sensível, dá a ler, através duma estilística rica e muito tensa, ainda quando desordenada e torrencial, o invisível. As dissoluções corpóreas são sempre complementadas na linguagem do saudosismo criacionista, ou do criacionismo saudoso, por coagulações, mesmo que coagulações em que as solidificações dos corpos espirituais dominam sobre as dos materiais.
O que nos aparece como surpreendente nos textos de Pascoaes e de Leonardo é a metáfora material, a analogia das partes separadas ou contrárias, a recomposição imaginativa do mundo dividido, o criacionismo da imaginação, o impulso inovador, não a rima ou a métrica. A poética da Renascença não é uma questão de invenção e primor técnico, ou até de literatura, se por esta entendermos algo como o escrever segundo as regras, mas de criação. O poeta para os saudosistas é aquele que cria ou vê, mas que cria ou vê o invisível, e não o que inventa com a mestria dum saber mecânico. A visão do invisível é a forma que o poeta tem de criar, e de criar em primeiro lugar esse invisível, que para ser criação original precisa de ser algo mais do que ilusão do repetido. A sublime significação do poema está na condensação verbal do desconhecido, não no verso enquanto arte. O valor do poema nasce da revelação do invisível, não da versificação.
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Tudo o que acabamos de dizer sobre o nascimento e o desenvolvimento do espírito moderno em Portugal, serve para enquadrar a criação de António Teimo e constitui a melhor introdução de conjunto que se lhe pode arranjar. Se atentarmos com cuidado que a modernidade nasceu em Portugal como um esforço de significação e não como mera destreza técnica, podemos então estar de compreender já alguma coisa dos problemas mais exigentes que a poética de António Telmo coloca. A excessiva deferência que a partir de certa altura se prestou a poetas sóbrios e a ensaístas elegantes, mas sem a genialidade do sentido mítico-dramático, ajuda a explicar a perplexidade que sentimos diante da obra de António Telmo.
No seu primeiro livro, Arte Poética, livro reconhecidamente dedicado a Álvaro Ribeiro, deparamos com o duplo propósito de elevar a poesia ao pensamento e de descer, da esfera raciocinante, a filosofia ao sensível. Se o pensamento actua pela palavra, a palavra serve de veículo ao pensamento. Esta dupla intenção, servindo de esteio às três partes do livro, é reconhecível à luz do que dissemos anteriormente acerca de Junqueiro, Bruno, Pascoaes e Leonardo.
O que torna significativa a poesia de Junqueiro, distinguindo-a de poetas como Cesário ou Pessanha, é o seu pensamento dramático, a seriedade trágica do seu perfil. Do mesmo modo, o pensamento teodiceico de Bruno é iluminante pela força sensível, pelo exemplo vital, mostrando-se assim mais perto do modelo cativante do mito ou da fábula que da secura rígida do raciocínio ou do intelecto. E isto que aqui se diz de Junqueiro e Bruno diz-se também, de igual modo, de Pascoaes ou Leonardo, cujos textos são muitas vezes longos poemas líricos, de Raul Brandão e Teixeira Rego, que remitizou ainda mais tragicamente que Bruno a filosofia, ou, mais próximo de nós, de Régio e Marinho, que fez a filosofia do incompreensível e da filosofia o incompreensível.
A poesia, diz António Telmo, vive duma sobrecarga imaginativa fora do vulgar, que lhe permite visionar os universos ínferos e recônditos da mente e do mundo, onde volitam as almas e os demónios, seres invisíveis aos olhos do corpo, mas, acrescenta o autor, esse premeditado excesso de devaneio, esse jogo exaltado da imaginação, esse esforço em direcção do invisível, só ganha utilidade e significado a partir do momento em que não perde de vista as interrogações essenciais.
A poética de António Telmo raspa o verniz estético da poesia como entretenimento, aquele mesmo pó-de-arroz contra o qual a modernidade de Antero e Junqueiro pretendeu reagir, e deixa de lado, para sempre, como cadáver repulsivo, a crosta sociológica duma poesia entendida como indústria cultural. A arqueologia crítica de Telmo põe assim a descoberto, diante dos nossos olhos, as intenções da poesia clássica, quer através dos trágicos gregos, quer dos épicos latinos. O que aí encontramos, em estado puro, reiterado de resto pelos dramaturgos e narradores modernos, de Shakespeare a Baudelaire, de Dante a Pascoaes e Cesariny, é um gosto cósmico e abissal, uma ardência imaginativa, um sentido da mobilidade do mundo e das suas formas, que só ganha, porém, o seu alcance fundador na ideia de metamorfose interior transfiguradora.
Fica de lado, mais uma vez, nesta poética, a concepção do poema como forma visível e ostensiva, capaz de receber qualquer conteúdo. Nada mais enganador que confundir a arte poética de Telmo com um manual métrico ou um tratado técnico de versificação. Não são as ideias de ordem e organização que dominam a sua poética, mas antes aquilo que podemos chamar, à falta de melhor, de teor imaginativo ou intuitivo, de impulso criador, se por criação entendermos a substantivação, na linguagem verbal, do espírito incriado. Só esta substantivação, em visões consecutivas ou em sucessivas emergências, é digna do entusiasmo da poesia e da sua aprendizagem, mostrando assim que o poema não é um revestimento formal, uma casca técnica, mas o miolo verbal duma revelação desconhecida.
Por isso, esta poética propõe-nos friamente, no seguimento de Homero e de Virgílio, descer ao encontro dos subterrâneos crípticos e escuros, onde se situam os mundos invisíveis, os mundos ocultos pela opacidade da superfície linear e positiva, num propósito que parece ter alguma correspondência com as intenções freudianas de indagação das dobras secretas da alma ou com os intentos rimbaldianos do videntismo surrealista, mas que desvela sobretudo, pela preocupação do regresso, uma filiação clássica dionisíaca, de sondagem das ínferas camadas dos mortos ou das sombras, naquilo que são as catábases do mundo antigo e dos seus mistérios.
António Telmo estreou-se, em 1963, com um livro poderoso e perfeito, onde a poética órfica das catábases ou da descida aos infernos se esclarece e reactualiza, pondo porventura termo, por um máximo alargamento, àquele novo sentido de modernidade que Antero, Junqueiro e Bruno inauguraram na poesia portuguesa do fim do século XIX e que outro não era que o espírito feito aventura de procura.
O propósito desta nobre família em que ele se integra – e de que ele traça involuntariamente, no seu livro, o rigoroso quadro genealógico, não recuando mesmo em falar dos seus parentescos mais escandalosos (os poetas satânicos franceses) – é o denodo argonáutico de Orfeu desprendendo os barcos que demandavam a luz da Cólquida. E é também o seu esforço descendo aos infernos da noite, com uma lira de fogo nas mãos, não para recuperar a sua alma, essa Eurídice pálida e flutuante como um raio de luar, indecisa como uma sombra volátil, mas para depois, à luz da manhã, no glorioso regresso ao dia solar, reabilitar a harmonia da palavra e a limpidez etérea do canto.
O livro de estreia de António Teimo não foi abandonado. Telmo é um órfico perdido na Trácia do Ocidente, saudoso duma luz original esquecida, exumando, das palavras soterradas, uma lira de luz e fogo, um instrumento capaz de arrancar à escuridão da noite e do esquecimento as almas aprisionadas, volatizar as pedras brutas, amansar os monstros sanguinários que nos escravizam e amedrontam. Tudo isso para depois celebrar, numa terra sublimada, a glória do dia e do sol.
Alguns outros livros de António Telmo vieram continuar o seu propósito inicial, entrosando o sensível e o pensamento e restituindo à arte em geral, e à literatura em particular, um papel superior, uma função iniciática de aperfeiçoamento do ser.
Gramática Secreta da Língua Portuguesa (1981) abre com um texto, “Para um Organon da Razão Poética”, onde deparamos com uma chamada de atenção para as formas de imaginação artística destituídas de dimensão interior transmutativa. O que Telmo pretende é que a arte poética, ou se quisermos o exercício da metáfora, não decaia num jogo gratuito de formas, votado à distracção ou ao aproveitamento do comércio; é preciso que a imaginação artística sirva de veículo ao pensamento filosófico; é necessário não confundir expressão e técnica das formas. Expressão poética e formas do verso podem não coincidir.
Dito doutro modo, a realidade da metáfora deve ser tão viva que transforme e aprofunde a nossa percepção do real fixo. É pela metáfora, quer dizer, pela observação atenta das coisas e das suas qualidades, que se dizem as essências. Só há pensamento, pelo menos pensamento activo, através da palavra. A língua portuguesa pode ser refundada à luz duma razão poética, em que a Cabala desempenha um papel similar à euforia dos daimons. Há que arrancar a linguagem verbal ao estado letárgico da comunicação, restituindo-lhe uma vitalidade criacionista. O real é, como diria Leonardo Coimbra, ideado, não cousado. A criação poética é, pela metáfora verbal, a criação do real ideado. A poesia é criacionista; cria a realidade de que fala.
Mas, sendo a metáfora, na definição de Aristóteles, o “transportar para uma coisa o nome de outra”, é por ela que se estabelece a transformação da coisa e do sujeito. Mudar de nome é também mudar de coisa. Depois duma metáfora certeira e inesperada, o ente deixa de ser o mesmo. As metáforas recriam os seres e aperfeiçoam o mundo. Dão-nos a ver o invisível; fazem-nos perceber o que antes não tinha ainda sido percebido pelos sentidos; revelam o que velado estava. São elas que fazem da arte poética uma arte mimética, mas não uma contrafacção, uma indústria da cópia, ao modo do que acontece com a História. Só pela metáfora se descobre a metamorfose interior do mundo e do ser.
O poeta é um adivinho, não um fotógrafo; o poema é uma cifra – mas uma cifra do indecifrável –, não um retrato. A imitação é criação, não cópia. Eis a parcela de vidência, ou de criação interior, que toda verdadeira arte poética comporta. E eis ainda os limites de toda a arte naturalista ou figurativa, que não saiba alçar-se à abstracção transfiguradora da metáfora. A metáfora poética altera a natureza; desloca e alarga os seus atributos; modifica as aparências com que vemos o real. Capta – melhor, cria – a essência invisível do particular, aquilo mesmo que constitui a demanda do pensamento, e mergulha o mundo ou a linguagem num oceano de universais.
O que importa é elevar a realidade à expressão da sua sobrenaturalidade. O poeta pode tomar como pretexto de trabalho qualquer parcela da realidade circundante; nada lhe está vedado, como nenhuma língua, por mais comum, lhe impede de dizer a verdade que se esconde por detrás da aparência das coisas. O que precisa é de ampliar o olhar sobre essa mesma realidade, de modo a transfigurar esse individual, passando do singular ao universal. A língua, qualquer língua humana, o acompanhará neste solitário trabalho de metamorfose. A realidade histórica ou social é desmantelada pelo poeta e substituída por uma nova esfera imaginativa, fruto da criação interior ou do esforço da vidência.
Existe na linguagem verbal uma verdade superior à vida que nos foi dada. Foi ela que permitiu a Leonardo soletrar a magnífica consigna do criacionismo: O homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro dum mundo a fazer. Enquanto a vida material nos foi entregue já feita e acabada, numa rígida determinação de formas e acontecimentos que têm por finalidade e termo a morte, a linguagem verbal deixa o mundo em aberto, indeterminando eventos, deslocando e alterando formas. Essa verdade superior à vida é a imaginação, a única capaz de deitar por terra os espessos muros da realidade, superando as apertadas condicionantes que nos escravizam a um meio e a uma herança, circunstâncias pequenas, irrelevantes, ilusórias até, mas a que tantos dos mais ilustres, mesmo durante uma longa e esforçada vida, não conseguem fugir uma folga mínima.
Fazer da linguagem verbal o intermediário privilegiado do pensamento, não descurando aquela verdade que nela existe de superior à vida, é o intento dum livro como Filosofia e Kabbalah (1989), que reúne dispersos anteriormente publicados sobre poetas e pensadores portugueses. Mas tal propósito não existe em tal livro, sem uma outra preocupação, a de trazer a filosofia até às formas sensíveis de expressão dramática ou poética, de resto o móbil que o levou a escrever e a publicar em 1963 um livro de filosofia ferozmente anti-intelectualista.
O trabalho de António Telmo foi, assim, mais uma vez, adequar a verdade transcendental às formas presentes e locais da vida, procurando, porém, que estas não sufoquem a harmonia excelsa do pensamento. Orfeu assegura, pelo canto, uma nova seriedade para a língua. Para além da tentativa de disciplinar a desordem da imaginação, vê-se em António Telmo o esforço de adaptar a ordem da vida à aventura da liberdade.
Telmo procura, como qualquer poeta, um equilíbrio de simetria complementar entre a razão das formas e o excesso da imaginação, entre a tirania dos imperativos formais e a liberdade de criação. Nenhuma delas toma verdadeiramente a dianteira; Orfeu zela por uma harmonia entre os mistérios que se revelam, a tremer, na escuridão da noite e o senso apolíneo da beleza extática e da forma diurna. A realização deste equilíbrio é como que uma supra-realidade, onde as noções de caos e ordem, de estabilidade e ruptura, de sensível e inteligível, se confundem ou perdem o seu sentido dicotómico mais vulgar. O movimento transfigurador do mundo não resulta do transformismo da matéria, mas da visão interior do poeta. É ele que assegura a tendência unificadora da metáfora e a contemplação luminosa da essência ou do arcano universal, essa luz central em torno da qual todos os opostos deixam de fazer sentido.
A imaginação volta a ser o agente formativo dum mundo desconhecido, encarcerado na esfera do invisível, pela ilusão da repetição das formas estáticas, que constituem a vida aparente que nos é dada. A metáfora é a expressão dessa acção criadora e libertadora, que funde antinomias e aproxima distâncias. A catarse ou a libertação das formas rígidas da realidade, arrancando o homem e a natureza ao cárcere onde o hábito os aprisionou, é o resultado da metáfora, instrumento da imaginação e do pensamento poético em geral. A metáfora desloca e traslada, mostrando, em sucessivas emergências, que as imagens são as manifestações duma mesma essência universal.
Trata-se duma operação do espírito, um processo interior, que implica uma alteração da percepção do mundo ou uma animação imaginativa dessa percepção, em que o espírito se faz expressão verbal. A metáfora revela sempre dum imaterial, que é o ponto invisível onde a pluralidade da dispersão material se reúne num universal ou, se quisermos, o ponto em que a dispersão dos sentidos, sem colocar directamente em causa os seus elementos sensíveis, encontra a sua unidade psíquica.
Deste modo, o trabalho do poeta parece iluminar tudo o que se tornou opaco, descousificando a vida, libertando a matéria física da prisão das suas amarras, procurando e contemplando o que doutro modo para sempre ficaria aprisionado no invisível. É por isso que Telmo, na introdução ao livro de 1981, nos diz que a cor como manifestação física imediata ou revestimento material dos corpos não é o produto da decomposição da luz, mas antes o resultado da progressiva qualificação da sombra. A treva, ascendendo da terra, multiplica-se, por uma influência involuntária da luz do céu, em cores físicas; as cores, por sua vez, pela acção humana da visão poética, aperfeiçoam-se na sua essência central que é a luz.
A saudade está próxima do entendimento refundador de Orfeu; o aristotelismo da obra de pensamento de António Telmo, a sua disciplina morfológica, é uma das tradições da saudade. Pascoaes chegou a conceber a criação do mundo pela saudade, espírito feminino de Deus, acção de criar. A saudade é, nesta visão, um equivalente da língua, do verbo, da palavra. A saudade aspira ao ausente como a metáfora ao desconhecido. A saudade, lugar de passagem, concretiza a realidade somática por uma transferência formal do espírito para o corpo. A condensação implica, porém, a analogia duma dissolução, acordando assim ecos do solvite corpora e do coagulate spiritum. A saudade dá o nascimento e a morte, a morte e o renascimento, o sensível e o imaterial. Se o mundo nada mais é que a forma opaca do espírito que o poder geral da saudade cristalizou, então o espírito é nada menos que a metáfora luminosa da matéria que, por igual operação, a saudade coagula. O eu é um outro, diz a lição rimbaldiana e brunina, apagando a diferença entre a ipseidade e a alteridade, a matéria e o espírito.
Daí a consigna saudosista de regresso instantâneo ao paraíso; e daí ainda o centro da doutrina saudosista nada ter a ver, no essencial, com qualquer ideologia neolusitanista, mas apenas com o apelo directo à imaginação e às fontes da sua expressão. O neolusitanismo, sem a consciência viva e activa do que está para além dele, degrada-se em forma cousificada do local, em esbracejar cego e inconsequente cio mundo parcial da acção, em pesada cadeia de ferro que mais aprisiona os seres às lutas incongruentes e baixas da matéria e do sangue, e a que falta a substância etérea do pensamento, essa luz que livra os seres do sofrimento.
Assim como assim, na visão da arte poética de António Telmo, um pensamento universal sem o húmus do concreto, um conhecimento sem formas sensíveis de expressão, é nocivo de si mesmo. Sem a terra fecunda onde germinam as sementes, o ânimo apaga-se e a transcendência murcha, debilitada e frouxa; sem um mínimo de dor, o superior é incapaz de se sustentar e desenvolver. O filho de Orfeu aspira à luz e à ordem superior da razão, mas não recusa, ainda que passageiramente, a experiência aterradora das trevas. É no coração da noite e do caos, rodeado dos últimos monstros, do cimento sólido e da cinza, que ele vislumbra a pura e meridiana luz dum meio-dia celeste.
Filosofia e Kabbalah é a aspiração da filosofia à vida sensível das formas dramáticas. Nesse livro, e depois noutros dois, O Bateleur (1992) e Contos (1999), Telmo procurou directamente, sem rodeios, os modos da expressão poética, e em particular, entre eles, o narrativo. É a reafirmação da arte poética, agora através da composição, não da explicação. O conto é, para o autor de “A Dama de Oiros”, o género vivo, capaz de falar da origem e dizer o mistério. A tradição poética preferida por António Teimo foi a da fábula oral e popular. Com a narrativa, com o acto de contar, Telmo encontrou o veículo que até aí lhe faltara, dramatizando o conhecimento, dando-o a entender pelos sentidos, sensibilizando-o em formas intermédias eficazes. Assumindo, através dum género poético reconhecido e arcaico, a dramatização concreta dos problemas da filosofia, Telmo talvez nos tenha querido alertar para algo mais importante que a inteligência. Quem sabe, parece ele dizer, se não é do lado de fora da inteligência, sobretudo da inteligência discursiva, intelectual, que a verdade pode chegar. Esse exterior é a efabulação poética, a imaginação.
Se a poesia, com as suas formas e géneros, é esse lado de fora da inteligência, esse lado capaz de superar a realidade, entendida esta a partir das formas rígidas, densas e opacas a que vulgarmente se resumem nesta vida as coisas e as ideias, então é ela a linguagem dos deuses. Isso não implica, todavia, o sacrifício absoluto da ordem humana do entendimento, e em primeiro lugar da organização linguística tal como ela se perpetua, na comunicação, para ser entendida. Daí o conto ser, por excelência, a dicção órfica de quem, acabando de regressar do coração inominável do mistério, já lá não está. Forma bifronte, análoga ao mito, o conto diz aquilo que não pode ser dito, fala do céu divino na terra dos homens, vê o invisível na teia do opaco, narra a substância do sonho e ensina a realidade do mal.
O itinerário de António Telmo é dos mais curiosos; se ele começa por apresentar, na sua arte poética, uma explicação dos seus propósitos, acaba depois, na parte final, por abandonar qualquer tentativa de explicação, por mais inteligente que seja, tornando-se simplesmente um poeta, que opta por escrever os seus poemas sob a forma de contos. Será a obra estritamente poética de António Telmo mais ou menos importante que a sua obra de pensamento? Será a sua inteligência superior à sua imaginação? São vãs as perguntas, pois este autor teve desde o início a dupla preocupação de se afastar quer do intelectualismo rígido, quer da literatura como distracção. Os seus contos não são, por isso, vazios de inteligência; as suas obras explicativas, como o livro de estreia ou a Gramática, são, por sua vez, criações imaginativas.
Até aqui a obra de António Telmo tem sido para nós um exercício que vive da necessidade de entrosar a acção e o pensamento. O motivo obsessivo do seu trabalho é descobrir e ginasticar o instrumento sensível do pensamento. Esse instrumento é a língua, que ele exercitou nos vários livros a que nos temos vindo a referir. Agora, com os contos, aparece-nos pela primeira vez a referência à realidade do mal, que parece constituir outra das inquietações maiores desta obra.
Desde a História Secreta de Portugal (1977; reactualização no Horóscopo de Portugal, 1997) que Telmo pretendeu dar visibilidade ao maniqueísmo, não para o perfilhar, mas para dele retirar uma verdade poética. Isto quer dizer, que na obra de Telmo o maniqueísmo é menos uma verdade que uma ficção. De qualquer modo, só através dessa ficção Telmo pôde dizer algumas das coisas que lhe interessava dizer, em primeiro lugar aquele excelente argumento que apresentou para a leitura da Ilha do Amor de Os Lusíadas, no Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões (1982).
Podemos usar o maniqueísmo em duas acepções: a primeira, como equivalente das variadíssimas religiões dualistas que existiram no mundo; a segunda, como sinónimo do dualismo espiritualista cristão, aquele que obscuramente resultou do encontro da visão maniqueísta com os textos canónicos do cristianismo, naquilo que constitui demarcadamente uma parte considerável, mas não exclusiva, do heretismo cristão.
A feição que a visão dualista tradicional tomou na corrente maniqueísta cristã, por pouco homogénea que seja, pode delinear-se nos seguintes traços: uma separação absoluta de dois princípios contrários, cada um deles com realidade própria e eterna, Deus e Diabo, o Bem e o Mal; a criação do universo físico-material, tal como é encarada no bereshit hebraico, pertence ao princípio diabólico e não ao princípio divino, o que levou a que no dualismo cristão o Deus do Antigo Testamento surja associado ao princípio diabólico-maligno, num paralelismo evidente com os vários demiurgos inferiores ou Tricksteres que aparecem nos mais variados mitos cosmogónicos dualistas; o Deus do Novo Testamento não se confunde, por isso, com o do Antigo; o Homem e a Mulher são vistos, no contexto desta inicial criação maligna, como simples autómatos de lama, saídos das mãos do Diabo e fabricados com a sua matéria; a sua importância, na hierarquia dos mundos inferiores, não é, todavia, a mesma dos minerais, dos vegetais e dos animais, já que eles se destinam, pela sua perfeição, a ludibriar Deus; para O enganar, o Diabo atreveu-se a roubar almas angélicas aos céus divinos, que incorporou depois nos autómatos de lama, que deste modo passaram a ter uma pequeníssima e involuntária centelha divina.
É essa faúlha que justifica as platónicas saudades das essências celestes que perfumam as redondilhas camonianas de Babel e Sião. Os homens lembram-se das ideias, já que nos primeiros há alguma coisa das segundas. No contexto deste cosmodrama, Jesus, o enviado do Pai, não pode ter natureza humana, capaz de sofrimento, como quer a cristologia ortodoxa, pois tal pretensão equivaleria a admitir para ele uma natureza diabólica. Jesus é, então, em todas as suas partes, um espírito divino, de materialidade apenas aparente, que foi enviado à terra para ajudar as faúlhas divinas a libertarem-se dos cárceres de lama em que o Diabo ardilosamente as encerrou. O projecto acorda a lembrança doutros dois versos de Camões: “as almas soltarão/ Da ferrosa e misérrima prisão” (Canto V, 48).
Eis em traços rápidos a economia do pensamento com duas importantes consequências imediatas: primeiro, uma repulsiva decepção, ou até mesmo uma desgostosa contravenção, pelo mundo da realidade e da matéria, dada a sua peculiar natureza inferior, atitude deceptiva que se estende à História e sobretudo à esperança messiânica de que o tempo histórico esteja dotado de evolutivo sentido libertador, já que o tempo gnóstico terreno, com o eterno-retorno das mesmas estações, dos mesmos meses e das mesmas horas, quer dizer, do mesmo sofrimento e do mesmo mal, é também ele um simulacro inferior da Eternidade ou do tempo celeste; segundo, um esforço iniciático de contacto com os mundos invisíveis e desconhecidos, os céus estranhos e os longes ignorados da Terra, os horizontes primeiros, onde residem o Bem e a Beleza do princípio divino, e que foram a residência original das centelhas roubadas pelo princípio diabólico, esforço que não merece tanto uma exigência de aperfeiçoamento virtuoso em sentido benemérito ou filantrópico, sobretudo no que isso pressupõe de crença redentorista deste mundo, mas muito mais uma tentativa de ver, visionar e visitar, através de faculdades mentais criadoras, os mundos paralelos e superiores, sempre pressentidos como a verdadeira Pátria primeira, essa Sião das redondilhas, numa experiência de conhecimento directo que tem mais de contacto místico que de paciente virtuosismo remissivo.
Acrescente-se uma curiosíssima concepção de casamento, não como sacralização magnânima do encontro sexual entre dois seres, naquilo que pode ser tido como matrimónio sacramental, mas como encontro aplicado de duas inteligências malévolas, que se concentram e industriam na multiplicação da maldade do mundo. As igrejas dualistas cristãs preferem ao casamento como sacramento redentor, e mesmo à união livre entre o homem e a mulher, a castidade e, quando impossível, a homossexualidade ou outras formas não-heterossexuais de solução sexual, já que a episódica e inofensiva satisfação dum instinto, mesmo que nocivo, aparece no dualismo radical como superior ao acasalamento reprodutor. Este é encarado como a pior, a mais perigosa e até a mais diabólica forma de manifestação sexual, pois implica a perpetuação das carapaças de lama e o consequente aprisionamento das almas.
Em última visão, que foi a dos Perfeitos cátaros que se agruparam no derradeiro píncaro de Montségur, os maniqueus cristãos deviam, dada a origem mesma do mundo, tender gradativamente não apenas para o estrangulamento da reprodução biológica, sinónimo do diabólico encarceramento das almas, numa mentasomatose que eternamente as retinha nos putrefactos vasos da esfera terrena, mas para o suicídio místico, que os de Montségur chamaram endura. Vislumbraram aí, nesse endurecimento voluntário e consciente da matéria, a libertação definitiva da centelha divina do cárcere luciferino e a sua livre e imperturbável ascensão para os mundos estrangeiros e invisíveis do demiurgo luminoso e alienígena.
Que tem a obra de António Telmo a ver com isto? Em primeiro lugar, quando se pensa em livros como A Ideia de Deus (1902) de Bruno, o Para a Luz (1904), a Vida Etérea (1906) ou o Regresso ao Paraíso (1912) de Pascoaes, a Oração à Luz (1904) de Junqueiro, A Farsa (1903), Os Pobres (1906) ou o Húmus (1917) de Raul Brandão, os Estudos e Controvérsias (1932) de Teixeira Rego, somos levados a perceber que todos estes autores, que constituem a tradição poética de António Telmo, estão tocados por uma descrença profunda pelo mundo terreno da matéria e por uma ânsia desmedida de evasão, que, em conjunto, acabam por aproximá-los da atitude gnóstica.
Há asserções de Junqueiro na “carta-prefácio” a Os Pobres de Raul Brandão, que, num tópico violentíssimo, soldam a vida ao sofrimento, o que, num plano de equivalência entre Deus e a vida, obriga a encarar a inexplicabilidade do Mal na criação do mundo, questão presente de resto na teodiceia de Sampaio Bruno. Mesmo aceitando que tanto os relâmpagos de pessimismo vital da “carta-prefácio”, aquele “pandiabolismo” ou aquele “satanás-universo”, como o seu eterno pessimismo cosmogónico de tipo dualista – “Deus é, pois, o amor infinito, vencendo a infinita dor” – estão suavizados por um optimismo evolutivo, que vai do círculo infernal hermeticamente fechado à radiosa luz etérea, isso não chega para retirar ao pensamento de Junqueiro o desencanto estrutural, a tragicidade cósmica, o dualismo feroz dos princípios. Em Junqueiro, a luz não parece tanto o produto duma evolução estratégica, como uma realidade separada que, por maravilhados instantes, se contempla.
Em segundo lugar, os aspectos do dualismo maniqueísta que se prendem com as saudades duma pátria superior foram aqueles que serviram a António Telmo para ler o ultimo episódio de Os Lusíadas. A ilha funciona como um mundo alienígena, fora da cartografia terrestre, que tem, todavia, um paralelo formal com o mundo sensível. Estão lá os três reinos da natureza e está lá o homem. Não se trata, portanto, dum lugar sem lugar, imaterial e incorpóreo, perfilhando a pureza absoluta da luz. Todas as formalizações sensíveis existem nele, com a excepção única das sereias angélicas, as nereides, que constituem o elemento puramente divino do lugar.
Assim, a ilha não sendo a natureza, também não é o espírito puro. Trata-se dum mundo intermédio, um mundo imaginado, criado por Eros, em que o corpóreo das formas coexiste com a eternidade e o humano com o angélico. Se por um lado, temos a evasão da cartografia natural, com uma mudança de plano, por outro, as imagens do mundo material e sólido continuam a desempenhar, nesse novo mundo separado, um papel activo. A ilha é uma imagem da língua e um equivalente da saudade.
Telmo isola a ilha de Camões como uma das imagens privilegiadas do plano intermédio, aquele em que, nas palavras do poema, se dá a descida dos deuses ao vil terreno e a subida dos humanos ao céu sereno (IX, 20). A ilha resulta dum trabalho de entrosamento, que lembra o propósito da arte poética em cruzar acção e transcendência, palavra e pensamento. Trata-se sempre do resultado duma intenção criacionista. Neste sentido, Telmo só usa o maniqueísmo até onde lhe interessa. Por um lado, para encarar e enquadrar a existência duma terra celeste, recorre dele; por outro, deixa-o cair, sem nostalgia, quando se trata de negar as formas terrestres. Telmo olha o Céu com evidente agrado e deslumbre, mas não abandona a Terra, fonte do sensível.
No autor da Arte Poética, a ideia pura não pode ser desligada do mundo sensível e material, a não ser que se queira a esterilidade do intelecto puro. A tradição órfica foi certamente elaborada com o recurso a materiais maniqueístas, sobretudo no que diz respeito à teoria duma alma passando de corpo em corpo, viajando de mundo em mundo, mas o que mais impressiona nessa tradição resulta dum equilíbrio entre a terra e o céu. Orfeu aproximou a arte sensível do sentimento religioso da transcendência, mas não deixou nunca de glorificar a Natureza. A sua legenda de argonauta é a dum viajante perpetuamente dividido entre o alto e o baixo, a luz e o sensível, incapaz de negar o rosto de qualquer realidade. Dava por segura a necessidade que os homens tinham de descer aos infernos para subir depois às esferas celestes.
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Apresentamos aqui um pensador da mais alta estirpe que por vontade própria se tem mantido discretamente longe do público e da crítica. Descende duma superior linhagem de poetas e faz parte duma atractiva constelação de pensadores que vislumbraram com olhos de águia, no sol ardente e frio da sabedoria, os arcanos preciosos do espírito moderno português e universal.
O seu par, pela discrição, pela sobrecarga imaginativa, pelo desencanto privado, é, entre os contemporâneos, Herberto Helder. António Telmo e Herberto Helder encarnam, no estádio presente da cultura portuguesa, o diálogo secreto do pensamento e da palavra. No primeiro, a filosofia tem como ponto de partida a arte poética; no segundo, a poesia tem como finalidade a imaginação do pensamento.
A liberdade imaginativa, o clima de delírio ardente e subterrâneo, a marca onírica, a demência torrencial das visões, as alucinações imparáveis e imprevisíveis, a precipitação de imagens insólitas, a
medida visionária, as metáforas escaldantes, e sobretudo as sensações espirituais e as plasticizações transcendentes que irradiam do delírio surrealista de Herberto Helder parecem gémeas da luz intensa, que nos leva a compreender o incompreensível, que palpita na escrita simbólica de António Telmo. Este parece traduzir a frio, nas linhas infinitas da sua prosa, a poesia surreal com que o outro incendiou os versos. Herberto empreende o aprofundamento dos fenómenos e das coisas por um deslocamento do sentido; Telmo revela a metáfora como o instrumento da filosofia.
Tanto Herberto como Telmo fazem parte duma raríssima linhagem de poetas e pensadores obscuros que têm procurado desenvolver uma tradição órfica primordial, em que o canto e a palavra aparecem como a salvação do mundo. Nenhum dos dois sucumbiu diante duma época ostensiva e perdulária, onde frutificam as contrafacções, ainda que para isso tivessem ambos de ocultar o talento, retirando-se para uma zona de sombra e de silêncio, donde não mais saíram por vontade própria. António Telmo publicou, numa vida longa que conta de momento 75 anos, seis ou sete livros; Herberto, quase da mesma idade, publicou poucos mais. Em qualquer deles, este silêncio foi menos secura de inspiração que recusa do comércio e da distracção em que, vezes sem conta, a literatura do tempo tropeçou.
José Marinho, um dos espíritos mais vivos e eloquentes de sempre, lastimava há mais de cinquenta anos o esquecimento e os equívocos que pesavam sobre a aventura espiritual da Renascença Portuguesa. Os altos pressupostos espirituais da poética moderna em Portugal tal como a Renascença a entendeu tinham de entrar em conflito com uma época confessional, dominada pela tentação humanista da História. Esse choque traduziu-se na época de Marinho por uma cultura dominante disposta a adaptar sem qualquer escrúpulo crítico ou de consciência o lado mais perfunctório da modernidade. Agravou-se depois, quando a tentação historicista se transformou no grande e massivo espectáculo mediático de divertimento ao vivo que nos rodeia, numa convulsão destrutiva, que tanto é o impasse do actual escol como a agonia geral da vida e dos seus elementos naturais e humanos.
Aquilo que está a suceder à nossa volta, tanto em Portugal como no resto do mundo, é o ruir da arte poética tal como foi entendida na nossa tradição cultural desde os gregos. A aventura espiritual de Orfeu, como tentativa moral de superar as determinantes da nossa condição visível, libertando pela palavra as almas da morte e fazendo da Terra a morada do amor e do conhecimento, que constituiu outrora o fulcro da nossa civilização, foi substituída por uma ordem fáustica, economicista, bélica, de horroroso encarceramento dos corpos numa natureza agonizante. Não vemos, por isso, soluções para o reconhecimento pela actual cultura de massas das ambições espirituais da Renascença Portuguesa e dos seus poetas e pensadores, nem para a nobilitação junto do público de autores que, como António Telmo, têm como única ambição a demanda da metáfora transmutativa.
O que domina uma época bárbara e desalmada é pouco mais do que ruído, sombra, esquecimento. E isto que aqui se diz em relação à Renascença Portuguesa pode ser dito do mesmo modo em relação ao surrealismo português, que foi, na nossa modernidade, o último momento em que o espírito veio ao de cima.
A obra de António Teimo, tal como aqui a damos a perceber, é uma existência fulgurante, cheia da luz forte de iluminações intensas, arrancadas ao sono e às feridas do mundo. Mais do que a obra dum mago, trata-se da verdade dum curandeiro. Ela cativa-nos mais pelo propósito regenerativo que pelo ilusionismo espectacular da prestidigitação. Capaz de praticar, com o seu talento prático, rendosos truques de magia simpática, Telmo preferiu ajoelhar-se compassivamente, quase em silêncio, aos pés dos seres agonizantes que encontrou no caminho da Terra e da Natureza. Foi com essa atitude que criou a sua obra e escreveu os seus livros. Olhou para o alto e sorriu da sua perfeição; ficou para sempre fiel a essa visão, mas dedicou-se a amar as coisas da terra para lhes minorar o sofrimento e as aproximar do Céu ausente.
Orfeu, o nome iniciático que o filho de Apolo foi buscar a Mênfis, quer dizer aquele que cura pela luz. Depois de Aglaonice, a sacerdotisa máxima dos cultos hecatianos, matar Eurídice, o filho de Apoio ouve em sonhos a voz da sua amada, que lhe murmura apiedada:
– Se queres libertar-me, salva a Grécia, dando-lhe luz.
Assim, António Telmo. Visitando o espaço onde Orfeu conquistou o seu nome, ele trouxe da lá, para nos dar, uma filologia simbólica, pela qual podemos relacionar a arte e a luz, o pensamento e a oração.
[1] Este texto resulta da reelaboração de fragmentos anteriormente publicados pelo autor e dedicados à Renascença Portuguesa, a Teixeira de Pascoaes, a António Telmo.
[2] Nota do Editor – Publicado originalmente em António Telmo e as Gerações Novas, Lisboa, Hugin, 2003, pp. 55-79.