VERDES ANOS. 20

03-09-2016 14:43

O SOM E O SONO NA PSICOLOGIA DE HENRIQUE BERGSON[1]

 

Entre os erros, já denunciados, do nosso ensino humanista, o da filologia, do curso de românicas das Faculdades de Letras, constitui, para quem saiba ver, um dos maiores que o positivismo produziu. Distinguindo as ciências pelo objecto, o positivismo não admite o principio axiológico de unidade dinâmica, segundo o qual o estudo de cada ciência implica o conhecimento virtual de todas as outras. Assim, a filologia aparece como um especialismo, propriamente como linguística, à qual a sociologia empresta depois uma falsa e fictícia aparência de unidade com as ciências restantes. Não obstante, esses desgraçados que ignoram a filosofia são capazes de se sentirem indignados quando ouvirem alguém afirmar que a filologia não progride sem o estudo das várias modalidades do sono e dos vários graus de cada uma dessas modalidades, de tal maneira que a biologia, a psicologia e a pneumatologia se integram no sistema de conhecimento especial que designamos por filológico. Tal é, no entanto, como procuraremos mostrar, a natureza do ensino bergsonista da filosofia.

Torna-se, porém, necessário fazer um pouco de história, como infelizmente é indispensável neste país nosso de historiadores. A persistência em negar, combater, ou esquecer a filologia autêntica, da parte de quantos a ignoram ou dela têm evasivos sinais, acelera o processo de degenerescência mental que se acentuou entre nós quando o positivismo contaminou os meios cultos que desde os Descobrimentos se esforçavam por encontrar a palavra perdida. Muito bem se explica que aqueles que não foram convencidos nem dominados pelo positivismo se apoiassem, desde então, na autoridade de filósofos estrangeiros, o que deu à expressão do nosso pensamento uma aparência de servilismo, atraso e falta de originalidade, com gáudio dos medíocres que assim puderam conquistar todos os lugares nos jornais, nas cátedras e nos diversos serviços públicos, pela exibição, nos vários ramos exteriores do conhecimento, orientado pela disciplina positivista, de um aparato erudito, conseguido à custa, muitas vezes, do próprio envilecimento. Todavia, aqueles portugueses ainda movidos pela esperança, em breve, se desgostam dos filósofos europeus, para os quais foram atraídos por alguns vestígios, indícios ou resíduos da filosofia autêntica que Pascoal Martins emprestou à Europa.

Tem causado algum escândalo a defesa por Álvaro Ribeiro duma filosofia portuguesa superior à dos outros povos europeus. Viciados polo método positivista de comparação de quantidades, os nossos historiadores, quer sejam poetas, críticos ou ensaístas, são de uma sincera e honesta inconsciência, quando, perante a lista europeia de tantos nomes ilustres, consideram megalomania o que é, dentro dum critério de comparação menos positivista e, por conseguinte, mais qualitativo, simples enunciado de uma verdade evidente. Sem dúvida, a filosofia europeia é inferior à filosofia portuguesa, não só porque representa, do século XVIII em diante, no seu melhor aspecto, uma degenerescência desta filosofia, tal como se exprime no ensino de Pascoal Martins, como, considerada na sua linha cartesiana, que é a  que conta essencialmente para os menos[2] intelectuais, mostra uma pobreza de princípios lógicos tão grande que os próprios franceses, depois de Bergson apenas por motivos patrióticos de internacionalismo político-cultural, por vezes até contrários às directrizes fundamentais do seu espírito, dificilmente mantêm Descartes no ensino oficial de filosofia.

Queremos dizer que, se em vez de compararmos nomes, figuras e números, investigarmos os princípios fundamentais da filosofia europeia, paralelamente com os princípios fundamentais da filosofia portuguesa, não podemos deixar de reconhecer a superior qualificação espiritual do povo que une o Ocidente ao Oriente. Um destes princípios é o da tríplice constituição do homem. A razão porque o indicámos não se esconde a quem souber que da antropologia, até na visão teocêntrica, dependem o valor, a amplitude e a profundidade do todo filosófico. O homem resume o universo, mas pensá-lo implica dissolver a sua imagem sensível para conceber o arquétipo primordial ou espírito vivente.

No pensamento de Bergson, o filósofo que melhor traduziu para o seu país Pascoal Martins, este princípio tende a parecer dissolvido no dualismo da «matéria e memória», da «alma e corpo», da «consciência e vida». Estas dualidades que, aliás, se encadeiam, constituem, porém, pontos de partida, – os pontos de partida da mentalidade comum e corrente, formada pela divulgação do cartesianismo. Porquanto, se retomamos as relações da palavra com o sono, verificamos que Bergson considera essas relações nas suas três modalidades correspondentes aos elementos constitutivos do ser humano: – o sono natural, o sono magnético, e o sono supranormal.

O primeiro, no qual o homem cai, por uma espécie de simpatia física com os ciclos naturais do dia e da noite, pode ser explicado por uma teoria geral da queda, com base na existência do corpo.

A biologia vem explicar o adormecimento ascendente das resistências físicas, pois o cérebro é o último órgão a manter-se desperto. O sonho, porém, oferece-se como um enigma só decifrável pela psicologia profunda. Bergson estuda então o sono magnético, que apresenta maiores analogias com o sono adâmico em que se elabora a criação de Eva. O processo pelo qual se opera esta segunda espécie de sono é inverso do processo segundo o qual se dá o sono natural. A acção dos ritmos, artisticamente dirigidos, do gesto, do sopro e da voz, sugere ao filósofo uma inédita explicação da arte. Pelos olhos se transmite o fascínio das figuras plásticas, pelos ouvidos o encantamento das formas rítmicas. O ritmo essencial é o binário, que encanta, adormece e torna a alma passiva à emanação das imagens do sonho, – ao mito versificado pelo poeta. O modernismo, ao combater o estudo da prosódia, não pode nunca ser confundido com o bergsonismo.

O sono supranormal corresponderá a uma operação do espírito que Bergson designa por intuição. Diz assim um texto conhecido: «Faz por sair de Ti mesmo, como acontece aos que dormem e sonham, mas Tu sem dormir!» Falar aqui de sono só é possível porque antes de passar pelo sono ninguém desperta para a vida supranormal do espírito. Trata-se de fazer a viagem ao contrário, pela absorpção, no centro superior do ser de todos os elementos psíquicos. Mas uma barreira, simbolizada pela queda, impede a passagem para os planos superiores da consciência, e, por isso, o exercício da razão, no sentido bergsonista de inteligência, não nos liberta das condições limitativas do espaço. Ao filósofo importaria ver como Bergson relaciona com uma teoria dos tropos o processo de transmutação interior, desencadeado pela intuição.

Tudo quanto ouvimos e lemos nos contos fantásticos da idade em que ainda não sabemos falar, as metamorfoses dos homens em animais, o aparecimento súbito e espantoso de palácios, a descida aos subterrâneos com árvores de pedras preciosas, é aquilo que a filosofia de Bergson fala transformando em processos lógicos o que o positivismo só pode ver como esquemas pré-lógicos, ao descrever como história a gradual revelação do espírito. Não é apenas, porém, um erro de perspectiva que aqui comete o positivismo. Ao negar realidade à imaginação no plano gnósico, esta doutrina para homens que não esperam nascer segunda vez fica incapaz de, perante os poucos fenómenos que admite, dar a sua articulação em leis com autêntico carácter de ciência. De modo que o positivismo é a menos científica das explicações da natureza e da vida humana, aquela que menos adequa o pensamento à realidade. A natureza é a metamorfose, inexplicável mecanicamente e na humanidade não há nada, absolutamente nada, que se represente por um movimento que não implique a operação secreta de agentes activos.

«Todos os seres, todos os fenómenos da natureza, estão ligados, como se entre eles houvesse fios invisíveis, pelas leis misteriosas da analogia». Relacionando esta bela e sábia frase de Bergson com o quanto nos diz sobre a simpatia e a antipatia dos seres, estamos no limiar duma poética em que os movimentos da palavra não se dissociam de repercussões psíquicas e até físicas. A analogia, como a praticam os cientistas, reduz-se a esquemas mecânicos, constituídos pelas abstracções mentais que elaboramos sobre as formas viventes. Pode então ser formulada uma regra de três em que o termo desconhecido substitui e ilude a causa oculta e activa. A analogia, para Bergson é a evolução criadora do pensamento.

Daqui deriva o interesse do estudo da filosofia, com o fim de encontrar os instrumentos lógicos, os órgãos, o organon do pensamento. Bergson atribui grande importância ao som, na sua modalidade humana. Quem ler, com o ouvido atento, uma página dum livro seu, verifica que os sons das palavras se articulam segundo significações, que não são as dadas pelo arranjo sintático dos termos do discurso. Isto, que à primeira vista, parece um jogo sem consequências na ordem filosófica, à segunda vista, surge como um processo de persuasão de quem sabe que a acção sobre o inconsciente do leitor, sendo embora mais lenta nos efeitos de repercussão remota, é muito mais subtil, profunda e transformadora. À terceira vista, implica uma concepção da palavra e das suas relações com o pensamento, segundo a qual essas relações não se estabelecem pela inteligência dos esquemas visuais, mas pela intuição dos elementos primitivos do som primordial, donde emerge, segundo o Génesis, a primordial luz.

Vejamos agora, porque tem oportunidade, como Bergson via a linguística, propriamente, dentro da mesma ordem de ideias. Ele admitia que os mesmos princípios que explicam o homem singular explicam também a humanidade e o universo. Assim, a sociedade igualmente dorme um sono magnético, no qual as imagens lhe são sugeridas por agentes externos, sobre cuja natureza no Riso se pronuncia mais claramente. Daqui, a importância dos estudos linguísticos, de modo a situar, classificar e caracterizar as correntes mentais dominantes no espaço e no tempo. Quanto diverge este ponto de vista do da sociologia positivista escusado é dizê-lo. As linguagens, na medida em que fixam preconceitos e imagens, são índices exactos do modo como se organizam as influências errantes, errantes porque sem relação com princípios superiores. O princípio de organização é a inteligência, palavra que Bergson usa mal para designar a faculdade de perceber, conceber e realizar um espaço sem qualidades. A noção dum meio homogéneo constitui a base de fabricação de máquinas, dos vários artifícios empregados para captar e dirigir as forças naturais. Analogamente, a língua funciona como um mecanismo utilizável na apreensão das forças subtis e muito mais poderosas da imaginação.

Julgamos chegado o momento de terminar estes apontamentos, mas não queremos fazê-lo sem apresentar as nossas humildes objecções. A poética de Bergson é muito mais uma poética do estilo do que uma poética do símbolo, a não ser que não tivéssemos sabido ler bem. O mundo invisível, a que os filósofos chamam o espírito invisível, pode, com efeito, ser concebido directamente, sem a intermediação de imagens, porque é próprio do espírito conhecer-se; mas a poesia, sendo inferior à filosofia, exprime-se por símbolos que condensam, ou sinalam, ou traduzem as universais significações concretas.

Esta minoração da arte como simbólica coincide, em Bergson, com a confusão dos géneros literários, que não identifica às substâncias, aliás como lhe acontece perante os géneros biológicos. Há, no seu pensamento, a tendência para um monismo místico, muito semelhante ao de Sampaio Bruno, com a sua teoria do homogéneo inicial. A divisão atómica, agenciada pela matéria, há-de corresponder, inversamente no espírito, à permanência dos diferentes, porque só o diferente, concebido como Leibnitz concebe a mónada, assegura o princípio da unidade transcendente. É sempre, porém, difícil tomar posição perante um pensador que só se exprime por cifras.

 

António Telmo



[1] 57, ano II, n.º 5, Setembro de 1958, p. 11.

[2] Nota do editor – É provável que se trate de gralha tipográfica, e que António Telmo tenha escrito, no original, “meios”.