VOZ PASSIVA. 11

17-01-2014 11:34

De António Carlos Carvalho, membro do projecto António Telmo. Vida e Obra de quem, já na próxima semana, vamos publicar o comentário ao inédito télmico sobre O Processo das Presidenciais de 86, de Orlando Vitorino, publicamos hoje o texto da comunicação que apresentou ao Colóquio "A Obra e o Pensamento de António Telmo", promovido em 14 e 15 de Fevereiro de 2011 em Lisboa pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.

 

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Os nomes de António Telmo

António Carlos Carvalho

 

António Telmo tratava sempre cada um de nós pelo nome completo, nome próprio e apelido -- não dizia «Você» ou «Tu».

 

Lembro-me que essa foi uma das coisas que mais me surpreendeu nele, esse sublinhar do nome num tempo em que a importância é dada aos números que todos nós temos, que nos são atribuídos e é por eles que nos identificam, e não pelo nome que recebemos ao nascermos -- tal é o absurdo --, esse nome que nos deram e que se cola a nós ao ponto de a ele respondermos, de reconhecermos o seu poder de apelo.

 

«Habitamos um nome, como habitamos uma casa.»

 

António Telmo ensinou-nos que existe «uma íntima relação entre o nome de uma pessoa e o que ela viveu ou pensou» («Congeminações de um Neo-Pitagórico»).

 

«Os nomes actuam sobre a alma e até sobre o pensamento dos homens que os recebem ao nascer e de acordo com o rito.»

 

António Telmo aprendeu essa importância do nome com o mestre Álvaro Ribeiro, logo no seu segundo encontro. Álvaro Ribeiro disse-lhe então: «Lembre-se sempre de que António Telmo há só um», «é preciso conhecer o ser que tem o seu nome e não outro» (in «Teoremas de Filosofia», 12).

 

Muito mais tarde, evocando o mestre, António Telmo escreveu: «Se soubermos estar atentos aos nomes daqueles que Leonardo Coimbra designou como “a monstruosa variedade dos contemplativos” e que nós diremos “prodigiosa”, o nome de Álvaro Ribeiro aparecer-nos-á bem significativo. Álvaro foi na verdade o mestre do alvoroço.» («Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa»)

 

«O nome em princípio representa a essência sobrenatural do indivíduo.»

 

Ele próprio interrogou o significado do seu nome, como sabemos:

 

«António, Anthos Noû, a flor do intelecto, que é como quem diz, a sua parte suprema que atrai a influência do céu. Telmo, uma forma da palavra Hermes, de Thélêmos, vontade, desejo, aspiração.»

 

E nós, pelo nosso lado, poderíamos acrescentar, seguindo os seus ensinamentos de termos um olhar e um ouvido atentos à letra e ao som, que em António e Telmo nos parece repetida a letra T, a letra grega Tau e cruz de Santo André, o pai dos monges, o eremita do deserto; que no A de António encontramos o Alef e o Alfa, a estilização da cabeça do Touro, que era também o signo astrológico de António Telmo, esse signo que era o domicílio principal de Vénus/Afrodite, a deusa do Amor – e António Telmo, tal como Álvaro Ribeiro, muito escreveu sobre o Amor e a sua Verdade; que dizendo Telmo é impossível não pensar no famoso «Fogo de Santelmo», esse estranho penacho luminoso no cimo das vergas e mastros dos barcos ou uma chama à superfície das ondas.

 

E concluir que António Telmo foi também isso: um insólito sinal de luz e de fogo no meio desta tempestade em que vivemos.

 

Mas António Telmo não se contentou em investigar a essência do nome com que assinava: desdobrando-se «para se ensinar a si próprio», à maneira de Pessoa, e jogando kabbalísticamente com os anagramas à maneira de Samuel Usque e Teixeira Rego, criou um certo Thomé Nathaniel para com ele dialogar e depois explicou assim esses nomes:

 

«Eu tirei-o das letras do meu nome e pu-lo a ser como se fosse a essência da minha alma, o amigo um dia anunciado da minha essência. Thomé Nathaniel é anagrama de António Telmo mas possui virtudes que em mim são imperfeitas, como se patenteia pelos dois H que o constituem, dois sopros ou modos de vida espiritual unificados pelo divino El da última sílaba do nome.»

 

«Thomé Nathaniel é um dos discípulos actuais de Hermes, antiquário em Estremoz. As nossas relações pessoais tinham sido determinadas pelo mistério dos nomes. O seu nome é o anagrama do meu. Uma relação anagramática dos nomes, anagramática quer dizer, cujas letras se dirigiam conjuntamente para o alto.»

 

E nós podemos acrescentar que se Tomé ou Tomás foi um dos Doze, o Dídimo ou Gémeo, o incrédulo do «ver para crer» que depois teria ido pregar para a Índia, Natanael significa «Deus deu» ou «dom de Deus».

 

E, já agora -- o que António Telmo nunca referiu por pudor ou temor --, que EL, Deus, está escondido no nome de Telmo, um nome teóforo.

 

Ora toda esta questão dos nomes é, afinal de contas, como sabemos, uma questão tão velha como a da humanidade: no Génesis, a linguagem torna-se nomeação, conhecer é nomear, e isso é confiado ao Homem, o único ser que dá ele próprio um nome ao seu semelhante; é Adam (que não é um nome) que dá nome aos animais -- e aqui podemos especular se essa nomeação é simplesmente uma classificação zoológica, chamar gato ao gato, ou se será um verdadeiro nome dado a cada animal. (A verdade é que lá em casa cada um dos nossos vinte e um gatos tem nome próprio e reconhece-o como seu: reagem quando os chamamos. Não sei como mas é mesmo assim…)

 

Caim e Abel não recebem nomes, um é «adquirido» e o outro é «vão», «orvalho», «inconsistente», e é então o terceiro irmão, Seth, a primeira criança chamada «filho» na Bíblia, que recebe um nome, um «shem» («shem» vem de «sham», além, dimensão horizontal, aquela onde o olhar ascendente se une à linha de encontro entre terra e céus, «shamaim»), e Shem ou Sem, como também sabemos, é um dos filhos de Noé, daquele de quem todos nós somos descendentes, e que dista dez gerações de Seth. Noé, que indicou a Japhet, o antepassado dos Gregos, que devia residir «nas tendas de Shem», o antepassado dos Semitas.

 

Um bom conselho para a conciliação de Atenas com Jerusalém – como António Telmo procurou fazer nas suas obras.

 

António Telmo, tendo nascido no Reino da Quantidade, pertencia na verdade ao Reino da Identidade.

 

Deus chamava os seus profetas, Abraham ou Moisés, pelos nomes. E eles respondiam: «Hineni», «Eis-me aqui, aqui estou.»

 

O nome é um apelo, um chamamento, um convite à escuta, e não à visão, na solidão do deserto.

 

Neste outro deserto em que nos encontramos, de cada vez que António Telmo nos tratava pelo nome estava também a chamar-nos à responsabilidade do nome que carregamos como um peso ou como uma vocação.

 

A decisão é nossa.

 

Ele, António Telmo, cumpriu o seu papel.