VERDES ANOS. 05

29-05-2014 09:37

Seja pelo estilo, pela orientação temática ou pelo fundo da ideação, as marcas da influição alvarina estão bem patentes neste artigo ensaístico que António Telmo dá à estampa no Diário de Notícias em Agosto de 1957. Pensamos, notadamente, na reflexão antropológica que pauta o discurso, tributária, como é óbvio, de A Razão Animada, saída a lume meses antes; e na anglofilia que o perpassa, bem conforme ao sentimento de Álvaro Ribeiro. Mas o que neste escrito se assoma e avulta com foros de novidade é a assunção nele implicitada pelo novel filósofo -- ao que sabemos pela primeira vez -- da hermenêutica da épica de Camões como plano de trabalhos para o porvir. Neste sentido, "Características heróicas da novela inglesa" firma um marco histórico na biobibliografia de António Telmo, e permite-nos afirmar que a sua demanda camonina se cumpre, ao menos em potência, por mais de meio século -- uma vida inteira! --, tal o ponto recuado a que a revelação do filósofo faz remontar o início daquela sua gesta espiritual.  

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Características heróicas da novela inglesa[1]

 

[Somerset Maugham]

 

Ainda que haja outras opiniões, a verdade é que, desde o século XIX, a literatura inglesa sempre atraiu, em primeiro lugar, os escritores portugueses, como se verifica com os exemplos de Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Júlio Dinis. Para o observador superficial, pode parecer que esse lugar pertence à literatura francesa, mas só para o observador superficial, distraído da verdade pelos letreiros das livrarias e pelas citações e suscitações dos críticos. O facto de os professores liceais e universitários, geralmente melhor informados de literatura francesa, desviarem os futuros escritores dos estudos ingleses não prova que são inoperantes as afinidades profundas entre os dois povos atlânticos. Todos conhecem a importância das viagens para a revolução filosófica. Se a viagem das três naus «S. Gabriel», «S. Rafael» e «Bérrio» contribuiu decisivamente para o conhecimento do mundo, não menos as viagens do «Mayflower» e do «Beagle» representam movimentos simbólicos na evolução da humanidade.

Conviria, além disso, ver se os escritores franceses, com maior notoriedade entre nós, por sua vez não foram influenciados pelos ingleses, como é o caso de Daudet, considerado pela crítica um imitador de Dickens.

Caracteriza-se a literatura inglesa pela constante evolucionista das respostas que os seus escritores dão aos três únicos problemas filosóficos, indicados por Bergson na «Energia Espiritual»: «Donde vimos, quem somos, para onde vamos?». Muita gente prefere ler contos, novelas e romances a estudar livros de filosofia, talvez porque assim encontra melhor resposta, ou, pelo menos, mais adequada aos enigmas obsessivos. Quando o filósofo interpõe entre a nossa consciência e a nossa inconsciência problemas fictícios ou que parecem longe da temática existencial, como, por exemplo, o problema do ser e do não ser, compreende-se que a consciência proteste em nome da inconsciência, isto é, da ignorância, e busque refúgio na inacção mental e na fantasia aparentemente sem responsabilidade. Mas, ao procurarem passar o tempo, em devaneio, na leitura de romances, homens e mulheres regressam, por esse caminho, à preocupação dos temas e dos problemas a que só a filosofia poderá dar adequada resposta.

Toda a novelística inglesa descreve os homens vivendo em razão das suas obscuras origens. A influência de Darwin tem de ser considerada, porém, ao mesmo tempo, com as influências de Carlyle, Ruskin, Stuart Mill, Herbert Spencer e Matthew Arnold. A tese darwinista da origem animal do homem, aproveitada depois pelos positivistas para negar a nossa progénie heroica, é contrapolar da tese defendida por Carlyle. Os novelistas, atentos, por determinação artística, aos vários processos de enovelamento da intriga, afirmam todos a agência do elemento heróico, como motor da evolução.

Ocorrem-nos os nomes de três romancistas bem representativos do evolucionismo inglês: George du Maurier, D. H. Lawrence e Somerset Maugham.

São três escritores completamente individualizados, no modo de conduzir a narrativa, no tipo de imaginação, na escolha dos temas e caracteres, na forma de articulação do diálogo, da descrição e dos comentários. Todavia, os três convergem pela introdução do elemento heróico na fabulação da intriga. Para George du Maurier, o divino revela-se pela queda no sonho, e todo o enigma humano se desdobra aos olhos de quem pratique sabiamente a arte de sonhar. Este escritor continua em Inglaterra a tradição dantesca que Gérard de Nerval estudou, em França, no seu romance «As Salamandras». – D. H. Lawrence considera, pelo contrário, a reclusão do espírito na autognose adversa do impulso vital, que para ele reside na atracção dos sexos. Imagina, porém, o elemento heróico pela figuração de «os anjos que reduziram as filhas dos homens». – Somerset Maugham é, aparentemente, o mais superficial dos três. O êxito dos seus livros, lidos em todo o Mundo, é, em parte, explicável pela simplicidade do estilo, pela sua admirável arte de contar uma história, pelo interesse que transmite às existências de toda a gente. Em livros como «O Agente Britânico» e «Servidão Humana», sem dificuldade se vê que, para Somerset Maugham, o heróico se revela e realiza pela progressiva consciência do mal.

É oportuno notar, a propósito destes três escritores, como sempre nos romances se incluem teses que podem estar mais ou menos explícitas. O romancista apresenta ao leitor, em imagens adaptadas à sua vivência pessoal, concepções que, expressas na linguagem dos filósofos, seriam apenas atendidas por uma minoria intelectual. É extraordinária e incalculável a influência do romancista na vida dos homens. Ele move, molda e transforma os caracteres, menos pela crítica e pelo riso (como no caso de Eça de Queirós), os quais apenas promovem a dissolução dos caracteres na homogeneidade social, do que propondo modelos imitáveis e admiráveis até aos arquétipos, pelo desenvolvimento, através da vida das personagens, das virtualidades existentes na alma do leitor em estado seminal.

A transmissão do pensamento esotérico aos profanos, os quais emergem em ondas sucessivas da grande noite do subconsciente popular, passou da poesia para o romance, com a decadência da epopeia, mas o cinema, hoje, é sem dúvida a forma artística que maior influência exerce.

Após um dia de trabalho mecânico, o cinema vem ocupar as horas de ócio. Ali, como no mundo do sonho, «onde nunca se vê o sol», é interior a luz que ilumina as imagens; vem essa luz das costas do espectador, e actua, durante a contemplação, como se viesse, por assim dizer, da subconsciência. Forma-se um complexo estado psíquico. O espectador sofre e goza, em completa passividade do corpo, mas a representação íntima das imagens, íntima na sua exterioridade, pois o cinema é um duplicador de vida anímica, provoca movimentos imperceptíveis, que aumentam, por falta de conteúdo, os efeitos tóxicos dados na representação.

É curioso observar como uma das tendências mais marcadas da novelística de hoje, em vários países europeus, é a de representar cinematicamente a vida interior, fluídica e movente. Mas aqui ainda se afirma a superioridade dos ingleses, principalmente por meio de Virginia Woolf e James Joyce.

Sempre o elemento líquido, em imagem sem fim, caracteriza essa literatura de épicos. Não admira, portanto, que para ela vá a nossa simpatia profunda. Serão diversos, certamente, os nossos modos e caminhos de cruzar o Atlântico, mas ainda está por fazer a hermenêutica de «Os Lusíadas» segundo o ensino de Hermes Trimegisto, cifrado pelos mediterrâneos no símbolo do Tridente de Neptuno.

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, ano 93.º, n.º 32843, Lisboa, 1 Ago. 1957, pp. 7 e 8 (supl. Artes e Letras).