VERDES ANOS. 18
Retomamos hoje a publicação dos escritos com que, em 1953, António Telmo colaborou em A Bem da Língua Portuguesa, o Boletim Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, numa fase em que Álvaro Ribeiro integrava a Direcção desta associação, então a conhecer momentos de grande vitalidade. Para além de nomes como Francisco Torrinha, que fora professor da Faculdade de Letras do Porto no glorioso período leonardino da instituição, e de José Pedro Machado, entre outros, o boletim abre então as portas aos vultos da Filosofia Portuguesa. No primeiro semestre de 1953, além de Telmo, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Orlando Vitorino assinam colaboração nas suas páginas. O facto é, aliás, saudado num artigo de Gaspar Machado, de Julho desse mesmo ano. O artigo de António Telmo que agora recuperamos, saído a lume em Fevereiro, não passou despercebido aos leitores...
Ensino do Português e ensino do Francês[1]
Reconhecida uma vez a necessidade de proteger a língua pátria, ameaçada de completa descaracterização, têm vindo os linguistas combatendo o estrangeirismo, dos idiomas, sem dúvida, o elemento mais profundamente descaracterizante. Desviadamente têm procedido, porém, quando, preocupados com dirimir o estrangeirismo, entre nós, sobretudo, galicismo lexical, não atentam no, evidentemente, muito mais pernicioso e minaz galicismo estilístico. Mais próximas do «espírito da língua» não se hesita em pensar que são as suas formas estilísticas do que os seus elementos materiais.
A menor análise denuncia, nos modernos escritores de língua portuguesa, a obediência repetida ao paradigma da sintaxe francesa. Com relativa facilidade, dependente de uma fácil informação, adquirida ou não adquirida escolarmente, evita o escritor o uso de galicismos vocabulares. O que lhe é ou seria difícil é libertar-se dos esquemas sintáticos que a sua mente aderiu, por um processo mecânico do próprio pensamento. Como factor deste processo está, sem dúvida, a leitura uniforme e repetida de livros escritos em língua francesa, leitura a que, em grande parte, se viu forçado pelas condições próprias do comércio livreiro. Não nos propomos discutir as razões determinantes deste comércio; de qualquer modo, teve anteriores raízes, sem as quais não se explicaria, a passividade do leitor perante o livro. De facto, o conhecimento dos segredos próprios e intransmissíveis dum idioma dá a quem o possui a faculdade de conviver, sem perigo de compromisso, com os outros idiomas, como também a de escrever ou falar nativamente.
Quem considerar a falta, entre nós, de um autêntico ensino que proporcione a livre existência da língua portuguesa, não estranhará, nos modernos escritores, a dificuldade que porventura tenham em evitar, sem arbitrária alteração da ordem dos vocábulos, os esquemas sintáticos importados a que as suas mentes aderiram.
Com efeito, no ensino liceal e técnico a língua predominante é a francesa. Não se percebe que motivos levaram o pedagogista a preferir esta língua às restantes. Não é razão de facilidade didáctica, porque mais próximo do português está o espanhol, falado por milhões de indivíduos. Não é razão de utilidade, nas relações comerciais e industriais, porque nesse caso seria escolhido o inglês. Não é razão de importância científica, porque então optar-se-ia pelo alemão. Confessamos que não somos capazes de compreender porque é que aos estudantes dos liceus e escolas técnicas se impõe como condição indispensável de estudo a aprendizagem da língua francesa.
Compreendemos, sim, que, para recrutar tantos professores de francês, seja indispensável haver, nas Faculdades de Letras, os cursos de filologia românica, porque, para preparar professores de língua portuguesa, existem os cursos de filologia clássica. Contraditoriamente ao sentido do vocábulo que o adjectiva, o curso de filologia românica é, por sua mesma estrutura, o que menos condições oferece de melhoramento do idioma nacional. Senão, veja-se: nele, o ensino do francês tem vincada preponderância sobre o ensino do português. Assim, não se compreende que, sendo um curso de filologia românica e funcionando em país de língua românica, dedique três anos ao ensino prático do francês e nenhum ao ensino prático do português. Não é uma disciplina de filologia portuguesa, pouco menos do que reduzida à fonética, nem uma disciplina de literatura portuguesa, predominantemente historicista, que podem sequer contrabalançar, como se de contrabalançar se tratasse, a acção absorvente que exercem as disciplinas de língua e literatura francesas. Repare-se, além disso, que para o aluno os dois anos desta última são muito mais absorventes do que os respectivos anos de literatura portuguesa. Isto porque, coexistindo uma cadeira de francês prático, o aluno esforça-se por, através das obras literárias, desenvolver os seus conhecimentos de língua francesa. Quem alguma vez aprendeu uma língua avalia bem quanto esta afirmação tem de verdade.
Esta incongruência, verificada pela comparação exterior dos dois ensinos, é, quanto a nós, muito mais assinalável do que a que resulta da comparação do ensino do francês com os ensinos das restantes também línguas românicas, reduzidas a cursos semestrais. É muito mais assinalável, porque não se compreende que um curso de filologia românica, em Portugal, não se organize relativamente ao ensino do português. Nem também se compreende que, em terra portuguesa e para portugueses, um curso funcione ao exclusivo serviço de uma cultura estranha.
O povo francês realiza, no seu apogeu, a cultura mediterrânea. Desta cultura, também chamada «europeia», a francesa representa a perfeição, a fase terminal. Não surpreende, por isso, que a língua que melhor a exprime seja uma língua acabada, facetada, paradigmática. Pelo contrário, a língua portuguesa é uma língua atlântica. A indefinida superfície das águas desperta na alma do nosso povo a esperança numa inefável ilha remota. Connosco um outro mundo desperta. Por isso, dos descobrimentos a interpretação no sentido da cultura europeia é constantemente desmentida pelo mito do Encoberto.
Fácil é depreender agora quanto inibe a nossa língua o seu compromisso com a francesa, se não bastasse já o realce da autonomia idiomática. Seria este momento o oportuno para denunciar o verdadeiro motivo por que, de toda as culturas estrangeiras, a francesa tenha sido a que, no domínio da extensão, mais poderoso influxo exercesse sobre nós, se não nos preocupássemos, sobretudo, em mostrar que o ensino liceal e técnico não está bem confiado aos licenciados em filologia românica, o que, aliás, antes de ter lido estas linhas, o leitor certamente tinha visto já.
António Telmo