VERDES ANOS. 14
«A Razão Animada» de Álvaro Ribeiro[1]
Este novo livro de Álvaro Ribeiro vem confirmar a sua tese fundamental de que a filosofia é uma arte. Tese pela primeira vez defendida entre nós, é de tal importância no pensamento deste discípulo de Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Sampaio Bruno, que aparece compreendida no título de um dos seus livros. De facto, se fosse demonstrado que a filosofia não é uma arte da palavra, todas as restantes teses de Álvaro Ribeiro cairiam pela base. A filologia ou estudo da língua pátria deixava então de poder ser o método da filosofia.
Felizmente para a cultura portuguesa, não é possível refutar esta tese nem as suas consequências, sem cair em qualquer forma de positivismo que defina a filosofia como ciência ou como técnica. Ao longo de uma série de opúsculos e de volumes, este autor acumulou uma argumentação poderosa, cujas provas se vão desenvolvendo na razão directa da compreensão das novas gerações. Neste sentido, é curioso observar que a obra de Álvaro Ribeiro, tão bem acolhida pelos escritores da geração de 50, não logra o mesmo entendimento entre os contemporâneos do autor e muito menos entre os ensaístas já consagrados e prestes a entrar na Academia das Ciências. A prova do que afirmamos está em que o autor não oculta a sua amargura por verificar que, após alguns anos de doutrinação, crítica e propaganda, não conseguiu convencer as autoridades responsáveis a substituírem o ensino das filosofias estrangeiras pelo da filosofia portuguesa, nas escolas públicas, nomeadamente nos liceus e nas universidades.
Em Portugal, o valor dos livros e dos escritores estabelece-se em função da opinião pública, que é a opinião dos outros, e não pela leitura e análise directa dos textos. Assim acontece que, a respeito dos livros de Álvaro Ribeiro, já tenhamos ouvido os juízos mais contraditórios. Esperamos que o leitor os julgue por si próprio e não se limite a confiar na nossa recensão, que tem apenas o intuito de dar notícia de uma obra de pensamento notável, pelo menos quanto ao contraste que estabelece com a mediocridade do ambiente.
A Razão Animada, como o título indica, desenvolve-se no contraste com a opinião medíocre de que o homem é um animal racional e deste modo se justifica o subtítulo do livro, que diz ser um «sumário de antropologia». Efectivamente, se o homem é essencialmente razão ou discurso, enfim, silogismo, é natural que nas disciplinas filológicas tenhamos de procurar as características da humanidade. Por isso, o autor nos propõe a reflexão dos problemas de estilística, poética e retórica, à luz do seu critério antropológico, que expressamente filia em Bergson, mas do qual extrai consequências que o filósofo francês não alcançou. Na consecução deste programa, Álvaro Ribeiro detém-se a estudar os três géneros literários em prosa, (conto, romance e novela) dotando-os da respectiva justificação filosófica, o que, segundo cremos, nunca tinha ainda sido tentado na nossa cultura.
Ante esta luminosa fenomenologia da literatura, empalidecem os livros clássicos de historiadores, tais como Hernâni Cidade, Fidelino de Figueiredo e Teófilo Braga, cujas monografias, por muito prestáveis que sejam ao estudioso, carecem do essencial que é a legitimação filosófica, para não falarmos em críticos e historiadores do nosso tempo que muitas lições podem receber na leitura da Razão Animada.
Seguindo o preceito do seu mestre José Teixeira Rego de que «a literatura é expressão do sobrenatural» e não da sociedade, conforme dizem os positivistas franceses, o antigo aluno da Faculdade de Letras do Porto, hoje o filósofo português de maior audiência nas novas gerações, investiga, na estrutura das obras literárias, o conteúdo filosófico de temas tais como o amor, a justiça e a morte. E dessa investigação, quando levada a efeito com a metodologia adequada, hão-de os estudiosos colher as provas da existência da filosofia portuguesa.
Foi este livro já notado também pelo rigor e pela fluidez do estilo que o escreveu. Difícil é caracterizar uma prosa sem par em toda a literatura portuguesa. Todavia diremos que, para Álvaro Ribeiro, que alude à imagem do remo, as palavras ora são o ponto de apoio, ora representam a potência ou a resistência de uma alavanca poderosa da navegação espiritual, que agora começamos a ver ter sido toda a história da cultura portuguesa.
António Telmo
Liv. Bertrand — Lisboa, 1957.
[1] 57, ano I, n.º 1, Lisboa, Maio de 1957, p. 10.