UNIVERSO TÉLMICO. 65

12-05-2019 12:45

Caetano Veloso e Agostinho da Silva sob o signo "Deus está solto"

Eduardo Aroso

 

Num dos seus escritos em forma de crónicas, reunidas no volume Caetano Veloso – Verdade Tropical, edição Círculo de Leitores, o cantor-compositor brasileiro confessa a influência que teve de Agostinho da Silva, bem como de outras figuras que gravitavam então junto do filósofo português,  no alvorecer do que viria a ser denominado «tropicalismo». Agostinho, um “bandeirante da cultura”, ensinava e criava instituições e universidades em terras de Vera Cruz, e, contra a corrente de uma distorcida portugalidade forjada pelo Estado-Novo,  o pensador de Barca de Alva retomava a ideia de uma vera fraternidade luso-afro-brasileira, só impossível se o Homem não o consentir. Caetano estava então imerso na ideia do que viria a ser o «tropicalismo» (nome incluído no álbum do cantor baiano «Tropicália»), conceito criado pelo artista plástico Hélio Oiticia, sendo que foi o jornalista Nelson Motta que pela primeira vez escreve um artigo sobre essa decisiva corrente cultural, com repercussões na música, literatura, cinema e outros domínios. A Roberto Pinho ficou a dever Caetano a sua ida para o Rio de Janeiro. Dele, diz o cantor: «Ele fora formado pelo professor Agostinho da Silva, o fascinante português fugido do salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização. Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações. Se aquilo era um ardil da saudade do catolicismo medieval lusitano não ficava claro para mim».

 O que mais importa, de relance, é observarmos o impacto que para um cantor brasileiro do séc. XX tudo aquilo tinha no seu espírito. «O professor Agostinho, interessado em ligar Brasil com África e Oriente (no fim da vida ele estava apaixonado pela China “póscomunista”), nunca derrapou para nenhum tipo de reaccionarismo  radical: ele amava ver em Portugal (o mais antigo país da Europa – unificado e feito Estado-Nação desde o século XII) uma sugestão de futuro espiritualmente ambicioso, sem negar os frutos da paixão nórdica pela tecnologia. E quando ele dizia petulantemente que “Portugal já civilizou Ásia, África e América, falta civilizar Europa”, estava sobretudo mostrando que queria pensar ao arrepio dos poderosos».

Na verdade, fosse por convicção pessoal, por aquilo que emanava do próprio «tropicalismo», pensando com Agostinho neste cenário de fundo na ideia de uma relação Portugal Brasil, muito para além da distorcida que apresentava o salazarismo, ou ainda por todas estas circunstâncias, o certo é que por volta da década de 60 o cantor-compositor inculcava uma utopia clarividente da realização da Língua Portuguesa, não sendo de minimizar o facto de ser baiano de nascimento (como, por exemplo, Jorge Amado), isto é, uma herança genética que podia entrever o triângulo, Portugal-Brasil-África, quiçá mais interessante do que o tão falado triângulo das Bermudas (!). Caetano, conforme confessa, intui que «deveria aceitar a sugestão do destino e ir fazer música no Rio e em São Paulo porque coisas grandes necessariamente adviriam disso». É de crer que o autor de «Tropicália» aceitasse, dir-se-ia, essa missão de ser voz e melodia desse sonho que no sotaque «de português com açúcar (Agostinho da Silva) fizesse girar a seiva de alma e cultura no referido e cosmopolita triângulo. Embora a música do cantor fosse um canal importante não se pode descuidar a influência do cinema na figura exemplar de Glauber Rocha (também baiano) nas obras «Deus e o Diabo na Terra do Sol» ou «Barravento», este último porventura o de maior influência no tropicalismo.

Mas não só de Agostinho, ou melhor, antes dele, há o fascínio de Caetano (melhor seria dizer encanto?) pelo idioma luso-brasileiro. No meio de tanto fervilhar de tropicalismo, de se reclamar um «Brasil brasileiro», havia a sedução intelectual do Brasil pelas correntes culturais da Europa, nomeadamente o Dadaísmo.  Todavia, já nos bancos de escola o cantor fica marcado por Mensagem de Fernando Pessoa, muito particularmente pela figura mítica de D. Sebastião. Assim o diz: «É um poema de Mensagem, o livro de Pessoa que me impressionara na época da faculdade por ser capaz  - ao parecer constituir a fundação mesma da língua portuguesa ou a sua justificação última – de dar vida digna a esse mito tão frequentemente ridicularizado (o termo “sebastianismo” virou sinônimo de impotência auto-iludida, um quase consensual depreciativo da crítica da cultura entre nós). Uma versão corajosamente livre (e surpreendentemente nada reaccionária) desse mito tinha se apresentado a nossa geração de baianos através da figura do professor português Agostinho da Silva que, nos anos de ouro da Universidade da Baía sob o reitor Edgar Santos, fundara em Salvador o Centro de Estudos Afro-Orientais, sempre mirando um horizonte  de superação do estágio em que se encontrava o mundo liderado pelo Ocidente (…) Algo (ou muito disso) está por trás de toda a obra de Glauber – e, em que pesem as ironias e desconfianças, de todo o tropicalismo».

Podemos especular- não o sabendo com realidade de fonte directa – do que,  nos dias actuais, Caetano pensa de Agostinho da Silva, parecendo certo que a sua ideia e amor à língua portuguesa (aliás, bem apoiado pela irmã Bethânia) não conheceu declínio, a julgar pela sua obra, e pelo que, por contraste, disse da língua inglesa, quando por imperativos profissionais permaneceu uma temporada em Inglaterra. Seja como for, há uma indesmentível convergência que incarna perfeitamente no âmago do pensamento agostiniano, quando o cantor, ao jeito do Grito de Ipiranga, lança um outro quando diz «Deus está solto».

 

Maio 2019