VERDES ANOS. 10
Problemas do estilo em Sampaio Bruno[1]
Na literatura portuguesa não há mais problemático estilo que o do «portuense ilustre» que escreveu com o pseudónimo de Bruno. É um obscuro, raro e estranho estilo, sobretudo para quem faz da prosa portuguesa uma imagem mais ou menos cingida ao modelo da prosa francesa. Não surpreende, por isso, que tenha sido mal apreciado pela generalidade dos nossos escritores, a ponto de ser frequente dizer-se que Sampaio Bruno é ilegível. De estranhar é que tal opinião seja um pretexto, isto é, sirva para não ler e assim ignorar o pensamento do fundador da filosofia portuguesa. Todavia, dizer-se de um escritor que é ilegível, quando o pensador constitui uma tão poderosa influência, dá lugar a um problema que merece ser meditado demoradamente.
Sobre o estilo de Sampaio Bruno pronunciaram-se também alguns dos discípulos de Leonardo Coimbra. Como o pensamento do autor do Criacionismo de certo modo se funda no pensamento do autor de Análise da Crença Cristã, convém ouvir aquelas opiniões, na esperança de que surja um ponto de vista donde, a luz diferente, seja visto e compreendido o enigmático estilo.
Num aforismo do seu Pensamento Invertebrado, livro publicado em 1934, Sant’Anna Dionísio não exprime opinião diversa da citada opinião geral. Depois disso, até hoje, nada publicou sobre Sampaio Bruno este estudioso de Raul Proença e Antero de Quental, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra e Raul Brandão, do qual o lirismo faz recordar certas páginas da «Carta Íntima» que prefacia a Ideia de Deus. Somos, por isso, constrangidos a tomar aquela opinião por sua, enquanto Sant’Anna Dionísio não nos esclarecer, por escrito, quanto ao que actualmente pensa. Os seus estudos acerca de Pascoais e Leonardo Coimbra, guiados por uma penetrante e admirativa inteligência, se o conduziram até aos fundamentos do movimento renascentista português, levaram-no com certeza a considerar, com melhor sentido horoscopal, os génios e as acções de Guerra Junqueiro e de Sampaio Bruno.
José Marinho foi o segundo a dizer-nos alguma coisa sobre o estilo do autor da Geração Nova. Fê-lo no seu livro O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, editado em 1945: «Leonardo revela sempre maravilhosa espontaneidade. Bruno pertence, pelo contrário, ao grupo de pensadores que vivem na constante exigência, mais ou menos dolorosa, de exprimir uma ideia remota e obscura, sempre fugitiva.»[2] Num estudo que publicou depois na Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XX, apenas teoreticamente se ocupa do pensamento de Bruno. Estilisticamente, na brevidade do parágrafo citado, de certo modo nos elucida. Vemos assim que José Marinho não acompanha a opinião da generalidade. A problemática obscuridade do estilo de Bruno, ele a considera do ponto de vista muito mais fecundo da filosofia pensada pelo filósofo, no grau atingido da inspiração. É, por um lado, a dificuldade de exprimir um pensamento que, por outro lado, profundamente visionário e real na visão, não é apreensível pela razão iluminista e surge em unitiva e secreta obscuridade que vela e revela as verdades invisíveis. Tememos, contudo, não interpretar bem o difícil pensamento de José Marinho.
O que diz o terceiro dos discípulos de Leonardo Coimbra interessa mais ao assunto deste ensaio – ou tentativa –, porque na Arte de Filosofar, agora editada, Álvaro Ribeiro inclui um estudo estilístico, extenso e aprofundado, do autor do Encoberto. Citaremos e resumiremos, incorrendo no ridículo de citar e na deslealdade de resumir, o que nos diz o teorizador da filosofia portuguesa. A páginas 161 do seu livro, escreve: «…se para muitos pensadores é certo que na obra escrita não exprimem algo do muito que queriam dizer, para Sampaio Bruno o aparentemente descosido da sua exposição significava, pelo contrário, a perseguição oculta das suas intuições essenciais.»
Cremos que, no fito de descobrir as normas secretas do estilo de Sampaio Bruno, procura ver, em seguida, quais os processos estilísticos que ele valorizara nos outros escritores. No Porto Culto, seu autor parece dizer-nos que a metáfora é o mais fecundo dos tropos, o que, com efeito e com causa, intimamente se harmoniza com o seu pensamento atlântico, que aventurosamente progride de plano para plano de conhecimento. Álvaro Ribeiro conclui: «A relacionação metafórica de imagens, perfeitamente admissível num pensador que atribuiu à revelação o processo único de aproximação da verdade, mas de difícil seguimento para os pensadores que desejam que o estilo filosófico represente literariamente os processos lógicos da indução e da dedução, igualmente prosaicos, dá causa a que se diga ser a obra de Sampaio Bruno quase completamente ilegível.»[3] Estamos aqui já muito além da opinião geral. Podemos agora atribuir uma significação à obscuridade do estilo de Sampaio Bruno. Muito longe de representar deficiência de expressão, exprime um processo metafórico de transcensão para o ignoto.
Assim se desenham atitudes e se apresentam soluções perante o maior problema estilístico da nossa literatura.
É bastante significativo que o estilo de Guerra Junqueiro tenha sido também combatido pela mesma corrente que se opõe ao estilo de Sampaio Bruno, e é significativo porque são dois estilos, não diremos diversos, mas distintos. Todavia, poeta e filósofo são ambos os fundadores da Renascença Portuguesa. Num país dominado pelo espírito de negação das línguas, nas suas várias formas, mas principalmente na positivista, difícil seria o progresso do novo e original verbo. Na profunda altissonância da voz junqueiriana e na pletórica obscuridade da palavra brunica viu a crítica dos estrangeirados o sinal negativo, como não podia deixar de ser. Se a opinião da maioria é a opinião feita – e a que faz quem não pensa –, o diálogo da Poesia e da Filosofia continuará a seduzir e a mover os melhores espíritos.
O estilo de Sampaio Bruno nunca podia ser bem acolhido pela mentalidade que domina a nossa cultura, porque não é um estilo de tradição helénica. Não o move a preocupação, que os europeus herdaram dos gregos, de fazer literatura. Na tradição portuguesa, que é atlântica, a língua assume uma significação diversa e superior. É muito menos expressão, é muito mais comunicação. Assim, Sampaio Bruno não utiliza as palavras para fazer uma obra literária, não o atrai a exterioridade linear e geométrica das construções literárias que têm por paradigma o edifício de pedra em vez da coluna de fogo. Escreve invocando, confia e espera das palavras a revelação de segredos, mas, para isso, emprega certos conhecimentos estilísticos que aprendeu na tradição que segue. Havendo estudado a prosa portuguesa, soube que há um processo português de filosofar, diferente dos processos utilizados pelos outros povos. Assim parece ter de interpretar-se o que diz do seu próprio estilo no Porto Culto, quando nos informa de que a obscuridade dele é propositada.
Bem se compreende, pois, que, olhado do estrangeiro, tal estilo chocasse os espíritos. Mas, se bem atentarmos, veremos, nos bons escritores portugueses, certas maneiras de dizer pouco claras, mas nem por isso menos dignas de serem consideradas. Para nós, dos exemplos mais altos da língua portuguesa são, na poesia, a Pátria e, na prosa, o Encoberto. Quem, evitando seguir a opinião feita, souber relacionar uma com o outro não mais se enganará quanto à língua em que escrevemos, falamos e pensamos; muita luz fará sobre uma e outra obra dos dois pensadores, e também sobre a real existência da nossa filosofia.
Insistimos em que a animadversidade para com os estilos em que foram escritos estes dois livros não deixou ainda perfeitamente compreender a originalidade e a finalidade da Renascença Portuguesa. Se se considerasse o estilo de Sampaio Bruno de modo a apreender a acção peculiar da sua personalidade ver-se-ia como, afinal, a verificada influência do pensador não contradiz o modo de existir do escritor. Se, ao contrário de Junqueiro, cujo estilo foi imitado por Pascoais e Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno não exerceu literária influência estilística, isso não significa que a Renascença Portuguesa se possa considerar um movimento infundado no autor do Porto Culto. As características do seu estilo, as características do estilo brunico, sinalam uma influência tanto mais poderosa e efectiva quanto menos aparente no domínio da ficção literária. Do ilustre portuense, do portuense ilustre pode assim dizer-se o que de outro ele mesmo escreveu: «a sua acção não se exerceu sobre o instável campo dos factos, mas sobre a zona do espírito eterno, a que os factos, tarde ou cedo, hajam, irremissivelmente, de subordinar-se.»[4]
António Telmo
[1] Diário de Notícias (suplemento Artes e Letras), ano 91, n.º 32136, Lisboa, 11 de Agosto de 1955, pp. 7 e 8.
[2] José Marinho – O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra, Porto, 1945, p. 65.
[3] Álvaro Ribeiro – A Arte de Filosofar, Lisboa, 1955, p. 167.
[4] Sampaio Bruno – O Porto Culto, Porto, 1912, pág. 230.