VERDES ANOS. 23
Afonso Botelho e a estética e enigmática dos Painéis[1]
Quem acompanhou, nestes últimos anos, os protestos da pátria contra o ensino de filosofia estrangeira nas Faculdades de Letras leu, com certeza, o Drama do Universitário, livro em que Afonso Botelho denuncia o erro articulado e fechado que é a organização positivista do ensino. Com a Angústia do Nosso Tempo a Crise da Universidade de António Quadros tal livro representa e defende as reivindicações dos intelectuais dos nossos dias a favor dum ensino que corresponda à comum e geral ansiedade. Todavia, até hoje, nunca nenhum dos professores universitários das Faculdades de Letras apareceu a apoiar publicamente a crítica das novas gerações, pelo que é lícito concluir que consideram perfeita a organização do ensino tal como resultou da orientação positivista do professor Matos Romão.
Este novo livro de Afonso Botelho, que se insere no buliçoso debate à volta dos painéis de Nuno Gonçalves, no qual participam alguns pintores e muitos críticos e historiadores de artes plásticas, constitui admirável meditação dos problemas, métodos e fins da estética. Não rompe, porém, o autor a continuidade da campanha intelectual em defesa da filosofia, porquanto inicia o livro com algumas páginas de crítica aos estudiosos de artes plásticas que receberam uma formação universitária, isto é, aqueles que, incapazes de ler nas figuras, nos símbolos e nas imagens o único pensamento legível, desculpam o seu analfabetismo na falta de documentos para ler. Pena é que tal crítica não incida também sobre os plásticos, mais ou menos comprometidos com o ensino universitário, na medida em que repudiam a verdade estética de que a cada forma de actividade artística corresponderá uma doutrina que, no caso explícito da pintura, desenvolverá o hermetismo das figuras, das formas e das cores. O preconceito de que a pintura é só para ver-se e não para pensar-se também, de que o artista não deve conhecer a legenda, patente ou oculta, que integra a obra plástica numa tradição de pensamento, constitui evidentemente a consagração da estupidez, visto que estúpido é quem não pensa. Almada Negreiros merece, por isso, os elogios do autor da Estética e Enigmática dos Painéis, pois é dos nossos pintores um dos raros que não ignora as relações da arte com a filosofia, embora o pitagorismo o conduza a explicações classicistas e passadistas da pintura, incompatíveis com a teoria «estética, ética e profética», tão luminosamente expressa no livro que comentamos.
Perante este quadro, a Estética e Enigmática dos Painéis aparece como uma obra singular, excepcional e diríamos inédita nos nossos dias, se não existisse a Estética Existencial de António Quadros. Estes dois livros constituem hoje, com efeito, o único ensino português de estética no nosso país, abrangendo na palavra ensino não só o que se divulga por meio de livros, como o que se transmite por meio de instituições. Referimo-nos à Escola de Belas Artes e às Faculdades de Letras. A verdade porém, é que a primeira nem sequer apresenta uma cadeira de estética, como seria primacial numa escola criada para formar artistas, e as segundas incluem no curso de Ciências histórico-filosóficas uma disciplina cuja designação de Estética e História da Arte logo nos esclarece quanto à sua finalidade anti-filosófica.
Pode dizer-se ensino de estética aquele que nos dá os nomes dos reis ou dos arquitectos que construíram este ou aquele Templo, ou as datas em que este ou aquele Templo foram construídos.? É licito considerar ensino de um curso de filosofia aquele que se limita a classificar as obras de arte pelos estilos e a designar as partes componentes dum edifício, como em mecânica se descrevem as peças duma máquina? Constitui uma lição magistral a descrição dos estilos na sua sucessão cronológica ou na sua disposição espacial?
Tal ensino, certamente, não é de filosofia, pela simples razão de que é inteiramente possível ministrá-lo sem a luz duma ideia, sem qualquer espécie de esforço intelectual. É apenas História da Arte, e mesmo assim só de história externa da arte.
Um livro como o de Afonso Botelho representa, por isso, com o já citado livro de António Quadros e a Tradução da Estética de Hegel o maior acontecimento dos últimos anos no domínio das artes plásticas em Portugal.
Quem leu a Catedral de Huysmans e seguiu com atenção, simpatia e inteligência a meditação simbólica que o escritor francês exara ao longo de trezentas páginas está habilitado a prever o que deve constituir o autêntico ensino de Estética. Lícito é lembrar este livro magistral no momento em que lemos a Estética e Enigmática dos Painéis. E tanto mais lícito quanto Afonso Botelho é um escritor de pensamento redentorista, o que, de certo modo explica a sua admiração por Pascoais e Leonardo. Indiferente às disputas dos historiadores, projecta sobre os painéis a luz especulativa duma doutrina pensada na tradição paracletista portuguesa. Isso permite-lhe ver um sistema infinito de significações na pintura, da qual outros apenas recebem a luz baça de um quadro histórico. Pelo estudo do movimento chega a conclusões que culminam na interpretação dos painéis como representação do Espírito Santo servindo-se da analogia para por fim identificar a dupla figura central com Jano ou o novo Adão.
Impossível se torna resumir o pensamento formado num estilo aprendido na escola de Aarão de Lacerda. Convidamos, por isso, o leitor, desgostado, pelo ensino universitário de estética a ler o livro no original.
Antes de terminar esta recensão não resistimos, porém, a transcrever algumas linhas que, aliás, comprovam certa proposição que exarámos atrás:
«A cruz é flor e espalha o seu suave perfume por toda a criação redimida; «árvore, entre todas nobilíssima, que em parte nenhuma tem igual na beleza dos ramos, das flores e dos frutos», como se diz no cântico de Sexta-Feira Santa. Ed. Cidade Nova, 1957.
António Telmo