VOZ PASSIVA. 90
A camonofilia de António Telmo[1]
António Cândido Franco
António Telmo (1927-2010) foi um fino e subtil ensaísta, na linha de Fernando Pessoa e Mário Saa, com uma vasta erudição linguística, do latim ao hebraico, e uma inteligência simbólica muito ágil nos saltos semânticos, virtudes raras em época marcada por estreiteza apertada da razão e que bastam para destacar os trabalhos que assinou, se não mesmo para fazer deles casos únicos no domínio do ensaio poético em Portugal.
Estreou-se com um livro de semblante pré-clássico, Arte Poética (1963), muito atento aos problemas da linguagem verbal e aos tópicos da poesia virgiliana, e fechou com um livro póstumo, A Aventura Maçónica–Viagens à Volta de um Tapete (2011), onde se deteve a desenvolver com sagacidade aspectos relativos à dimensão simbólica que sempre o preocupou.
Entre a curta dezena de livros que deu à estampa, os estudos dedicados a Camões constituem parcela expressiva, pela regularidade da publicação, pela atenção diversificada, pela singularidade das abordagens. No total deu à luz da publicidade, entre 1977 e 2011, ao longo de mais de três décadas, um conjunto de oito estudos de boa arquitectura, quatro deles desenvolvimentos sólidos uns dos outros, a que se somam oito textos de curto fôlego, por vezes simples apontamentos, mas nunca irrelevantes, em pouco mais dum parágrafo.
Consciente decerto da novidade das suas leituras camoninas, capazes de marcarem uma diferença entre a vasta silva dos estudos dedicados ao épico português no período que foi o seu, António Telmo, quando chegou a ocasião de iniciar a publicação das suas obras completas, decidiu construir com essas leituras o primeiro volume das referidas obras, atitude que mostra o carinho que nelas punha.
O livro, Luís de Camões (2010), surgido ainda em vida do autor, deixou apenas de fora dois estudos camoninos, um deles póstumo, “Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões”, longo diálogo em torno de Camões, onde se revisitam em exercício sinóptico as questões camoninas que mais o interpelaram, apresentando-se tal estudo como uma súmula final, produto da derradeira estação da vida, que não substitui porém os trabalhos anteriores nem exaure a copiosa torrente da sua riqueza.
Sobre o conjunto destas leituras nos iremos deter nesta nota, de modo a destacar o esteio inovador que elas proporcionaram aos estudos camoninos do tempo em que surgiram.
1 Formas de Camonismo em Portugal
No momento em que António Telmo abriu o comentário da poesia de Camões distinguiam-se no estudo desta orientações variegadas, que, não mostrando novidade assinalável em relação ao passado recente, ampliavam e desenvolviam as linhas de envolvimento que vinham da primeira metade do século e até de trás.
Em primeiro lugar, um camonismo oficioso, que vivia paredes meias com a consagração oficial de Estado que o Poeta experimentava desde as comemorações do terceiro centenário da sua morte, em 1880, e que muito se desenvolvera depois de 1910, com especial reparo para a criação do Dia de Portugal em 1925, não mais revogada, na data que se aceitava e reconhecia ser a do falecimento do Poeta.
Este camonismo, empolgantemente eloquente mas hermeneuticamente estéril, encontra expressão em algumas declarações de Teófilo ou de Lopes Vieira, cujos textos dedicados ao Épico português foram recolhidos no livro póstumo Camões na Obra de Afonso Lopes Vieira (1974); basta atentar num deles, “Na Entrega de Os Lusíadas ao Presidente do Brasil”, para se sentir a natureza pomposa desta abordagem, mais insinuante do que se esperaria, contaminando outras linhas de ancoragem.
De seguida como linha marcante nas abordagens de Camões na época em que Telmo abriu os seus estudos, constituindo mesmo a orientação mais seguida e praticada, deparamos com aquilo que podemos designar por camonologia, significando esta uma ciência textual, uma textologia de largo aparato técnico, cuja ambição maior é contribuir de forma decisiva para a resolução das questões, e muitas na lírica eram, que o corpus de Camões apresentava.
O mais típico representante desta escola – cujo antecedente se encontra na preocupação filológica com que Carolina de Michaëlis abordou em 1922 e 1924 dois cancioneiros camonianos e se posicionou contra a proliferação de apócrifos, desautorizando assim edições recentes mas consagradas como a do Visconde de Juromenha (1860-9) – é Jorge de Sena, que propôs a revisitação fenomenológica dos textos de Camões, a partir dum conjunto de laboriosas operações numéricas e estatísticas sobre os textos, cuja finalidade era a construção do sentido da determinação tipológica, espécie de matriz fidedigna de todos os textos de Camões.
Exemplo modelar da aplicação do método encontra-se na leitura que Sena fez da canção VII de Camões, Manda-me Amor que cante o que a alma sente, com três versões diferentes, de que resultou um gigantesco estudo numérico, publicado em livro, Uma Canção de Camões (1966). Ao longo de seiscentas páginas Sena vai acumulando números, quadros, estatísticas, cálculos, numa profusão obsessiva de operações, que visam obter o inquérito estrutural ou fenomenológico, a partir do qual se poderá construir o sentido da determinação tipológica.
Já um camonologista insuspeito como Vítor Manuel de Aguiar e Silva apontou com severa catadura os limites dos processos usados por Sena. Diz: A metodologia e a instrumentação estatísticas manejadas por Sena, que permitem uma ostensiva proliferação de esquemas e quadros com números, percentagens, índices de variabilidade e invariabilidade, etc., só poderiam ter conduzido como conduziram, a três categorias de resultados: um simples e improdutivo acervo de constatações numericamente expressas; um reducionismo devastador dos chamados “modelos estruturais” (…); enfim uma manipulação ad libitum das próprias operações estatísticas, e não apenas das conclusões delas extraíveis (…). (“Jorge de Sena, Camonista”, in Colóquio-Letras, nº 67, 1982)
Seria porém injustiça – e não foi essa com certeza a intenção de Aguiar e Silva – remeter a camonologia de Jorge de Sena para a arrecadação das coisas infecundas. Os estudos de Jorge de Sena, pela imensa informação que carreiam em domínios tão variados como a genealogia ou a história do livro, pelo largo conhecimento dos problemas relativos aos textos, pela agilidade expressiva, pela fuga que fazem em momentos estratégicos ao seu próprio método estrutural, posicionando-se em áreas inesperadas e promissoras, são um contributo intorneável aos estudos camoninos.
Não se pode deixar de referir como paradigmático deste efeito o estudo que Jorge de Sena dedicou ao sentido das alusões ao povo judaico em Os Lusíadas, “Novas Observações acerca da sua Epopeia e Pensamento” (in Ocidente, 1972), que tão prometedor e fecundo se mostrou junto de jovens investigadores da época que com ele encetaram novos e denodados trilhos na abordagem de Camões.
Assinalem-se ainda no quarto centenário da edição de Os Lusíadas os prefácios de Sena à monumental reedição fac-similada das valiosas edições comentadas que Manuel de Faria e Sousa fez de Os Lusíadas (Madrid, 1639) e das Rimas Várias (1685-89), dois estudos de primeva importância, talvez os primeiros que modernamente justiça fizeram ao grande comentador do século XVII, que escolheu ser o difusor de Camões em língua espanhola e cujo papel na cultura desta, até na tentativa de substituir Gongora por Camões, projecto desmedido mas muito mais lúcido do que se possa de entrada pensar, sobretudo em termos da primeira metade do século XVII, ainda está na forma devida por apreciar.
A camonologia não viveu todavia apenas dos contributos desorbitados que Jorge de Sena lhe deu. Outros como António José Saraiva, Vítor Manuel de Aguiar Silva, Maria Vitalina Leal de Matos ou Vasco Graça Moura se posicionaram de modo idêntico, e nem sempre com o insucesso de Jorge de Sena, insucesso metodológico entenda-se, decerto porque apostaram menos na sistematização estrutural duma grelha definitiva, capaz de resolver de vez as graves questões do corpo textual camonino, do que na modesta regulação caso a caso de questões textuais singulares.
Trabalhos modelares neste âmbito, mostrando previdência crítica, labor minucioso, conhecimento prospectivo e persistência de avanço, são alguns daqueles que Aguiar e Silva foi dando de forma dispersa e regular à estampa ao longo das décadas de setenta e oitenta do passado século, antes de mais as notas, as avaliações, os materiais que junta relativos ao problema do cânone da lírica de Camões, área onde melhor se desenha e sente o contributo da sua investigação.
Os sucessos desta camonologia textológica, recolhida no livro Camões: Labirintos e Fascínios (1994), são porém muito limitados e apenas relativos a questões heurísticas e ecdóticas, e ainda assim, por via da quantidade e da complexidade dos problemas que se foram acumulando ao longo das várias edições da lírica, sem possibilidades de chegar a termo conclusivo, tudo se resumindo a curtos avanços, quantas vezes não mais do que detectar lapsos, até irrelevantes, dos predecessores.
A camonologia, que anotou ainda pela mão de António José Saraiva pertinentes tópicos de gramática, do léxico à sintaxe de Os Lusíadas, esbarra em questões hermenêuticas relativas ao sentido, frustrando qualquer avanço em termos de significação. Quanta decepção, quanto malogro mesmo, num texto de Aguiar e Silva, também recolhido no livro acima mencionado, “Função e Significado do Episódio da Ilha dos Amores na Estrutura de Os Lusíadas”, que estaria destinado no seio do seu trabalho a visar questões muito mais amplas e significativas do que a mera ecdótica, até porque toma como ponto de arranque um segmento camoniano sem qualquer novelo textológico, caso o autor não temesse entrar por outros trilhos que não o exaustivo estudo das fontes eruditas, mas exteriores, terreno seguro mas quase infecundo em tão denso e enigmático ponto.
Assim, tal como ficou, o erudito trabalho de Aguiar e Silva tudo o que alcança no domínio da simbolia é repetir um muito estafado lugar-comum do camonismo oficial, o ideal cruzadístico que animou e guiou, como autêntica superestrutura ideológica, o Estado e o escol intelectual da Nação (…) no século de Quinhentos (p. 142), associado no caso ao centro nevrálgico de Os Lusíadas, a Ilha de Vénus, reduto resistente do mais alto simbolismo do poema, o que torna o estudo infinitamente mais deceptivo.
Além das famílias aqui notadas, camonistas oficiosos e camonologistas, podemos ainda assinalar um terceiro ramo, interessado menos na obra do Poeta do que na biografia dele, que chamamos de camonografia e que teve no José Hermano Saraiva de Vida Ignorada de Camões (1978) o astro de brilho mais visível.
Este braço do camonismo, reprimido com dureza pela camonologia científica, a ponto dos estudos biográficos de Camões terem entrado em franca retracção desde Carolina Michaëlis, não obstante a rica estirpe de antecedentes, remontando aos primeiros estudiosos, Manoel Correia, Pedro Mariz e Severim de Faria, este braço, dizíamos, não deu qualquer contributo relevante ao conhecimento formal ou semântico dos textos, já que estes apenas lhe interessavam em função do seu propósito, a biografia do Poeta, restringindo-se o proveito que desse braço temos, não despiciendo todavia, às investigações genealógicas de arquivo, área em que colheu elementos avulsos de valor, que nenhum camonista pode hoje ignorar, dando um subsídio indispensável aos estudos gerais camonianos.
2 Sentido Interior do Texto
O quadro que aqui traçámos mostra o estado dos estudos camoninos no instante em que António Telmo deu a público o primeiro trabalho sobre Camões. Tal aconteceu no ano de 1977 com o longo escrito “O Esoterismo de Os Lusíadas”, publicado como capítulo autónomo dum dos seus livros mais conhecidos, História Secreta de Portugal.
Que nos propõe o autor neste trabalho sobre o poema, logo seguido por um outro, em 1980, da mesma natureza, “O Segredo de Os Lusíadas”? Falamos duma abordagem por dentro do texto, aduzindo sentidos para o poema não imediatamente perceptíveis à leitura desprevenida, sentidos esses que necessitam de pesquisa e apuramento, a partir da constatação da letra conter estratos de sentido, alguns imediatos, outros velados, soterrados por olvidos relativos ao contexto ou até em última visão por vontade expressa do autor, para isso recorrendo a cifras de disfarce.
Não se pense que esta adução inicial, a que o autor se manterá fiel ao longo de mais de três décadas de trabalho, pertence a António Telmo, até no que a Camões diz respeito. Sampaio Bruno, inspirando-se nos estudos sobre Dante de Eugénio Aroux e de Grabiele Rossetti, que viram intenções veladas em Dante, no caso anti-papais, de resto indiciadas pelo texto, O voi, ch’avete gli intelleti sani/ Mirate la dottrina che s’asconde / sotto il velame delli versi strani, escreveu no final da vida, entre 1914 e 1915, um conjunto de textos dedicados à poesia portuguesa dos séculos XVI e XVII, mais tarde reunidos no livro Os Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão (1960; 1996), cujo fio condutor é a indagação dum sentido interior para o texto, com elucidação de aspectos contextuais e de cifras textuais pouco atendidas, sendo Amor, extenso tópico do tempo e palíndromo de Roma, a mais expressiva.
No caso de Bruno, como nos de Aroux e de Rossetti, a dobra escondida do texto prendia-se antes de mais com a situação da época, quer na Itália de San Donino quer na Ibéria dos Usques, marcada em ambos os espaços pela feroz vigilância inquisitorial, o que condiciona o sentido interior do texto a uma orientação político-religiosa de resistência.
António Telmo, partindo destas inquirições de significado, não se ateve porém a elas. Se por um lado o seu trabalho, numa das suas esferas mais fecundas, dá a súmula “A Identidade Religiosa de Luís de Camões” (2009), recolhida depois no volume das obras, onde é patente o desenvolvimento da investigação de Bruno, por outro esse labor segue de perto uma escala de sentidos diversificados, posto que encadeados, que assinala uma novidade sobre Bruno, alargando aquilo que antes surgia apenas condicionado a um sentido político, mesmo tendo na base uma condição religiosa.
Esta novidade, manifestando-se por um entendimento em leque das significações da poesia de Camões, livrou a exegese de António Telmo dum dualismo redutor, sentido patente e sentido latente, e permitiu-lhe um vasto enriquecimento de ideias, que teve ponto cimeiro, a partir do qual frutificou em direcções várias, na publicação em 1982 dos dois estudos que constituem o livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, hoje reunidos no volume publicado em 2010, e que representam com os estudos anteriores um assinalável progresso da compreensão da épica de Camões.
Um camonismo como o de Telmo, elegendo como esfera de estudo a letra, mas não se contentando com a restituição ecdótica desta, antes indo no encalço duma escala de sentidos, não podia senão estar destinado a prestar um contributo ímpar numa zona essencial mas muito desprotegida do texto camonino, as significações, em que a retórica balofa do camonismo oficial, o literalismo paralisante da camonologia heurística, a obstinação irrelevante da camonografia biografista nada mais podiam oferecer, quando em tal domínio entravam, do que puídos chavões sem substância.
O comentário talmúdico – modelo da exegese do texto escrito no tempo de Camões, e dele se serviu um Manuel de Faria e Sousa no seu comento – supõe quatro níveis de sentido. As quatro direcções da poética podem ser associadas aos quatro sentidos da exegese tradicional, cujo interesse se mantém, como se pode ver em qualquer lição sobre o estudo da literatura: a restituição da letra (sentido literal), a procura duma figuração (sentido alegórico), a fixação dum quadro relacional com o contexto histórico (sentido moral) e por fim a percepção daquilo que podemos designar com propriedade o espírito da letra (sentido anagógico).
Em Telmo se alguma insuficiência há, é no domínio do primeiro nível que está, posto que a sua indagação fonética, muito atenta às trasladações do som, atenue o juízo. Todos os outros se entrançam na sua leitura de forma a desenhar o sentido final ascendente, anagógico, verdadeiro caroço das significações da poesia de Camões, que como grande arquitectura poética, em estreita relação com Virgílio e Dante, muito seria de admirar que dele estivesse ausente.
Assim a Ilha – que em Aguiar e Silva nunca chega a levantar voo do chão raso do literalismo – alcança em Telmo um estatuto novo, quando este a levanta, através da simbolia da esfera, ao estatuto de arquétipo do mundo. Tal transposição de sentido leva o intérprete a reformular toda a significação do poema camoniano, enriquecendo a sua compreensão pela translação da História ao Espírito, quer dizer, do sentido literal ou moral ao anagógico, ao encarar a viagem histórica no plano iniciático, cujo termo é a contemplação pelos nautas do modelo do mundo físico.
Isto que aqui surge de supetão, perdendo por isso boa parte da surpresa, é obtido em Telmo por um inteligente trabalho gradativo de aproximação, um esforço de tipo comparatista, em que se procura tirar o máximo proveito especulativo da comparação em jogo. No caso a escolha recai sobre uma iluminura persa do século XIV, pintada no quadro do Islão mas de influência zoroástrica, substrato cultural da Pérsia, que o Islão não apagou, e que mostra manifesta semelhança com a descrição da Ilha da épica camoniana.
A aproximação entre estas duas realidades, iluminura e escritura verbal, mostra-se feliz, enquadrando a Ilha num espaço de ideias marcado pelo neo-platonismo de sinal gnóstico, o que permite pela primeira vez entender a Ilha como mundo supra-sensível, ínsula divina lhe chama Camões (Canto IX, 21), e justificar sem estreiteza as estâncias dedicadas no episódio ao apóstolo Tomé, protagonista dum dos apócrifos mais ligados às interpretações gnósticas do cristianismo e o único que teve contacto directo, por predicação, e numa altura em que esta não era o monólogo que depois se fez, com as vastas regiões da Pérsia, então em pleno desenvolvimento da reforma zoroástrica. Ao evangelizador das áreas orientais se atribui em tradição milenar o baptismo dos Magos que vieram do Oriente a Belém e que nada mais eram do que sacerdotes avésticos de Zaratustra; o papel que estes têm no apócrifo de Tomé mostra bem o grau de sincretismo cultural que foi obtido pelo apóstolo entre as tradições orientais do dualismo e a nascente novidade do cristianismo.
O passo dedicado a Tomé, quando atenção houve à sua estranheza, foi lido apenas como tópico anti-jesuítico de Camões, que assim teria deixado de lado Francisco Xavier, o pregador ibérico da Índia e companheiro de Inácio de Loyola, como se o poeta estivesse apenas preso ao horizonte da antipatia pessoal, não avisando até para o perigo da matéria em causa (canto X, 120), e que é irrisório associar a qualquer questiúncula com a Companhia. Em aviso tão sério, em consigna tão sibilina e estratégica, outra e mais funda será a causa; para saber a que matéria alude o passo é preciso pelo menos encarar esta como implicante nas mais altas esferas do poema, o que não é nem pode ser o caso de qualquer irritação pessoal de Camões com os jesuítas.
A ideia duma afluência gnóstica na Ilha de Os Lusíadas – daí o letreiro do livro de 1982, porquanto os maniqueus são os neo-platónicos de fácies gnóstica – ajudou então a compreender o passo de Tomé e a visionar, o que não é despiciendo, a textura supra-sensível da Ilha com uma nitidez que até esse momento escapara, velada que sempre andara por observações menores e distractivas, quando não nulas. Demais, a percepção da importância no poema da corrente dualista, tal como ela se manifestou em círculos cristãos do primeiro século, permitiu alargar a intertextualidade cultural do poema, apontando a uma percepção real das ideias religiosas do poema e do poeta.
Dois estudos seguintes de Telmo sobre Camões – “O Messianismo de Camões” (2004) e “A Identidade Religiosa de Luís de Camões” (2009) – exploram este aspecto aberto pela aproximação da Ilha camoniana ao mundo da luz do dualismo persa, quer através do cripto-judaísmo de feição neo-platónica, como é o caso do cabalismo que derivou da escola de Gerona do século XIII, e que Camões como homem culto com certeza conheceu e meditou, quer através do cristianismo de feitio gnosticizante, indiciado nas estâncias sobre Tomé e cujas raízes eram fundas e antigas no noroeste da Península com a heresia priscilianista, e resistentes, com a sobrevivência desses brotos em manifestações posteriores, de Isabel de Aragão aos templários e seus sucessores.
Sobre a elucidação da natureza heterodoxa do cristianismo em Camões é notável, posto que introdutório, o texto da mesma época, “O Simbolismo das Cores Templárias na Poesia de Camões e na Festa dos Tabuleiros em Tomar” (2008), hoje no volume camonino das obras completas, em que se decifra o passo da cilada de Baco em Mombaça e se explora a lírica a partir das cores que estão presentes num dos raros casos em cujo seio sobreviveu a acossada inspiração templária.
3 Da Camonologia à Camonofilia
Não se julgue, com aquela freima destruidora de quem nem se dispõe a ouvir, que estamos diante de qualquer delírio risível. Basta atentar nos dois épicos atrás citados, Virgílio e Dante, e no forte parentesco de ambos com o poeta português, para se perceber como um plano anagógico de significação fará sempre ao poema português uma falta decisiva, ou não soubéssemos o que sabemos sobre a catábase da épica virigiliana e do poema dantesco. Sem tal plano, o poema de Camões não passa de letra morta, como se vê nas leituras tristes e cinzentas que durante anos sobre ele arrastámos, com as tão penosas repetições do poeta da Raça, do Império, da Cruzada ou da História.
Depois dos estudos de António Telmo a poesia de Camões surge-nos como uma síntese da herança do Portugal do século XV, aquele que aceitou a convergência sinergética das três religiões do Livro, aquele que iniciou e desenvolveu a exploração do Atlântico, aquele que no seio dessa expansão deu o messianismo de Fernão Lopes e o paracletismo de Nuno Gonçalves, tudo expressões heterodoxas duma cultura atlântica, excêntrica por isso, e muito surpreenderia se assim não fosse, tratando-se como se trata da obra poética capital relativa aos Descobrimentos.
A obra de Camões teve o desmedido mérito – e sem ele muito do seu viço murcharia – de superar um contexto de feroz perseguição religiosa, integrando de forma velada, e outra não seria possível por bisonha que fosse a censura dominicana, as linhas que no passado recente haviam feito a riqueza da Península, mostrando-se assim muito consciente da herança que nela havia e se perdia e intentando com ela, agora por meio do Oriente, uma nova síntese, através da reunião de forças desencontradas mas reconhecíveis, o cabalismo criptojudaico, o cristianismo iniciático e o sufismo islâmico, através do qual se perpetuou, pelo menos no que não coube ao nestorianismo cristão, o dualismo zoroástrico.
Tudo isto, que aos pobres camonologistas contemporâneos faz abrir a boca de incredulidade, foi porém conhecidíssimo dum comentador tão ilustre como Manuel de Faria e Sousa, patriarca da camonologia o titulou Sena e assim o recebe e evolve Telmo, que no tempo em que escreveu não pensou senão em colocar o poema no plano do sagrado – e o mesmo havia feito o primeiro comentador dele, Manoel Correia, que ainda teve diálogo cara a cara com o Poeta, na edição de 1613, dando o poema ao divino e equiparando a sua feitura aos textos arrebatados dos antigos Profetas. Se as leituras camonianas de Telmo outros méritos não tivessem, este de recolocar o poema no plano da leitura anagógica, juntando-lhe ideias, alargando-lhe as fronteiras, diversificando-lhe as fontes e as referências bibliográficas, nenhum lho tirava.
Sem o interesse de António Telmo por Camões, sem a sua camonofilia, a que é justo juntar a de Fiama (1938-2007), autora de O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos (1985), podíamos dizer que nada sabíamos d’ Os Lusíadas a não ser o nome dos comentadores e dos editores, o ano e o lugar das edições, as diferenças entre elas, com curiosidade especial para a dos “Piscos”, truncada esta, além de questões triviais de léxico, de sintaxe e de mitologia. Se assim fosse, convenhamos que, tratando-se dum poema de envergadura universal, publicado há mais de 440 anos, escandaloso seria.
Sem o Camões de António Telmo, síntese de tradições, lugar de convergências de culturas religiosas distintas, onde a cultura romana, ou mesmo europeia e cristã, é só parcela, e não a maior, não terá a Ibéria Camões para dar ao mundo, sobretudo ao mundo que dela deriva, pois o Camões expressão do Portugal, da Ibéria e da Europa habsburguinos, nada pode interessar povos que a cultura inquisitorial da Contra-Reforma tão abusivamente tripudiou.
[texto escrito em Junho de 2011
e revisto em Fevereiro de 2015]
[1] Nota do editor - O presente ensaio é uma versão revista do artigo “O camonismo de António Telmo”, publicado originalmente em Suroeste, revista de literaturas ibéricas, n.º 2, pp. 129-137, 2012. Integra a marginália do Volume III das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, Zéfiro, 2015.