UNIVERSO TÉLMICO. 79
A Heresia Portuguesa – Da Inquisição à Revolução: O País Subterrâneo*
Pedro Martins
Na foto: Fiama Hasse Pais Brandão
Entre as acusações que, n’O Labirinto da Saudade, Lourenço endossa aos autores da Filosofia Portuguesa encontra-se a de cultivarem um estilo peremptório. Não obstante, será o próprio, num dos ensaios desse livro, a exarar:
Mas seja qual for a interpretação ideológica de Camões, não é possível para ninguém, separar o seu canto épico da apologia histórica de um povo enquanto vanguarda de uma Fé ameaçada na Europa do tempo e de um Império igualmente guarda-avançada da expressão comercial e guerreira do Ocidente. É essa «a matéria» textual e moral do Poema. Não tem outra e é absurdo fingir que possa tê-la.[1]
Tão terminante asserto seria assaz de estranhar em autor que mal sofre de terceiros os seus juízos categóricos, se outras passagens daquela obra nos não oferecessem novos exemplos da sua própria concludência. Como quer que seja, parece o filósofo ter sido bastante claro na rejeição liminar de quaisquer leituras que se distanciem do Camões arauto de uma cristandade que na Fé e no Império encontra a sua essencial vinculação cultual, cultural e civilizacional. Fá-lo em 1977, num texto sobre as comemorações do 10 de Junho desse ano, em que, pelas vozes de Jorge de Sena e de Vergílio Ferreira, haviam estado em foco a emigração e as comunidades portuguesas. Nele deixará ainda escrito:
A «emigração» simbólica de que Camões seria agora o exemplar e mítico patrono, não muda de conteúdo com o novo carisma. Ela foi expansão, conquista, descoberta, gesta desmedida de pequeno povo convertido em ferro de lança da burguesia empreendedora e mundialista do Ocidente. Foi um fenómeno imperialista, ao mesmo tempo religioso e cultural, de absoluta boa consciência, como os tempos pediam e pedem sempre aos que têm meios para os levar a cabo, exemplo ímpar de energia vital e histórica. É desta «emigração» planetária que Camões foi o cantor patético e violento, o cruzado intelectual e moral consciente de sê-lo, mesmo se nela não foi humanamente mais, como a poetas pode suceder, que um marginal e génio, codilhado e mal pago.[2]
Confrange a visão trivial: a cauta sensaboria do camonismo de Estado revela já, num filósofo que o regime emergente tenderá a entronizar, a devoção irrefragável de um catecismo putativamente laico.
Logo em 1979, um ano após o surgimento de O Labirinto da Saudade, Fiama Hasse Pais Brandão inicia a publicação na imprensa de uma série de estudos sobre Camões com que intenta revelar um perfil cripto-judaico e cabalístico do poeta. Serão depois reunidos em O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos, de 1985. Perscrutando com assombrosa e arguta erudição as minúcias indiciárias que formam multidão no corpus textual do vate (mas também na sua biografia ou na sua iconografia), considera Fiama ser a iniciação esotérica e mística o motivo central da obra de Camões, numa encruzilhada em que confluem a Kabbalah, a alquimia e a gnose templária e em que se descobrem teses tão estimulantes (e escoradas em sólidos argumentos) como essa de os dez cantos de Os Lusíadas corresponderem às dez sephiroth da Árvore da Vida; ou essa outra de os varões assinalados serem, na circunstância da epopeia, os portadores do sinal, sinal duplo, o do povo judeu e o dos Cavaleiros de Cristo, a data de 1497 assinalando dois factos capitais no reinado de D. Manuel I: o termo do prazo de conversão dos Judeus e subsequente cominação de expulsão e a partida para a viagem à Índia de Vasco da Gama – e estes serão, segundo Fiama, os dois sentidos exotéricos que irão entrelaçar-se ao longo do poema, sem prejuízo dos sentidos esotéricos, ou ocultos, para os quais os primeiros se irão abrir.
Igualmente surpreendente se revela o estudo sobre o significado de alguns nomes proeminentes de Os Lusíadas, tais como os de Veloso, Leonardo ou Gama, em que a autora, com funda sabedoria, pode descerrar significados judaicos e cabalísticos; ou a leitura percuciente da Carta III, que mostra como Camões nela terá plausivelmente cifrado a sua judeidade, aludida, por exemplo, na adopção do termo matador.
Bosquejo tão breve como o que vem de ser feito não oferece sequer uma pálida imagem do labor exegético e hermenêutico que Fiama consagrou a Camões. Trata-se, na verdade, da perquirição apaixonada e prodigiosa de um espírito de superior inteligência e inesgotável ciência, em que cada hipótese se enuncia até ao limite das possibilidades de uma investigação sempre em diálogo com os vislumbres do seu desenvolvimento poliédrico, e que tanto engloba os progressos da autora como os contributos doutrem, sejam os de um Faria e Sousa no século XVII, sejam as asserções coevas de uma Maria Antonieta Soares de Azevedo, de um António Telmo ou de um Helder Macedo.
Por si só, o contínuo desvelamento, pela autora, deste Camões judeu, marrano e cabalista, esteado na razoada desocultação probatória de uma linguagem dúplice, deveria, em princípio, sustentar a legitimidade da sua própria afirmação. Não foi isso, todavia, que sucedeu. Mas, bem vistas as coisas, seria ingénuo esperar que algo diferente ocorresse. Na sua magistral demonstração da correspondência dos dez cantos da epopeia com as dez esferas da árvore cabalística, que saiu primeiro a lume nas edições de 22 e 29 de Fevereiro de 1980 d’O Jornal, escreve, a dado passo, Fiama, procurando explicar o Canto X pela sefira Malcuth, o Reino, morada da Shekinah:
O rio, do conhecimento ou inteligibilidade de Deus, que é, numa das suas faces, a História, e que começou a correr no terceiro Sefirah, como já vimos, deve agora, no décimo Canto, desaguar no grande mar; assim se compreendem as referências do poeta ao «imenso lago» (X, 79) onde a Ninfa recolheu o vaticínio. Mar da Cabala é expressão consagrada entre os cabalistas e exprime o conhecimento de Deus até à margem do possível. (O mar do Texto de Deus, que a nau colocada no rosto da Bíblia hebraica de Ferrara, figura. A questão fundamental da Fé (Emouna) está, aí, simbolizada pelo golfinho, símbolo da fidelidade).[3]
Neste parágrafo se revela um profundo conhecimento da Kabbalah, das estruturas e do dinamismo do intermundo sefirótico e da própria tradição hebraica na vastidão da sua globalidade. Da maior importância vem a ser a nota, com o número 21, que, a final, lhe surge associada: «A expressão Fé e o Império de Os Lusíadas, terá de perder definitivamente as conotações com que tem estado confundida e ligar-se, de facto, ao ideário desse Poema (…).»[4]
Como, porém, convencer da plausibilidade de uma tal interpretação quem, como Eduardo Lourenço, proclamara já estritamente cristianíssimos, dois anos antes, a Fé e o Império que definem o horizonte da epopeia camonina? Como levá-lo, em sua tibieza, afinal tão provinciana, a largar a cartilha redutora do camonismo de Estado? Essa mesma cartilha que tudo mede pela ignorância com que compassa a ausência do próprio espanto, e que levara já um Hernâni Cidade, ainda em 1972, segundo revela Fiama, a fazer vista grossa, em nota de rodapé, ao primeiríssimo dos sinónimos que Bluteau, em seu proverbial Vocabulário, consigna de matador, palavra já nossa conhecida e que quer, antes de mais, dizer: judeu?
A bravata d’O Jornal pode bem ter sido a gota de água que fez transbordar a taça da paciência de Lourenço, sempre tão cioso da pureza política e teológica do seu cruzado. Mês e meio depois, na edição de 17 de Abril de 1980, sob o título “Camões e a religião”, noticia A Capital: «Eduardo Lourenço e António José Saraiva tomarão parte num debate sobre “A religião de Camões”, a partir das 21 e 30 de hoje, no Centro Nacional de Cultura. Estarão em causa, segundo se prevê, as relações do poeta com a cabala, mas muitas outras questões deverão surgir num colóquio que promete ser animado.»
Nessa noite, o jornalista e escritor António Carlos Carvalho esteve lá; e não gostou do que presenciou. A carta que, logo no dia seguinte, escreveu a Fiama, e de que aqui se dará longo excerto, encerra um extraordinário testemunho do que então se passou:
(…) Este seu amigo, de vez em quando, gosta de se armar em cavaleiro andante e tomar a defesa dos fracos e dos oprimidos. Neste caso, não se tratava de «fraqueza» sua, mas de ausência – e na sua ausência houve uns senhores que se permitiram dizer mal de si, desdenhando do trabalho que anda a fazer. Fui obrigado a intervir … Eu lhe conto: o AJS e o EL invocaram o seu nome e os seus artigos como representantes de uma certa tendência para fazer a leitura cabalística dos “Lusíadas”. Artigos que consideraram “fantasistas”. (O AJS confessou mesmo que não tinha conseguido acabar de ler um deles devido aos argumentos apresentados…) e “cabala”, a que se referiram em termos desdenhosos.
Perante tanto disparate fui obrigado a fazer duas lamentações: 1) lamentei que a Fiama não estivesse presente e que estivesse a ser queimada em efígie – mas talvez fosse a sua sorte, porque de outro modo sairia dali condenada, de «sambenito» e vela na mão, talvez devido à proximidade do antigo Palácio da Inquisição; 2) lamentei que a Cabala fosse tratada daquela maneira, demonstrando que nada se sabia do assunto…
De facto, «perdi a cabeça». E ainda bem, porque obriguei o EL a deixar bem claro que não se tratava de queimar a Fiama, que até considerava o seu trabalho muito válido, etc., etc.; simplesmente não conseguia acompanhar o seu vôo. Quanto ao AJS, ficou mudo e quedo.
Enfim, nada de novo na frente ocidental.
Foi, de facto, pena que a Fiama não quisesse ou não pudesse estar presente para esclarecer muita coisa. Mas presumo que decidiu ficar no silêncio criativo dos seus livros. Devo reconhecer que nada se aprende nestes monólogos em público. Mas também só lá fui porque «pressenti» que iam atacá-la e eu, o cavaleiro andante, devia estar presente para defender a sua «honra»…
Não se incomode com este ladrar dos cães. O seu trabalho é vital – tem o dever de o prosseguir. Ao menos eu, e todos os judeus de religião, ou de coração, estamos consigo.
Desconheceria acaso Eduardo Lourenço a sentença priscilianista segundo a qual ninguém tem o direito de condenar o que não sabe, o que não lê, o que não quer investigar?[5]
De António José Saraiva é sabido que, na esteira de Benzion Netanyahu, sustentou tese revisionista pela qual negava, entre nós, a existência, pelo menos significativa, de judaizantes, propugnando assim a ocorrência de uma efectiva assimilação dos marranos portugueses na sociedade cristã do século XVI, posição claramente minoritária que lhe valerá arrostar uma polémica com I. S. Révah. Como quer que seja, não admira, a esta luz, que Saraiva, enfileirando com Lourenço, procurasse impugnar a existência de um Camões marrano… Não se julgue, porém, que este episódio havido com Fiama foi caso único. Outro, muito semelhante, se registara três anos antes.
Com efeito, em 1977, Helder Macedo dera a lume a versão portuguesa do seu livro Do Significado Oculto da Menina e Moça (uma primeira versão da obra, em língua inglesa, datava de 1971). O próprio autor, em nota à segunda edição, nos contará o que então se passou:
A recepção que o livro teve quando da sua primeira publicação foi algo polarizada, sendo essa polarização – que aliás persiste – desde logo cristalizada em duas reacções opostas. A primeira foi que a Academia das Ciências de Lisboa lhe atribuiu o seu prémio para ensaio de 1977, o Prémio General Casimiro Dantas; a segunda foi que o eminente erudito Eugenio Asensio achou necessário ir fazer uma conferência pública no Centro Cultural de Paris, posteriormente publicada, que consistiu de um ataque cerrado ao meu livrinho. Não sei qual das duas formas de reconhecimento me honrou mais.
A devida modéstia obriga-me no entanto a esclarecer que a reacção do mestre Eugenio Asensio não terá sido devida apenas ao que houvesse de original no meu pecado, pois desde havia muito vinha tentando travar a tendência, encabeçada por Américo Castro, de se detectar criptojudaísmo em todos os possíveis interstícios da cultura renascentista hispânica. Acontece, no entanto, que não é essa a minha perspectiva. Considero que as convergências culturais manifestadas na obra de Bernardim Ribeiro não são necessariamente generalizáveis a outros autores, embora não possa deixar de acentuar que equivalentes convergências entre o judaísmo e o cristianismo também estiveram na base do que veio a tornar-se o Sebastianismo. Acho apenas que o problema não pode ser elidido, como tantas vezes tem sido, quando não simplesmente neutralizado numa estéril querela entre ortodoxias e heterodoxias.[6]
Que balanço se pode fazer hoje, quase um quarto de século passado sobre a escrita destas linhas de Helder Macedo, autor a quem, de resto, se deve igualmente um luminoso ensaio sobre o Camões iniciático?
Algo realmente mudou?
*
* *
Alçada ao clamor das parangonas, a morte de Eduardo Lourenço levou ao extremar de todos os panegíricos. Chegou-se, aliás, ao ponto de se afirmar o bastante para envergonhar uma nação ancestral: fora ele que nos ensinara a pensar. Deste prisma, o Dicionário de Luís de Camões, publicado em 2011 e coordenado por Vítor Aguiar e Silva, dir-se-á ter sido uma lição bem estudada. Embalde nele se buscarão verbetes sobre Telmo, Fiama ou Maria Antonieta Soares de Azevedo, pese embora a relevância inexorável destes nomes de camonistas. Tão pouco temas como o judaísmo ou o esoterismo ali receberam a menor atenção. Pior será o facto de Telmo não chegar sequer a existir para o Dicionário e Fiama somente aí ser referida uma vez, pela menção ocasional, envolta em prudente assepsia, da sua «controversa interpretação judaizante» das cartas camoninas[7]. Já Lourenço e Saraiva (este último, também como camonista) se topam reiteradamente, inamovíveis na sua ciência, nos índices do final do volume.
Já n’O Labirinto Camoniano lembrara Fiama ser «sempre mais fecundo, em relação ao passado, compreender do que corrigir»[8]. Excepto quando de algo ainda pouco ou nada se sabe, caso em que tudo estará já em esconder. Assim se evidencia o péssimo serviço que o Dicionário de Camões, seja por desconhecimento ou por deliberação, veio prestar à cultura portuguesa, sonegando aos seus leitores, com laivos reaccionários de insofrido conservantismo, a consideração exaltante de alguns dos veios mais perigosos – e, por isso mesmo, mais vivificantes – da obra e do pensamento camoninos.
Recentemente, no início de 2022, o JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, como lhe competia, deu primaz destaque de capa à comemoração dos 450 anos de Os Lusíadas. Bem pôde então José Carlos Seabra Pereira, no início do ensaio com que ali se abre o dossier do tema, evocar, promissor, os nomes de Dalila Pereira da Costa e de Helder Macedo, que o Camões iniciático continuou, porém, prudentemente encerrado na câmara-escura do oblívio. Conhecerá, ao menos, Seabra Pereira a aproximação que António Telmo, na sua conferência na Sala dos Espelhos do Palácio Foz, em 1980, dois meses depois do “auto-de-fé” da Rua António Maria Cardoso, logrou estabelecer entre a viagem iniciática de Os Lusíadas e a experiência mística de Dalila tal como esta a relatara em A Força do Mundo? Por muito que o professor católico de Coimbra comece por proclamar o alvoroço e o início que sempre Camões suscitará, não há nele o menor assombro, o mais leve sobressalto, sequer uma suspeita de arrojo. Ramerrão somente, posto que envolto, aqui e ali, numa profusão modernaça de diálogos com a contemporaneidade. E nem mesmo a menção, a final, das camoninas cartas, teve o condão de exumar, por breves instantes, a «controversa interpretação judaizante» de Fiama. Tudo velho e relho.
[1] Idem, p. 122.
[2] Idem, pp. 124-125.
[3] Fiama Hasse Pais Brandão, O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos, p. 67.
[4] Idem, p. 72.
[5] Moisés Espírito Santo, Origens do Cristianismo Português, p. 186.
[6] Helder Macedo, Do Significado Oculto da Menina e Moça, Lisboa: Guimarães, 1999, p. 8.
[7] Vítor Aguiar e Silva (Coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa: Caminho, 2011, p. 245.
[8] Fiama Hasse Pais Brandão, op. cit., p. 49.