VERDES ANOS. 19

17-04-2016 00:43

Positivismo e filologia[1]

 

Data da formação do Curso Superior de Letras um período de desenvolvimento dos estudos linguísticos em Portugal. A iniciativa de D. Pedro V, cujos altos intentos ainda não foram compreendidos, em breve foi deturpada por quem desviou aquela instituição, abrindo-lhe as portas aos vencedores de concursos de provas públicas e dando uma finalidade utilitária à preparação dos escolares. Este desvio deve-se, primeiro, ao predomínio social da mentalidade iluminista e, depois, com a entrada de Teófilo Braga para o corpo docente daquela escola, à instauração definitiva do positivismo. Mais ou menos positivistas foram os filólogos ilustres que ensinaram linguística e literatura naquela escola superior que D. Pedro V havia fundado com intenções mais elevadas.

Hoje, apesar de todas as vicissitudes da história cultural, a orientação dos estudos linguísticos e filológicos continua a obedecer aos mesmos princípios fundamentais. Propomo-nos neste artigo caracterizar o positivismo implícito ou explícito nas obras dos escritores e professores, aliás meritórios e ilustres, pelos profundos conhecimentos que revelam e pela honestidade dos processos didácticos e científicos, fazendo apelo às nossas convicções religiosas e filosóficas.

Fazer da linguística pura ciência, sem relação com a filosofia e a teologia, parece-nos um erro de que uma das menores consequências será a incompreensão da poesia e em geral da literatura. O positivismo vinha, porém, firmado no propósito de exterminar a filosofia do campo da cultura nacional e humana.

Ao introduzir na linguística a lei dos três estados, afastava do ensino público a verdadeira teoria da génese das línguas, que, assim, passavam a ser estudadas como derivando-se, na linha recta do progresso humano, de uma hipotética origem empírica, marcada pelo encontro do homem com os outros homens e com a natureza circundante. Servindo-se do darwinismo, pôde fixar o momento daquele encontro, quando no antropóide acordavam, em forma emocional, os primeiros prenúncios da razão. Gritos desarticulados seriam, naturalmente, a primeira forma de expressão humana. Daqui deriva o primado da glotologia, nos estudos linguísticos, pois aquela ciência dá as leis hipotéticas das transformações dos fonemas, com os seus conhecidos fenómenos de aliteração, abrandamento, metátese, síncope, assimilação, de desassimilação, etc. As obras provenientes do «Circulo Linguístico de Praga», de eminentes filólogos, tais como Trubetzkoy, Jakobsen, Martinet, são um elucidativo exemplo exemplo do que a linguística pode produzir no campo da glotologia. Os ensinamentos que contêm são seguidos, com as necessárias adaptações locais, nas Universidades europeias.

Outra consequência da mencionada hipótese da origem empírica das línguas é a nova doutrina ortográfica, se a qual se eliminam, para simplificar, aquelas letras que não têm valor fonético, do ponto de vista da glotologia, tornando-se irreconhecível para as pessoas não eruditas a origem etimológica das palavras. Entre nós, esta doutrina foi defendida por Gonçalves Viana e combatida por Sampaio Bruno.

Outra consequência ainda é a consideração da literatura pelo seu lado fonético, estudo este que é completado pelo da sintaxe e do léxico, incluída neste a semântica. Ninguém ignora, para citar o exemplo mais flagrante, em que consistem os estudos dantescos. Naquilo consistem e, sem mais, em inferências históricas e explicações alegóricas, mais ou menos morais, mais ou menos políticas, que falseiam o significado mais elevado da Divina Comédia. Entre nós, é, sobretudo, elucidativo o caso dos Lusíadas, pelos quais a gramática é ensinada no ensino secundário. Encerrar, assim, em limites tão estreitos as obras literárias mais dignas de admiração seria apenas ridículo se não revelasse intencional esquecimento do pensamento que as origina. Fique, embora, por saber o que o poeta ou o prosador realmente pensaram no plano de cruzamento com a realidade mais profunda, o que importa a esta linguística é verificar os sons e formular as leis que prendem o poeta ou o prosador a um suposto fundo primitivo, o que importa ainda é medir, de um certo ponto de vista, a distância que falta percorrer para reduzir a prosa e a poesia mais belas e significativas ao mecanismo da razão separada e impotente. Pois que, sempre, sempre, os estudos linguísticos em causa irradiam do ponto de referência do homem, em cada momento histórico, a dois extremos: ao primitivo antropóide e ao perfeito antropos.

Filólogos alemães, após a descoberta do sânscrito, introduziram na linguística o estudo comparativo das línguas, procurando reconstituir o famoso indo-europeu, idioma primitivo, de há muito desaparecido, do qual derivariam aquelas línguas que apresentam semelhança irrecusável. Esta hipótese, de inegável fecundidade e que poderia, na verdade, promover a autêntica filologia, foi, porém, interpretada pelos linguistas em modo estritamente histórico e prestou-se, aliás excelentemente, para explicar as anomalias aparentes que, em cada língua, representavam um obstáculo ao desenvolvimento da linguística, orientada pela directriz positivista. Algo, é certo, não se deixa nunca explicar, para o que se introduziu a «explicação por analogia». Como é de ver, as leis de transformação fonética são utilizadas para a reconstituição do indo-europeu, o qual será, assim, resultado da exclusão de todas as diferenças que caracterizam os diversos idiomas aparentados, quando o que aparece como evidente é que essa suponível língua, se língua originária das derivadas suas, tem de as conter concretamente em si, e, por isso, a ser reconstituível, deve sê-lo por um método eminentemente integrativo, método, portanto, que de nenhum modo elimine aquilo que em cada língua é essencial, enquanto significativo. Os caracteres adoptados para o indo-europeu são, porém, convencionais e baseados nos caracteres latinos. Os diferentes caracteres das línguas do mesmo ramo, como os gregos, não são tomados em atenção. Resulta isto, como se sabe, da suposição, feita por mediação historiográfica, de que a linguagem escrita é posterior à linguagem oral, de que o fonema é anterior à letra. O que, porém, é curioso notar, fundamentadamente no que dissemos, é que a linguística vê no indo-europeu aquela língua rudimentar a que atribui uma origem empírica. Não deixa de ter relação com tudo isto o realce que os linguistas dão ao facto de a Bíblia estar, na sua maior parte, tecida com proposições coordenadas, o que mostra, segundo eles, um atraso do pensamento em relação ao actual, muito comprovativo da superioridade da razão.

Referiríamos tudo o que se explica na mesma linha que vimos tentando descobrir na selva espessa e miúda das múltiplas projecções dos estudos linguísticos. Queremos falar em estudos da língua em relação à geografia, à sociedade, à economia, à política, etc. O leitor que consulte a obra de Leite de Vasconcelos terá ocasião de colher informações, fundamentar juízos e tirar conclusões, quanto ao valor destes estudos em Portugal. E sem dúvida que, perante obra de tão vasta informação e inteligência, não deixará de pronunciar-se afirmativamente. Os linguistas, porém, ao cometerem o erro de colocar no início o que só se encontra no fim, na fase saturnina das civilizações dissolutas, tiveram de sofrer as consequências da sua irreflexão. Uma das menores é, como dissemos de início e explicámos ao meio, a incompreensão da poesia e em geral da literatura.

Ao esboçarmos esta crítica, sem pretensões de originalidade, crítica já corrente em meios mais esclarecidos do que o nosso e de que nos dão notícia, aliás, alguns professores mais bem informados, estamos convictos de que ela há-de, pouco a pouco, ser compreendida pelas mais novas gerações e vir a transformar radicalmente a estrutura do ensino da linguística em Portugal.

 

António Telmo



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 6, Lisboa, jun. 1953, pp. 248-249 e 260. Assinado por António Telmo Carvalho Vitorino.