VERDES ANOS. 01

05-01-2014 21:10

Iniciamos hoje a publicação da rubrica "Verdes Anos", onde, tal como havíamos anunciado, iremos facultar aos leitores os dispersos do período formativo de António Telmo, num arco temporal que, convencionalmente, se poderá considerar dilatado até à partida do filósofo para Brasília, em Fevereiro de 1966. São dezenas de textos desconhecidos, inatendidos, dispersos por periódicos como o Diário de Notícias, o Diário Popular, o 57, o Mensário das Casas do Povo, A Bem da Língua Portuguesa ou Clave, entre outros. Nunca até hoje reunidos em livro, revelam-nos por vezes um autor que busca seguramente a liberdade do estilo e acusa sobretudo a magistral influição de seu mestre Álvaro Ribeiro (na foto). Elencados cronologicamente, os artigos serão arquivados em item próprio da secção Dispersos.

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LAÇOS DA FILOLOGIA PARA A POESIA[1]

 

I) POESIA, ARTE FILOLÓGICA – Com o modernismo, os poetas deixaram aos humanistas o estudo e o ensino da sua ciência, se, efectivamente, a poesia é, como sempre foi geralmente admitido por todas as tradições, uma arte filológica. O humanismo, cujos princípios se situam na Renascença, tudo fez para que a filologia deixasse de ser uma actividade do pensamento criador. Com ele, a orientação disciplinar passou a dirigir-se para a apreensão de conhecimentos, previamente fixados, na matéria e na forma. O ensino é, porém, iniciação num método livre e pessoal de indagação das verdades superiores. A verdade não está fixa, é causa invisível que perseguimos em caminhos vários, por meio de interrogações, conjecturas, hipóteses, pelo exercício mental dum sistema móvel de imagens que actua como mediador.

 

O que distinguiu Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa como poetas, deriva em grande parte de saberem ser a poesia uma arte filológica. Sinal disso está na atitude que ambos tomaram, o segundo através do menos conhecido dos seus heterónimos, para com a filologia ensinada pelos humanistas.

 

II) QUANTIDADE E QUALIDADE – Uma das mais eficientes armas deste humanismo tem sido a estilística. É possível construir, dedutivamente, as diversas figuras de estilo e formar um sistema exterior aplicável às diversas literaturas e respectivos idiomas. Para com estas, tal sistema fixo de relações quantitativas funciona como uma máquina que as devora. As figuras são geralmente definidas como «a parte pelo todo», «o efeito pela causa», «o consequente pelo antecedente», e assim sucessivamente, o que equivale a substituir a linguagem poética pela linguagem positiva e, portanto, a negar a poesia.

 

Em lugar de «figuras» digamos «formas», digamos e pensemos e logo o método indutivo aparece com o propício meio de investigação filológica. As figuras de retórica ou de estilo não são adornos, ornatos, artifícios, mas formas substanciais, imagens íntimas, forças imanentes em incessante actividade, captáveis pela intuição de que a indução é o processo exterior. O que produz a ilusão de que são formas fixas, fictícias, fingidas, em fim, figuras, é o poder negativo que o homem tem de representar a língua pela escrita. A expressão gráfica representa a transitória submissão do verbo à letra.

 

III) LÍNGUA E CIFRA – Quem observe a língua portuguesa nas suas formas populares, isto é, como hoje existe antes de ser trabalhada pelo espírito latino, deparará com cifras surpreendentes. Filólogo é aquele que tem «queda» para decifrar, para impregnar de luz as cifras. Nem sempre se repara nesta coisa curiosa: as letras de um livro são insignificantes enquanto não as iluminarmos do nosso pensamento; o que quer dizer que são cifras, zeros de valor atributável consoante a posição. A vária combinação das letras modifica o sentido em direcção e profundidade.   

 

 IV) O ESPÍRITO LATINO E O GÉNIO DA LÍNGUA. Sobre esta língua que é a nossa o espírito latino teceu aquele véu de rígidas figuras. Facto geralmente admitido pelos historiadores que reconhecem as diferenças que, por exemplo, separam Fernão Lopes de João de Barros é, todavia, encarado como um progresso e, portanto, situado num ponto da nossa história literária. Mas a verdade é existir um génio português, que sempre capta, apreende, agarra a língua para lhe imprimir as suas formas. É mais certo dizer que, se hoje não falamos latim ou francês, deve-se à vontade poderosa desse génio que a si conforma todos os elementos estranhos.

 

Não é negar o progresso da língua dizer que houve evolução subterrânea, isto é, substantiva, dizer, em suma, que o verbo sempre animou o substantivo. Ver na latinização da língua um progresso, pelo qual se eliminam formas arcaicas de expressão, equivale a negar a existência da nacionalidade. Persistem as formas arcaicas, mas é tanto mais difícil vê-las quanto mais dificuldade há em descobri-las.

 

V) ARISTÓTELES E O MODERNISMO. Aristóteles é ainda hoje um autor ao qual recorrem com proveito quantos estudam as questões de poética modernista. Quem consultar a tradução que da «Poética» nos deu Eudoro de Sousa verificará que para o filósofo a poesia não é fenómeno de sentimento, mas fenómeno de pensamento. Com razão dedicou o tradutor o seu trabalho ao sr. dr. Rebelo Gonçalves, que, no seu estudo «A Língua Portuguesa no Ensino Secundário», ensina a função intelectual da estilística.

 

Afastados da tradição aristotélica, os poetas modernistas continuam a pensar que a poesia é a expressão de sentimentos. Todavia, se as palavras é que transmitem significação e efectividade cósmica e divina aos sentimentos, a educação poética consistirá no ensino da língua, da linguagem, do diálogo, da comunicação.   

 

VI) POÉTICA E METÁFORA. Alenta o modernismo a convicção de que a poesia resulta da exaltação dos sentimentos. Negação da poesia é negação da metáfora. Desta partem todas as formas estilísticas e para ela confluem. Assim, a etimologia só se revela fecunda quando acompanhada de intuição metafórica, quando pensada no lugar espiritual em que se encontram a significação sensível com a supra-sensível. Toda a iluminação resulta de um contacto eléctrico que estabelece uma corrente que se perde se não encontra palavras condutoras. Há metáforas tão luminosas que cegam o poeta e ou o transportam à epopeia ou o prostram no lirismo. Conduzir o espírito de metáfora em metáfora até à suprema iluminação é o fim da educação poética. 

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, ano 92, n.º 32417, Lisboa, 24 de Maio de 1956, pp. 7 e 8.