VERDES ANOS. 28
Muito recentemente, o escritor e editor Luiz Pires dos Reys, a quem muito agradecemos, deu-nos conta de um artigo publicado por António Telmo no Diário Popular, em 18 de Abril de 1956, que não se encontrava ainda identificado e incluído na sua biografia. Temos hoje o privilégio de o dar a conhecer ao leitor. Este escrito será, evidentemente, integrado no Volume VIII das Obras Completas de António Telmo, que sairá a lume ainda no semestre em curso.
ESCRITORES FIGURAS DE RETÓRICA[1]
Não há quem afirme a possibilidade de se ser artista plástico sem a correspondente habilitação técnica, habilitação de que, pelo contrário, é geral convicção poder prescindir-se nas artes da palavra. Tudo leva a pensar, porém, que a decadência que se verifica, hoje, na literatura, – decadência denunciada, sobretudo, no predomínio do lirismo e da crítica literária –, deriva, em grande parte, da falta de estudos estilísticos.
A estilística, numa definição larga, é uma técnica, é a mecânica da palavra Está demonstrado que falharam as várias tentativas para dissociar o pensamento do seu elemento mecânico, pois, de algum modo, o escritor, filósofo ou poeta, se há-de exprimir por ritmos, por figuras, por fórmulas. São elucidativos neste ponto os magníficos estudos de Jean Paulhan.
Na poesia, são os líricos quem mais combate o valor da estilística. De todos é conhecida a polémica entre passadistas e modernistas sobre o problema da métrica, da rima e do ritmo. Procuraram os últimos abolir da poesia estes elementos, reagiram os primeiros, arrastando, uns e outros, uma luta improfícua. Não se reparou, então, que as duas posições colaboram no mesmo erro, o de considerarem o metro, a rima e o ritmo formas exteriores impostas à poesia. Combatendo ou defendendo tais formas, não viam que elas constituem elementos estruturais da poesia e que, portanto, não são uma coisa que se possa usar ou não usar. Tal equívoco teria, porém, de surgir, uma vez que os passadistas estabeleceram e fixaram leis contraditórias com a originalidade, espontaneidade e fluição da criação poética. Hoje, essa é uma polémica que perdeu actualidade.
O problema para a nossa geração põe-se noutros termos, o de saber quais os ritmos, metros e rimas em que naturalmente se exprime o génio da língua. Neste campo, como noutros, Teófilo Braga aparece como precursor, ao dizer que se toda a língua tem uma fonética também tem uma poética. De facto, é insustentável a posição dos passadistas aplicando leis idênticas a línguas diversas. A verdade é que não sabemos como se esconde a nossa poesia. Remetemos o leitor para o Tratado de Versificação de Amorim de Carvalho, trabalho inovador em muitos aspectos.
O erro dos passadistas consistiu em se atender menos à expressão oral do que à expressão gráfica da poesia. O erro dos modernistas consistiu em não se ver que o metro, o ritmo e a rima – a qual também é aliteração – como elementos estruturais que são da poesia, conquanto ocultos à análise da expressão gráfica, se revelam ao ouvido, uma vez lidos os versos em voz alta. Só assim e compreende que, havendo-se esquecido que a poesia é para ser ouvida e não lida, cantada e não soletrada, se tenha, por um lado, escandido por unidades silábicas, – coisa absurda, visto que a sílaba não constitui elemento musical –, e, por outro lado, no caso dos modernistas, se tenha desprezado o efeito encantatório da poesia a favor dum seu conceito como expressão de sentimentos e até de ideias.
A poesia, permita o leitor a banaldiade, é uma forma de encantamento, mas tão evidente observação é, muitas vezes, esquecida, talvez, repetimos, porque lemos, mais do que ouvimos, os poetas. Adormecemos perante a forma impressa. Desconhecemos o valor do que é oral, a sua potência encantatória. Queremos dizer que a atenção do leitor é desviada para a análise da expressão a ponto de não suspeitar sequer que, se a força das intuições poéticas lhe é transmitida, o é, mesmo durante a leitura, pela audição mental.
Tal descrédito da estilística é estimulado, na prosa, pelos escritores de tendência idealista. O leitor notou que, tanto na atitude dos metricistas, como na dos líricos adversários, está implícita uma noção pitagórica do ritmo, que exclui a noção aristotélica de potência. Atitude idêntica é a que se refere à estlística nas suas relações com a prosa.
Referir-nos-emos somente à negação da eloquência, a qual, a partir dos românticos, foi decaindo até degenerar na conferência ou na palestra, primeiramente escrita e depois lida, numa voz que estabelece entre aquele que fala e o que escuta uma relação em que não há transmissão vivente de imagens, mas prévio acordo ou desacordo de noções, visto que já antes o ouvinte sabe o que vai dizer-se. A arte da dicção, que gradua a voz desde a palavra velozmente ciciada até à palavra proferida com força e destacada como um corpo que se arremessa, é arte que, se continua ser ensinada pelos eclesiásticos, não tem, no corpo do Estado, um estabelecimento que a inclua nos seus quadros de ensino. Tem-se muitas, inúmeras vezes, denunciado a influência da cultura francesa entre nós, tem-se atribuído essa influência às qualidades da língua que a transmite, a sua clareza, a sua nitidez, a sua precisão. Tais qualidades até constituem argumentos contra o valor da eloquência, a favor do frio intelectualismo que dissocia o pensamento das imagens. Mas a língua francesa, inapta para a poesia em virtude da identidade dos seus elementos sonoros, é uma língua de oradores e, mesmo na expressão escrita, influi pela repetição de sons de igual tonalidade, pelo seu incessante martelar, pelo rimar constante das sílabas terminais carregadas de sonoridade. O prosador francês não tem, como o prosador português, de obedecer à regra que manda evitar a rima, regra, de resto, discutível mesmo em língua portuguesa.
Assim, na poesia e na prosa, o prestígio do escrito fascina literatos e filólogos a ponto de não verem a verdadeira função da estilística. As metamorfoses da imagem em forma, figura e fórmula, em som, letra e número, desde o canto épico e a oração eloquente até à expressão seca e descarnada das matemáticas, não só nos elucidam quanto à significação da técnica pitagórica, como quanto à da arte aristotélica. A língua é, com efeito, o mecanismo do pensamento, em sua natureza de mediatriz contraditória da ingenuidade e da sinceridade das almas líricas. Intriga quem medeia, quem intermedeia, como no mundo social, os espíritos casamenteiros. Nesta força negativa da língua, que vela ou mente a pureza do espírito que sente e pensa há, no entanto, uma necessidade a que não pode furtar-se o poeta e o prosador sob pena de esterilidade e de infecundidade. Entre o fixismo da expressão medida e formular e a intuição original que arrebata o pensador, desenrola-se um movimento que se propaga aos outros seres, ao leitor ou à leitora, ao ouvinte ou à ouvinte do poema ou da prosa admirável. Mas sem o domínio da língua, sem estudos estilísticos, sem a meditação do movimento epopaico, o escritor decai forçosamente na expressão fixista, é conduzido, absorvido e arrastado no próprio automatismo das frases feitas, dos lugares-comuns, das associações de imagens correntes na sociedade de espíritos a que pertence.
Voltamos assim ao início deste escrito. Sem habilitação técnica não pode o artista desempenhar integralmente a sua missão. O que é verdade para as artes plásticas é-o muito mais para as artes da palavra, embora a aparência diga o contrário. A língua é uma matéria mais subtil do que as tintas e a pedra, mas por isso exige do artista uma também mais subtil preparação técnica. Enquanto se desconhecer isto, enquanto os literatos desconhecerem isto, a profissão de escritor será desdenhada e os escritores considerados adornos e ornatos, figuras de retórica.
António Telmo
[1] Diário Popular, suplemento Letras-Artes , ano XIV, n.º 4861, Lisboa, 18 de Abril de 1956, pp. 7 e 15.