UNIVERSO TÉLMICO. 56

11-04-2018 10:47

Uma entrevista a José Flórido, conduzida por Risoleta C. Pinto Pedro e tendo Agostinho da Silva como pano de fundo, é uma das peças notáveis que vão integrar o próximo número da revista de cultura libertária A Ideia, especialmente dedicado à vida e à obra do autor de Conversação com Diotima e que será lançada no final do ano em curso, com coordenação editorial de António Cândido Franco, Pedro Martins, Risoleta C. Pinto Pedro e Rui Lopo. Em pré-publicação, antecipamos hoje aos nossos leitores um excerto dessa entrevista.

José Flórido, um dos seus livros tem por título Reencontrar Agostinho da Silva, sabendo-se que o encontro inicial se deu através de José Marinho, no IADE. Em que ano aconteceu e que impressão lhe fica desse primeiro momento?

Não costumo ser muito preciso no que diz respeito a datas... Mas, o encontro inicial aconteceu por volta de 1969 ou 1970, no IADE, onde se realizaram colóquios em que participaram diversos filósofos, entre eles, evidentemente, o Agostinho da Silva e o José Marinho.  Antes da realização do primeiro desses colóquios, vi, a determinada altura, entrar na sala um homem de aspecto muito modesto. Parecia até um campónio. Mas irradiava simpatia e serenidade. Era o Agostinho. Cumprimentou as pessoas... e, depois, dirigindo-se a mim, perguntou: "E este senhor, quem é?" O Marinho fez a apresentação. E o Agostinho, que não me conhecia de parte alguma, fixou-me durante alguns instantes, com aquele seu ar contemplativo e misterioso, e saiu-se com esta: "Tem graça. Era mesmo consigo que eu queria falar...

Houve de facto entre nós uma empatia imediata. E nesse momento, senti-me, talvez, na presença de um irmão mais velho... E, a partir daí, creio que muitas coisas interessantes na minha vida foram acontecendo... Talvez fosse a intervenção do "Espírito Santo"... como ele costumava dizer.

                                                                             

Como era, na sua visão, a relação de Marinho com Agostinho e vice-versa? Recorda algum episódio digno de registo?

Tinham grande respeito e admiração um pelo outro. Eram duas figuras ímpares da nossa cultura. O Agostinho punha sempre em evidência a dimensão intelectual e espiritual do José Marinho."O José Marinho é indispensável", dizia. E o José Marinho procedia do mesmo modo, não deixando, às vezes, de reconhecer em Agostinho "um certo orgulho"... E houve até quem visse neles uma certa rivalidade... Mas, são pontos de vista... Eu não acredito nisso. Não me parece correto falar de rivalidade entre pessoas desse nível superior de inteligência e de cultura... Porém, no dia em que se realizou  um desses colóquios,  recordo o profundo diálogo que se estabeleceu entre eles, creio que a propósito da missão de Portugal no Mundo...  Como houve alguns pontos de discordância, o Marinho, então, delicadamente, para não prolongar demasiadamente o diálogo, rematou deste modo: "Muito bem muito bem. Não há dúvida que argumentou muito bem... Eu respondo-lhe para a semana."

 

Marinho disse que o senhor (na altura muito jovem) «soube demasiadamente cedo certas coisas». De Álvaro Ribeiro recebeu uma advertência por alguma irreverência da idade. E Agostinho, alguma vez lhe dirigiu algum comentário desse tipo? Ou de outro?

                Sim... na verdade, o Marinho considerou que haveria um preço a pagar pelo facto de eu, sendo ainda muito jovem, ter intuído certas verdades metafísicas, que me permitiram fazer uma leitura, ainda que incompleta (mas que ele, até certo ponto, aceitou) do seu célebre livro, "A Teoria do Ser e da Verdade". Naquela altura, não compreendi essa advertência... Mas, hoje, compreendo que tudo deve ter o seu tempo certo...E talvez a minha idade não fosse ainda a idade própria da  metafísica... E o preço a pagar por essa antecipação, seria talvez o desinteresse ou mesmo o alheamento por determinados aspectos da vida, (e mesmo da cultura), necessários, e  habitualmente mais próximos da idade que eu tinha nessa altura. Reconheço agora que o Marinho sabia o que estava a dizer... Quanto ao Álvaro, embora nunca me tenha sentido em muita sintonia com o seu pensamento... foi muito importante o contributo que ele deu à língua portuguesa.  Mas, quando conheci o Agostinho já tinha um pouco mais de maturidade... O que não quer dizer que não merecesse da sua parte alguns reparos... Porém, o Agostinho, ainda que estivesse atento às nossas insuficiências, preferia sempre evidenciar os aspectos positivos das pessoas, afirmando mesmo que se o que há de superior em nós for estimulado e desenvolvido, o que possa haver de inferior acabará por ser a pouco e pouco eliminado... Por isso, o Agostinho, ainda que fosse um Mestre, nunca se quis assumir como tal. Por diversas vezes, assumiu, ou pareceu até assumir, o papel de discípulo, agradecendo as nossas intervenções e partindo delas para chegar a um maior aprofundamento das suas ideias. Chegou até a dizer que "tinha aprendido muito com os analfabetos"... Afinal, como diz um provérbio latino, Homo bonus semper tiro (o homem bom é sempre recruta).