VERDES ANOS. 08

06-10-2014 09:23

Notas sobre Teixeira Rego[1]

Teixeira Rego é, como Bruno, de quem aliás muito significativamente foi amigo, um pensador obscuro. Pertence ao grupo inumerável daqueles que o positivismo combateu e quis fazer esquecer, embora, por um curioso mas frequente mal-entendido, seja em geral considerado um positivista. A ilusão ou engano de que há pensamento claro e expressão clara – criada e prestigiada pelo iluminismo e pelo positivismo que este preparou, continuada –, ilusão ou engano que sustém a existência de certas seitas pensantes e actuantes, tornou difícil o entendimento do que etimologicamente significa obscuridade do pensamento e do estilo. Entre a coerência de sons, que caracteriza a chamada expressão clara, coerência sempre dependente de uma palavra obscura, e a simpatia de significações que se estabelece nas zonas recônditas e cognitivas da alma humana, não há oposição apolínea de luz e treva, mas gradação especulativa, sem termo, pelo menos sentido, de comparação. Teixeira Rego foi um pensador obscuro, quer dizer, alguém inteligente, alguém que primeiro soube toda a verdade do lugar-comum de que o pensamento só vale enquanto profundo.

Consideremos nele, além do pensador, ou a par dele, o professor, o conversador e o escritor.

Ensinou na extinta Faculdade de Letras do Porto, ali onde ressoava a palavra persuasiva de Leonardo Coimbra. Aí mestrou as disciplinas de História das Religiões, Grego Elementar, História da Literatura Portuguesa e Filologia Portuguesa. Possuía conhecimentos vastíssimos que lhe permitiam ensinar os mais variados assuntos. Houve discípulos que, durante conversas fora das aulas, souberam entrever que pensador se escondia no professor que, na Faculdade, preleccionava somente. Esta Faculdade, a de Letras do Porto, foi criada com o fim de continuar o ensino da Renascença Portuguesa. Só Teixeira Rego, entre os professores que nela ensinaram Literatura, cumpriu tal fim.

Infelizmente nós, os leitores de hoje, dispomos de poucas e breves publicações suas. Ao publicar, fê-lo em revistas e jornais, na «Águia», no «Dionisos», no «Diário de Notícias», no «Primeiro de Janeiro», tendo depois reunido em volumes, intitulados, um de «Nova Teoria do Sacrifício», quase toda a sua colaboração na «Águia», dois de «Estudos e Controvérsias», grande número de artigos dispersos, versando sobre linguística, estilística, literatura, arqueologia, religião, etc. Existe também uma «Pequena Antologia Clássica», em que recolhe textos de autores antigos e recentes, textos que se podem encarar como versões e repercussões literárias da teoria do pecado original. De resto, a meditação do problema do mal, da sua origem e do seu fim, é o que motiva e orienta fundamentalmente o seu pensamento.

De passagem, observemos que a sua colaboração na «Águia» pode fazer luz sobre o autêntico espírito do movimento significado naquele símbolo. Terá de ter em conta as figuras de fundo, de ponderar e meditar a sua acção, quem, no intuito de uma apreensão aprofundada, se proponha estudar qualquer movimento literário ou não literário, de irrecusável efectividade. Assim, lendo neste sentido Teixeira Rego, muito se nos revela sobre as autênticas causas e os verdadeiros fins da Renascença Portuguesa. A teoria da «renascença», que adquiriu superior expressão poética em Pascoais e Fernando Pessoa, recebe em Teixeira Rego o tratamento especulativo que nos permite hoje entrelaçar os nomes do «movimento» e da «revista» em significativo monograma.

Vejamos agora a acusação de positivista, a que já nos referimos, e de ateu, que em geral pronunciam aqueles que falam ou escreveram sobre Teixeira Rego, acusação que, a ser verdadeira, anularia o que acabamos de dizer. Admitamos e concordemos, porém, com o seu inegável materialismo.

A confusão entre materialismo e ateísmo é exterior à filosofia, embora penetrasse no domínio do senso comum por intermédio de professores chamados de filosofia. Se o senso comum fosse, de facto, o bom-senso, toda a gente veria que nada tem que ver uma coisa com outra. Vemos Teixeira Rego preocupado em descobrir os segredos da matéria, mas essa interpretação visa alcançá-la no grau em que já não aparece como sinal negativo de Deus.

A acusação de positivismo parece-nos derivar da sua oposição à metafísica. Tal oposição não traz, porém, o sinal do positivismo. O problema que obsidiava o pensador era o problema do mal. Várias vezes dá a entender que a metafísica, visando separar o espírito das suas condições psíquicas e somáticas, contribui assim para o aumento da dor no mundo do homem e da natureza, contrariando a evolução natural dos seres. Representa, com efeito, a metafísica, sempre uma acção violenta contra a natureza, que, hoje, se encontra referida particularmente a cada ser. E, reflexamente, atribui-lhe a origem de todos os nossos males. Há, porém, que distinguir cuidadosamente entre mal e sofrimento, entre malefício e corrupção, a fim de evitar que, por inversão e subversão dos termos, se dêem novos malefícios.

Não nos surpreende a incompreensão que aqui referimos para com o inteligente, obscuro pensador. Raramente não atinge os homens superiores. Atinge-os, com o propositado esquecimento, pois se vemos citados e elogiados hoje, em trabalhos feitos por linguistas e outros especialistas, homens como Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Adolfo Coelho, filólogos talentosos mas sem génio, raramente lemos o nome de Teixeira Rego. Vemos frequentemente os homens superiores acusados de defenderem teses e assumirem posições que toda a vida combateram. Assim acontece ao pensador que ousa e sabe pensar na sua língua, mas apresenta nas línguas diversas dos diversos leitores o que foi pensado na origem. Na língua dos positivistas se exprimiu demasiadamente o autor da «Nova Teoria do Sacrifício».

Todavia, o seu estilo, correcto, sóbrio, sombrio e grave, menos descritivo do que narrativo, lembra o dos ingleses, particularmente o do americano Edgar Pöe. Profunda, se entrevê, em Teixeira Rego, intérprete original e representante da nossa tradição atlântica, a influência dos pensadores da ilha, como, aliás, acontece também com o autor das «Notas do Exílio». Com eles e também com Max Müller adquiriu aquele saber filológico, para o qual possuía excepcionais dons. Temos, por isso, de encará-lo mais cingidamente neste aspecto.

Para Teixeira Rego, a filologia era fundamentalmente uma arte de decifrar. Quem escreve, inscreve, grava, grifa, cifra, porque o escrito nunca é expressão e pressupõe sempre o oral e o auditivo, numa gradação em que apreendemos o conceito de personalidade e tradição. Descobrir a personalidade e a tradição que se escondem e se revelam ou velam repetidamente, constituiu o fim da investigação literária de Teixeira Rego. Assim aconteceu com o problema da personalidade de Bernardim Ribeiro, que ele dizia ser a de Cristóvão Falcão, apoiando a tese de Delfim Guimarães, como também a do filósofo Leão Hebreu. Estes três seriam heterónimos do judeu Abarnabel, nome que é anagramático de «Bernardim».

O problema dos heterónimos que, como é sabido, tem ocupado para com Fernando Pessoa os modernos investigadores da literatura, relaciona-se com o problema dos pseudónimos. Se, no caso de Fernando Pessoa, este houvesse sido considerado também um heterónimo, diversa teria sido a posição do problema. De resto, personalidade é conceito somente vivo e fecundo dentro de uma teoria evolucionista e, por isso, não nos surpreendem as posições a este problema dadas pelos passadistas.

Evolucionista, Teixeira Rego, da nossa literatura, pôde apresentar uma visão só comparável à de Teófilo Braga. Não copiou, para isso, os métodos lá de fora, nem as fórmulas de decifração que utilizou podem ser aprendidas em qualquer manual estrangeiro de interpretação literária. Os seus estudos de literatura, na sua brevidade e sucintez valem, por isso, muito mais do que muito trabalho extenso. A divisão da história da nossa literatura em períodos paralelos aos que dividem a história da literatura francesa, falsamente embandeirada de universal, não se coaduna nem explica os actos pelos quais evolui o génio do povo. Demonstrou Teófilo Braga que na história da língua e da literatura, no campo evolutivo das formas políticas, na arte e nas ideias, combinam-se sempre dois elementos – um, íntimo, orgânico, criador, outro, exterior, mecânico e separativo. Do primeiro, a apreensão da evolutiva forma somente se alcança por entre dificuldades e erros. Aqueles que não querem errar, porque temem o perigo, preferem fazer história, à sombra protectora do universal fictício, embora, no plano da sentimentalidade subjectiva se mostrem contra os inimigos da pátria, os quais, por vezes, se chamam por um nome derivado deste vocábulo. O bosquejo de «História da Literatura Portuguesa», que Teixeira Rego publicou na «História de Portugal» de Damião Peres, é, na orientação, comparável à «História da Literatura» de Teófilo Braga. Cremos que isto já sugira ao leitor uma ideia deste trabalho.

Impossível referirmo-nos aqui a tudo o que o pensador português escreveu. Não deixamos contudo de observar que essa obra segue um movimento unitário, emerge de uma doutrina única. É a própria doutrina pensada e atingida na meditação audaz e concentrada do cosmos, do homem e de Deus. Alguns elementos demos que pretendem ser introdutórios. Terminamos estas notas, com o desejo e a esperança de que tenham, porventura, a virtude de levar alguém a ler e a estudar a infelizmente restrita obra do filólogo esquecido e do filósofo desconhecido que foi Teixeira Rego.  

 

António Telmo     

 


[1] Diário de Notícias, Lisboa, 29 de Setembro de 1955.