VOZ PASSIVA. 103

20-08-2020 23:36

ANTÓNIO TELMO, DEZ ANOS DEPOIS

E se falássemos de António Telmo?

Pedro Martins

 

 

«Todos quantos podem dizer «nós» pensando na sabedoria esotérica que permitiu à Faculdade de Letras da Universidade do Porto ser uma escola esotérica serão capazes de pressentir, se não o souberam já, o que o discípulo de Leonardo Coimbra pretendia dizer ao invocar o nome de Hermes. A existência de uma sabedoria hermética, demonstrada neste estudo, sabedoria não inconsciente mas subconsciente à filosofia portuguesa, ao ser descoberta poderá traumatizar quem entrou na escola de Leonardo Coimbra pela porta da ortodoxia. A fidelidade ao ensino só poderá manter-se com o reconhecimento do que lhe aparecerá como terrível e inevitável. Qualquer subterfúgio para iludir a verdade frustrar-se-á perante os textos. Será talvez tarde para recuar, mas, se persistir, ao reconhecimento, no sentindo aristotélico da tragédia grega, seguir-se-á a catástrofe e, por fim, havendo coragem e inteligência, a entrada em Colona, onde Édipo, pela mão de Antígona, filha do incesto, ainda hoje exerce a medicina perfeita.»

 

                        António Telmo, in “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa”

 

 

O nacionalismo místico que António Telmo professava de modo confesso prestou-se por certo a equívocos que dele, porém, nunca partiram e de que o filósofo, de resto, se soube sempre precatar. Baste a leitura das primeiras páginas da História Secreta de Portugal para se perceber que nunca o seu nacionalismo foi um nacionalismo político, naquele sentido nefasto que ensombrou o século XX e o mundo civilizado se encarregou de apostrofar.

Ser Telmo nacionalista em mística, termo aliás equívoco, cujo significado se degrada quando o restringem ao domínio da religião, há-de parecer tão legítimo quanto o sê-lo em música um Lopes-Graça; mas esta asserção, que, em sua verdade, deveria parecer óbvia, talvez suscite hoje o esgar policial de uma chusma energúmena para quem mesmo o patriotismo (afinal, uma questão de amor próprio, um modo matinal de enfrentar o espelho) constitui crime hediondo. Terão também de se haver com Portugal, Razão e Mistério, de António Quadros, obra maior desse lídimo interlocutor de Telmo, agora regressada, na plenitude possível, aos escaparates de todo o país.

Não que Telmo curasse de quaisquer soslaios. Nivelando Sérgio por Salazar na balança escandalosa com que aferia a massa plúmbea da nossa decadência, sabia bem o filósofo, para quem a imparcialidade, como por mais de uma vez lhe escutei, era uma condição sine qua non do filosofar, quanto iria afrontar os modos instituídos de pensar.

São assim os livres-pensadores religiosos, atreitos aos códigos austeros do ocultismo que transcende os dogmas. Congeminado sem baias, afrontam os áulicos do fanatismo, esses milionários da fé, como dizia Pascoaes; inscrevendo a palavra Deus no horizonte das suas ideias, decepcionam o fanatismo dos áulicos, tão cheios de si como de verdades chãs.

Distante o fátuo proselitismo da estearina bafienta que aspirava a envolvê-lo, e cujos fautores, afeitos ao comércio de tronos e altares, enfim hauriram as consequências implicadas no excerto de Filosofia e Kabbalah dado à epígrafe destas linhas, o legado de Telmo, na senda de Bruno, Leonardo, Álvaro e Marinho, Eudoro e Agostinho, oferece-se então como porto de abrigo a quantos, sem perda ou ganho de credo próprio, se recusem a aceitar, sem mais, a institucionalização academicista da filosofia portuguesa pelo prisma redutor de um certo leonardismo tardio, a qual, de resto, já hoje arrosta o embate malsão de tensões intestinas cujo centro de gravidade, mostrando-se alheio, e mesmo adverso, ao cerne soberano da Escola Portuense, a esta, por isso mesmo, não hesita em impugnar-lhe a própria existência.

Caso este muito para meditar, o de uma improvável guerra civil, que se diria prestes a eclodir, entre díspares prelaturas, quando o móbil do prélio seja, afinal, um vergel gizado entre o filo-judaísmo redentorista com que Sampaio (Bruno), em seu anelo messiânico, tende, n’O Encoberto, à exaltação da Ordem Maçónica, e o sublime escândalo ebionita que Álvaro Ribeiro re-velou em A Literatura de José Régio. Pois se não for sobretudo isto, senhoras minhas e meus senhores, a filosofia portuguesa, que quereis vós que ela seja?

Se o canto das sereias usa causar naufrágios, a arca de Noé impõe-se ao dilúvio. Por estes dias, António Telmo pode bem ser tido por um autor ignorado da maioria e da multidão. Mas por submersa, ou subterrânea, que a sua influência seja, nem por isso será menos luminosa. E, como o filósofo não raro lembrava, é na obscuridade que as grandes transformações se dão.